A vida que há VI, por Maíra Vasconcelos
Tudo nela estava em silêncio, como se fosse possível nunca mais falar. Diz minha vizinha que a mudez é confortável durante os dias de sangue pisado. Fica toda folgada no sofá sem pronunciar um A. Até acha que sua voz não sairá nunca mais, mas não se importa, o importante é não falar. Depois, acontece o retorno da voz, quando o sangue pisado já desceu o corpo inteiro.
Não ir à padaria, nem atender o interfone – pavorsinho da voz humana.. ai ai, só posso escutar músicas e cantos. Fico chique e seletiva. Não atendo ligações, e assim também evito o espanto de mim mesma – iiihh, o celular deu pane, finge alarme de atriz quando os vizinhos perguntam porque faltou à reunião do condomínio.
Minha vizinha diz que o melhor é não sair de casa: não se deve forçar a voz. É como ficar presa dentro de si mesma, igual pássaro dentro da gaiola. Se sai algum canto, é melancólico de dar dó. Igualzinho filme de arte. Tudo acontece no tempo da tristeza reflexiva: de va g a a a a r r r r até quase parar – estou paradinha, prefiro não dizer meu próprio nome. O único que sai dela é o sangue pisado. Sai sai até que um dia não sairá mais.
Passada a varrição dos dias de sangue pisado, minha vizinha aparece. Fala qualquer coisa que se pareça a uma voz com vontade de viver. Disse que nesses dias entra tudo de toda gente nela mesma, e apenas sai sai o sangue pisado, até que um dia não sairá mais. Aquela coisa meio marronzinha, bonita de vida que só. Meio triste, meio alegre, tudo junto. Ela enxerga a vida dividida igual ao corpo da mulher. O corpo que tem o sangue pisado e o corpo que nunca mais irá esperar pelo sangue pisado. Parece que divide a gente em duas, já percebeu? E melhor nem olhar no espelho, porque aí divide tudo que não há olhos que chegue. Igual aquele livro da mulher partida, sabe? Olha quantas numa só. Quem disse isso: unidade do ser? Perguntou sem esperar resposta e disparou a rir, a minha vizinha.
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