Sobre o ódio à cultura e a inteligência como frutos de ignorância crassa, por Ordep Serra

Texto do professor doutor Ordep Serra da FFCH- UFBA

Sou cientista social, doutor em Antropologia. Nesta qualidade já trabalhei em um órgão de Planejamento Urbano e dirigi uma autarquia em que me tornei responsável direto pelo patrimônio histórico do meu Estado. Durante longa trajetória como professor de antropologia e de sociologia, dei aulas não só para alunos de Ciências Humanas como também a estudantes de Direito, de Biologia, de Geografia, de Comunicação. Também ensinei em um Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, tendo entre meus alunos médicos, enfermeiros, psicólogos clínicos etc. Tive orientandos em diferentes institutos da minha universidade, coorientei urbanistas e já participei de bancas até na Politécnica. Digo isso para mostrar a transversalidade das ciências sociais, que as tornam capazes de dialogar com diversos campos de conhecimento e prestar serviço à formação de  profissionais de distintas áreas. Falo de  coisa sabida por quem tem um mínimo de cultura científica e entendimento do que seja educação no mundo contemporâneo.

Hoje a transdisciplinariedade se impõe. Meu caro amigo Emerson Sales, engenheiro químico, professor titular da UFBA e pesquisador respeitado não só no Brasil como na Europa,  nos Estados Unidos e na Índia, dá aulas no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA para centenas de alunos, sempre com um enfoque trandisciplinar, único meio de dar conta dos problemas ecológicos que ele aborda: está bem consciente das exigências colocadas pela problemática socioambiental e se lhe disserem que dispense nessa abordagem os recursos da antropologia ou da sociologia por certo ficará muito espantado: talvez tome a sugestão com sintoma de delírio. Qualquer pessoa com um mínimo de cultura há de concordar com ele. Mas agora vejo o Presidente da República e seu Ministro da Educação tratando as Ciências Sociais e a Filosofia como supérfluas, dispensáveis, querendo limitar o investimento nelas. Caso vingue sua  proposta, fruto de ignorância crassa, várias carreiras profissionais ficarão muito prejudicadas. Vão formar-se técnicos para lidar com problemas da sociedade sem nada entender da sociedade.

Essa loucura pode ir muito longe, a ponto de ocasionar uma invasão de bestas quadradas em domínios da maior importância. Imaginem físicos e matemáticos zombando do interesse de Einstein pela filosofia, fazendo pouco de sua admiração por Parmênides,  rindo dos cosmólogos que apelam a filósofos para discutir problemas relativos a suas teorias. Imaginem advogados e economistas ignorantes em matéria de História, cegos para as questões sociais, incapazes de lidar com a diversidade cultural do mundo. Que sucesso poderão ter esses infelizes?

Os  propositores da medida insana falam em economizar recursos, mas o que assim podem produzir é um desastre econômico formidável. Deveria ser claro para todos que é impossível implementar políticas públicas adequadas e governar de fato um país, por menor que seja, sem o concurso de peritos habilitados nas ciências da sociedade, nas ciências humanas em geral. Mas dá-se que temos hoje em altos postos de governo do Brasil verdadeiras caricaturas de  Bouvard e Pécuchet, metendo as mãos pelos pés de maneira tão grotesca que ultrapassam de muito o pesadelo de  Flaubert. É que sua inépcia se acha, ainda por cima, envenenada de más intenções. Assim temos o Ministro da Economia atacando o IBGE, querendo limitar o alcance do censo, com certeza temeroso do retrato que este instrumento fará de sua administração.

Cientistas sociais são incômodos, agora mais do que nunca: eles denunciam a desigualdade, a miséria crescente, o fracasso de políticas mal pensadas. Filósofos refletem, analisam, criticam. Sociólogos explicam como a desigualdade se reproduz no sistema, analisam os números escandalosos da violência econômica, desmascaram o discurso fascista interpretando-o à luz de seus  reais interesses e efeitos. Antropólogos se empenham na defesa de direitos de comunidades tradicionais perseguidas e dizimadas pela ganância do latifúndio; denunciam o pavoroso desastre ambiental que se anuncia com o esmagamento de povos da floresta e do cerrado; apontam e discutem a miséria urbana; denunciam a brutalidade do racismo institucionalizado, a violência de gênero, a intolerância religiosa, o horror imposto pelas milícias etc. Confesso: tenho-me ocupado com esses assuntos e continuarei a fazê-lo. Seguirei empenhado, também, na busca de uma educação digna para todos, defendendo a universidade pública e gratuita, o ensino básico competente e inclusivo, de acordo os princípios que regem as grandes obras de Anísio Teixeira e Paulo Freire. Continuo e continuarei a reclamar o pleno respeito aos indígenas e quilombolas, aos povos de terreiro, aos favelados de todo o país.

Sim, sou antropólogo e nordestino, coisa que o Ministro da Educação considera um despropósito, quiçá um escândalo.  Pior ainda: mantenho um vivo interesse pela Filosofia: pretendo em breve fazer um pós-doutorado nesta área. Graças ao estímulo de um pensador que me orientou na UnB não consigo passar muito tempo sem ler uma obra filosófica. Este hábito me trouxe algumas vantagens: quando me cai nas mãos o texto de um escriba desatinado que pretende discorrer sobre Aristóteles ou Kant alinhando estereótipos irrefletidos e uma chusma de bobagens, eu não me engano, reconheço logo nas primeiras sandices o impostor e o descarto; não caio na conversa de gurus de meia tigela como o do ministro. Prefiro, portanto, não levar a sério Sua Excelência, que não sabe distinguir Filosofia de devaneios grosseiros com base em ocultismo reacionário e indigestão eclética.

Acho preocupante a sanha obscurantista do Presidente e do seu digno auxiliar. Receio que ela não pare por aí. Se querem acabar com o ensino tanto de Filosofia quanto de Ciências Sociais (ou limitá-lo, já que consideram inúteis essas disciplinas), que farão com o ensino de Literatura e de Artes em geral? Seu governo tem demonstrado ojeriza a essas coisas.

Quanto a mim, continuo interessado nelas, tanto que faço parte da Academia de Letras  da Bahia. (O fato de que uma coisa assim exista em nosso Estado nordestino talvez pareça ao ministro Wintraub um disparate). Confesso mais: formei-me em Letras Clássicas, iniciei minha carreira de professor universitário na UnB ensinando Grego. Muito mau para um  pobre baiano, com certeza.  Mas quando nada estou livre do ódio à cultura e à inteligência.

 

Prof. Ordep Serra

Redação

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