Comissão Nacional da Dívida Pública

Um pirata defendendo o tesouro nacional? Fábula ou ficção científica?

O problema estrangeiro e o de sua importação

Procura-se importar para o Brasil um debate econômico estrangeiro, um novo pós-keynesianismo, na busca de se justificar o aumento dos gastos públicos. Ela se chama Nova Teoria Econômica. Quem trouxe a atual efeméride não é ninguém menos que André Lara Resende, economista do Plano Real e chamado por Paulo Henrique Amori de André “Haras” Resende, porque, depois de ficar rico com o monetarismo aplicado nos governos FHC, transportava seus cavalos em jatos particulares. Teria esse debate algum valor para a atual situação econômica brasileira? O prolema é que nos EUA deve-se justificar a impressão descontrolada de moeda, porque o país, totalmente falido, não consegue sobreviver sem a chamada “flexibilização quantitativa”. A soberania monetária, a capacidade de emitir crédito, é própria aos Estados-nacionais desde sua fundação. O problema é querer justificar uma expansão dos gastos sem discriminá-los e sem se dar conta de que um sistema de crédito não convive com um sistema da dívida. Empresas como a Apple batem recorde de valor no mercado internacional sem aumentar suas vendas ou apresentar um novo modelo tecnológico que poderia trazer o aumento na expectativa das vendas. É um modelo homicida de drenagem dos recursos públicos para o setor privado [aqui]. Assim, a flexibilização quantitativa vai dando uma sobrevida totalmente artificial às empresas e bancos do sistema financeiro transatlântico, enquanto as condições gerais de vida da população caem sem parar. O único motivo para um banqueiro do Plano Real vir como arauto de um novo keynesianismo no Brasil, país que vive uma crise econômica grave, é procurar retirar toda e qualquer restrição aos gastos públicos para dar conta do déficit crescente do Tesouro. Se medidas expansionistas, por si ou mesmo que mesclada a novos argumentos, não são solução para nada, a Nova Teoria Econômica, antes de querer se legitimar sequer como “teoria”, deveria se ater ao problema da dívida. Um sistema de crédito não convive com um sistema da dívida [aqui]. Os militares são louvados pelos investimentos que fizeram na economia física do Brasil, mas a expansão dos gastos públicos sem uma visão de soberania monetária nacional, acabou por criar a mais ultrajante herança da ditadura, o sistema da dívida, potencializada nas últimas décadas pela manutenção do “tripé macroeconômico” instituído pelo Plano Real. Ao se buscar dólares baratos e não emitir dívida com ancoragem em ativos internos, ao entrar Paul Volcker na presidência do Fed norte-americano, toda a crise da dívida se espalhou pelos países da América Latina, isto é, quando ele resolveu dar uma canetada e aumentar exponencialmente o valor dos juros das dívidas emitidas em dólares. No estado atual das coisas, onde não se vislumbra no curto prazo a volta dos investimentos produtivos, o debate deve ocorrer na volta do prestígio aos projetos nacionais e das empresas de capital brasileiro; a recuperação do BNDES, o combate à cartelização bancária e aos spreads; a expulsão dos vendilhões da pátria em qualquer lugar onde estejam. Mesmo se alguns desses, hoje, voltem com a fala mansa…

A necessidade de uma auditoria geral, ampla e irrestrita, da dívida pública

Dias atrás, um economista considerado “progressista” ou não ortodoxo, Paulo Gala, fez um vídeo onde buscava argumentar contra a necessidade de uma auditoria da dívida pública [aqui]. Disse ele que a dívida está ancorada na poupança nacional, isto é, nos investimentos que a classe-média faz entre diversas opções do cardápio bancário. Tudo isso somaria, em sua visão, 1 trilhão de reais… Mexer com a dívida pública seria retirar a rentabilidade dessa pobre classe-média que investe seus 10 ou 20 mil reais ao invés de colocá-los na poupança. O problema é completamente outro, sem dúvida. Com uma dívida pública bruta superior a 5 trilhões de reais, no cálculo simples e hipotético que se pode fazer com o número apresentado por Paulo Gala, deduz-se que só 20% da dívida pública é composta recursos desses pobres poupadores nacionais. Quem detém os outros 80%? Essa é uma pergunta que oficialmente não se tem, porque o Banco Central simplesmente se recusa a fornecer a lista dos magnatas que teriam a receber, se liquidada hoje, cerca de 2/3 do PIB brasileiro. Mesmo diante da intimação da CPI da Dívida Pública, nada foi feito. O Banco Central age, aqui e em inúmeros outros casos, na pura ilegalidade. O argumento de Gala é idêntico ao de Míriam Leitão. Não sei se isso pode ser considerado um elogio, mas claramente a “dívida interna” não é um problema que envolve agentes exclusivamente autóctones. A “dívida interna” é composta por alguns investidores nacionais, pessoas físicas e empresas, mas ela é massivamente baseada em contratos antigos, rolados por décadas, e que há muito são controlados por agentes externos (é mais rentável comprar dívida brasileira com juros altos do que a de outros países). Quando o Estado emite títulos da dívida para fazer sua rolagem, não há uma correria de cidadãos de bem, da classe-média, para comprá-los. Quem os adquire são os piratas estrangeiros em consórcio com parceiros nacionais. No sistema da dívida, entram esses novos títulos emitidos para sua rolagem (o que é ilegal, porque não se pode gerar dívida para pagar despesa corrente, ou seja, juros), as operações de swap cambial e a remuneração da sobra de caixa dos bancos. Para dizer o mínimo. Logo, querer reduzir o problema da dívida a uma questão familiar – a salvaguarda dos poupadores do Brasil – chega a soar ridículo. Que me perdoem Paulo Gala e Míriam Leitão… Por exemplo, os bancos hoje estão conseguindo a proeza de ter mais lucros do que na época do PT. Por que será? Com recursos vultuosos acumulados que não são emprestados devido à crise generalizada, o Banco Central, ilegalmente, remunera essa generosa sobra de caixa dos bancos. Nesse sistema, quanto mais recessão, melhor. Assim, o presidente do Itaú pode falar que o desemprego é bom porque diminui o valor da mão-de-obra e que, apesar das estripulias do Bozo e sua turma, as reformas estão passando. Nunca antes na história desse país as coisa andaram tão bem. O Itaú, inclusive, tem uma história particular com a ditadura, engordado pelo regime tal como a Rede Globo, então atuante como instituição bolchevique de propaganda do aparelho de Estado. Sem esquecer que em 2013, na insurreição espontânea que brotou depois de que pela primeira vez na história desse país se enfrentou face a face o sistema da dívida dos bancos em sua outra ponta, a dos empréstimos à população, era sob o pano de fundo do Itaú que aparecia Luciano Huck e o gigante recém desperto. A história dos bancos e do sistema financeiro, mafioso, são tantas e tão obscuras que se há jornalismo de fato esses relatos deveriam ser investigados. O resto é enxugar gelo.

