A Geografia na logística

Contribuição para o Fórum de Logística

Após duas décadas e meio perdidas, o Brasil está recuperando sua capacidade de investimento nas infra-estruturas de transporte.  São duas décadas onde não apenas uma boa parte do parque de infra-estruturas de deteriorou e a rede não evoluiu tanto em termos de extensão quanto de qualidade. O próprio governo, dominado pela lógica de ceifar o serviço público, se viu privado do capital intelectual para conceber estratégias, planos e desenvolver os próprios projetos. 

O fim do GEIPOT, órgão esse construído com apoio dos norte-americanos, que incluiu a formação de técnicos em nível de pós-graduação no MIT, selou a perda de capacidade técnica do setor, que depois foi entregue a políticos que não estiveram à altura do desafio. Era nossa “Sorbonne” dos transportes, que possibilitou uma rápida expansão das infra-estruturas no Regime Militar. A partir de 1982, foi definhando até recebir o tiro de graça pelo FHC.

A consultoria privada não pôde nunca suprir as demandas técnicas, até porque para ela poder fazê-lo eficientemente, precisaria de contapartes do setor público: com o enfraquecimento desse, a consultoria brasileira de transportes, que era utilizada pelo Banco Mundial nos seus projetos em outros países em desenvolvimento, não passa de um sombra do que fora outrora. 

Aos poucos, os técnicos que ficaram, secundados pelos novos, foram reconstruindo a capacidade de governança do setor, recuperando técnicas de planejamento Há muito perdidas.Com muito esforço colocaram em pé o Plano Nacional de Logística de Transporte (PNLT). 

Contudo, esse planejamento possui  ainda um caráter de transição, moldado está pela lógica da penúria de duas décadas, de priorizar a redução dos “gargalos” e os corredores de exportação, e não de construir o espaço nacional, que era a lógica dos militares. Se na época da reconstrução da economia, a priorização dos gargalos e dos eixos de exportação de commodities era uma urgência para o equilíbrio fiscal, hoje temos de re-analisar criticamente tal principio.

A lógica da redução do gargalo, por mais que pareça racional, é espacialmente conservadora, favorecendo os fluxos que resultam de um processo de territorialização corrente, que reflete a concentração industrial e a funcionalização da periferia em fornecedor de commodities. É esse Brasil que queremos? De qualquer forma, é ele que estaria sendo construído por essa lógica.

Os países que construiram uma rede consistente e moderna de infra-estrutura partiram sempre de critérios de integração espacial. Quais os polos econômicos devem ser impulsionados para distribuir os focos de crescimento pelo território nacional e assim fazer com que a espacialidade seja, ela própria, um fator de crescimento econômico? Essa não é a preocupação do atual planejamento nacional. 

Eu ouço constantemente as lamentações sobre o “desequilíbrio da matriz modal”, a favor das rodovias e contra as ferrovias, como se essa opção tivesse resultado de “forças ocultas” do setor automobilístico. A história é, ao meu ver, diferente. 

O Brasil perdeu, no Século XIX e no início do Século XX, o “trem”: depois de empurrar com a barriga por quatro décadas o investimento ferroviário – até porque o capital resultante do excedente da produção cafeeira era prioritariamente investido no tráfico negreiro, só integrando os investimentos ferroviários com o fim paulatino da escravidão – as ferrovias foram de fato construídas sob égide do marco regulatório de 1872.

Entretanto, a construção não se deu sob a égide de um plano nacional de ferrovias, e sim eram definidas uma a uma pela Assembléia Nacional, dominada pelos barões do cafés. Esses só liberavam a concessão se suas fazendas fossem contempladas. Surgiu assim um emaranhado de caminhos “cata-café” sem sistematicidade, de baixa qualidade técnica e com bitolas diversificadas, sem integrar o território, apenas ligando as áreas produtoras ao próximo porto.

Com o advento da república, algumas ligações regionais foram construídas, unindo-se as pontas no interior das ferrovias exportadoras, provocando um percurso zigue-zague entre as regiões. As bitolas (só em Pernambuco havia dez!) foram unificadas para duas, depois de muitas discussões entre “larguistas” e “metristas”.  

No entanto, era tarde demais: com a rodovia tinha surgido um modo que integraria muito mais rapidamente o território, quando tal integração e a industrialização entrou em pauta. Ao contrário da ferrovia, que necessita uma manutenção rigorosa, não admitindo nem um centimetro de mudança da bitola, a rodovia pode possibilitar o tráfego nas mais adversas condições técnicas, com piso de terra, buracos no asfalto, etc. E melhor: o construtor não precisa se preocupar com a operação, que se dá por uma míriade de pequenos operadores, que vão “fertilizando” economicamente os novos territórios. 

Não é verdade que os governos desprezaram a ferrovia: diversas ações de sua modernização foram realizadas depois da Segunda Guerra, na Era JK e no Regime Militar.Em tempo recorde todo o sistema passou da maria-fumaça para o diesel o que não é pouco. Mas muitas ferrovias cata-café tiveram de ser sacrificadas: além da péssima qualidade técnica com relação à rodovia, a cafeicultura tinha migrado, deixando obsoletas 10 mil km de linhas. Durante o governo Geisel, a RFFSA tinha excelentes indices de produtividade. Mas aí veio a crise, que deu fim á lenta recuperação, até chegar à política de concessão incondicional, sem exigências de investimento, pela caótica “Reforma Administrativa” do setor. 

De qualquer forma, o predominio da rodovia não foi apenas uma escolha política. Ela decorre simplesmente do desequilibrio territorial. Uma ferrovia moderna precisa de grandes fluxos em ambos os sentidos. Já no caso do caminhão, é o caminhoneiro que carrega todo o risco e sacrifício para buscar arduamente sua carga de retorno. Na medida em que a dimensão do veículo seja menor, isso é mais possível apesar dos sacrificios, do que na ferrovia, onde não se encontra da noite para o dia uma carga de retorno para encher um comboio. 

Nosso território não fornece volumes necessários de carga de retorno, pois a desigualdade e a funcionalização da periferia para a produção de commodites produz uma assimetria de fluxos econômicos, e portanto de transporte. Além disso, o caráter “cigano” das culturas dificulta a consolidação espacial necessária dos fluxos econômicos. Se quisermos por de pé a ferrovia, temos de reconstruir o território a partir do fomento de polos no interior, que assegurem a melhor distribuição dos fluxos, além de introduzir uma regulamentação mais forte no uso do solo produtivo, de forma que as culturas se assentem de forma mais estável.  

Portanto, o discurso que precisa ser realizado nos fóruns de logística é como criar um território que produza de forma mais equilibrada os fluxos economicos e logísticos. Infelizmente, até hoje não temos um planejamento territorial robusto para tal. Diversos ministérios trabalham com marcos regulatórios diferentes, e muitas medidas industriais não levam em considerção diferenciações regionais, levando à ineficiência e a processos de reconcentração industrial. Para o transporte, sobram mais desequilibrio e maior dependencia daquele modo que consegue apresentar a flexibilidade necessária para atender essa conjuntura espacial desfavorável. 

Espero que essa questão seja colocada no seminário. Sempre tenho dito aos meus alunos que a ciência básica do transporte não é engenharia – nem civil, nem mecãnica ou de sistemas – não é a economia, e sim a GEOGRAFIA. Pois o transporte é antes de mais nada um instrumento de vencer distância, viabilizando estruturas espaciais e construindo novas. E a ciência que lida com espaço chama-se – assim me ensinaram – Geografia.

Em suma, “transporteiros”:  It´s Geography, stupid!!! 

Luis Nassif

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