A verdade e suas fraturas

Em entrevista recente ao UOL, Dilma Rousseff teve que responder à previsível pergunta de que, por causa da instauração da Comissão da Verdade, o setor militar passou a se posicionar contra seu governo. Ela respondeu que não antes até do entrevistador concluir a pergunta e teceu argumentos de ordem moral: nunca antes na história do país se investiu tanto nas Forças Armadas, tanto nos projetos nucleares, na aeronáutica, no próprio exército – compondo tudo o que se via como a defesa da Amazônia Azul -, como também houve participação ativa dos militares em projetos sociais e econômicos do governo, ou seja, no auxílio ao desenvolvimento nacional. Se uma Comissão da Verdade produz traumas não é em um setor específico. Ao que se considerou uma violência, se reagiu com violência real. O Foro de São Paulo apareceu como reunião Illuminati encarregada de levar a cabo a sevícia de criancinhas e a promoção de um mundo ateu e gay. A história é relativamente bem conhecida e foi muito bem narrada no documentário Intervenção, dirigido por Tales Ab’sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda [aqui]. Isso levou de roldão um tipo específico da classe-média, atualmente conhecido como núcleo duro do bolsonarismo. Mas eles poderiam ter ficado latindo enquanto nossa caravana passava. A Comissão da Verdade não gerou, por si, nenhuma comoção social de maior envergadura. Frente a um país com uma taxa de desemprego mínima, declarado território livre da fome pela ONU e que, em breve, daria mais um salto de desenvolvimento com a conclusão de inúmeras obras de infraestrutura fundamentais, com o regime geral do pré-sal (partilha mais fundo social) e o início do embate com o setor rentista, uma crise de desintegração econômica controlada teve que ser lançada, ou seja, a Lava-Jato. O problema de um país com a legitimidade para lançar uma Comissão Nacional da Verdade é que, devido aos progressos alcançados anteriormente e que permitiram o consenso necessário para a criação dessa comissão, alguma tempestade perfeita deve ser criada para abortar tudo, absolutamente tudo de progresso e desenvolvimento que se atingiu. Logo, o país precisa amadurecer mais para se poder lançar uma ampla Auditoria da Dívida. Ela não visa sequestrar o dinheiro dos pobres investidores de classe-média que, em outros cálculos diferentes dos de Paulo Gala e Míriam Leitão, não chegam a compor 1% do estoque total da dívida. Essa que poderia ser chamada Comissão da Verdade da Dívida Pública, ajudaria a destravar a máquina pública, hoje fundamentalmente voltada para a produção de superávits primários para não mexer com o ego dos pobres poupadores da classe-média. Inclusive se criou uma lei do teto dos gastos públicos para proteger esses guerreiros que, vira e mexe, contratam economistas para ajudá-los a investir melhor. Economistas estes que adoram falar de um “risco Venezuela” e não se preocupam de ver os resultados do trabalho de auditoria da dívida em países como Equador e Grécia… Uma Comissão desse tipo tende a produzir uma gritaria talvez superior à produzida pela Comissão Nacional da Verdade, mas agora de setores da classe-média de origem diferente. Nesse contexto, antigos piratas como André Haras Resende ou neokeynesianismos são “novidades” irrelevantes e ópios para acadêmicos. Afinal, o que é a flexibilização quantitativa senão keynesianismo e neoliberalismo? Um keynesianismo que trabalha para manter artificialmente funcionando um sistema financeiro totalmente falido e coloca o mundo num dilema quase impossível: terminar as flexibilizações quantitativas e produzir uma quebra generalizada de todas as instituições até agora respeitadas, ou continuar com as flexibilizações quantitativas e manter o respeito e a liquidez dessas instituições de maneira absolutamente ilusória. Nada mais do que Genocídio e Liberalismo. Esse texto é uma continuação de publicação anterior (bem mais curta e de acento conceitual e historiográfico) publicado com o título: Notas sobre a Nova Teoria Econômica PS: Luis Nassif publicou quase agora um vídeo de palestra de Andre Haras Resende. Com tempo e paciência assistirei e vamos ver com os argumentos do hígido arauto o que mais pode ter de válido na efeméride atual. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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