Curador da exposição Queermuseu é convocado a depor em CPI no Senado

Por Rafael Duarte

 

A perseguição à exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença da Arte Brasileira, cancelada pelo banco Santander em 10 de setembro após manifestações contrárias organizadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), chegou ao Congresso. O curador da exposição Queermuseu Gaudêncio Fidélis foi convocado para prestar depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que investiga irregularidades e crimes relacionados aos maus-tratos em crianças e adolescentes no país. O ofício assinado pelo presidente da CPI dos Maus-Tratos, senador Magno Malta (PR), informa que o depoimento está marcado para 4 de outubro, às 14h30, no Senado.

Pastor ligado à igreja Batista, o senador Magno Malta é um dos parlamentares fiéis à bancada evangélica no Congresso. Defensor ferrenho do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, Malta já se opôs a um projeto de criminalização da homofobia e teve seu nome envolvido no escândalo dos Sanguessugas, no qual políticos foram acusados de desviarem recursos públicos na compra de ambulâncias. Ele chegou a ser denunciado na CPI dos Sanguessugas, mas foi absolvido na comissão de ética do Senado por falta de provas, segundo parecer do relator Demóstenes Torres, senador do DEM que em 2012 seria cassado por quebra de decoro, acusado de usar o mandato a serviço do bicheiro Carlinhos Cachoeira.

Os protestos contra a exposição promovida pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, alegavam que as obras faziam apologia à pedofilia e à zoofilia. A mostra abordava questões de gênero e diversidade em 263 trabalhos de 85 artistas, como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson e Yuri Firmesa. Na quinta-feira (28), o Ministério Público Federal recomendou a abertura imediata da exposição.

agência Saiba Mais conversou, por telefone, com o curador da exposição Queermuseu Gaudêncio Fidélis. Para ele, há um processo de criminalização da produção artística no Brasil.

 

Agência Saiba Mais – Como você recebeu essa convocação para depor numa CPI que investiga maus-tratos em crianças e adolescentes ?

Gaudêncio Fidélis – Eu já havia sido convidado para comparecer a CPI mas estava com muitos compromissos e declinei por razões profissionais. Mas agora foi uma convocatória. Parece que o objeto da CPI não é esse. Na verdade, essas movimentações todas têm um claro objetivo de criminalizar a produção artística e também de continuar consolidando os mecanismos de censura, mas em outra forma. As pessoas associam censura só àquela censura de gabinete, da época da ditadura, mas existem formas contemporâneas de censura. Estamos vivendo um período bastante complicado. Depois que a exposição foi fechada aconteceram vários incidentes: um espetáculo de teatro foi censurado, obras foram retiradas de exposições… é realmente um período complicado para a arte brasileira, para a produção artística.

Como ocorreram os primeiros protestos até o Santander decidir cancelar a exposição ?

A exposição estava indo bem, 26 dias em cartaz. Então alguns militantes do MBL começaram ataques muito agressivos, verbais, ao público e às crianças e adolescentes que estavam na exposição. Eles gravaram vídeos e criaram uma narrativa falsa e difamatória para colocar nas redes sociais. Começou na quarta-feira e durou dois dias. Depois, membros do MBL continuaram intimidando as pessoas, gritando coisas horríveis, que tinha pedofilia, zoofilia, pornografia… condenaram moralmente algumas obras até o Banco decidir encerrar. Na segunda-feira o Ministério Público Estadual, do Rio Grande do Sul, visita a exposição e diz que não há nada do que o MBL disse que tinha. O MP sequer recomendava faixa etária.

E na quinta-feira o Ministério Público Federal recomendou a reabertura imediata da exposição. O que achou ?

O MPF tomou iniciativa própria na qual eles reafirmam o que havia sido dito. O documento diz que o Santander tem 24 horas pra responder e ainda assinalam num item que o Santander tem que fazer reparação pública, fazendo outra exposição pelo tempo em que a Queer foi retirada. Então o MPF afirma nossas convicções de início, isso é uma falsa polêmica, a exposição não é isso que estão dizendo.

Como viu a repercussão ?

Olha, dei mais de 120 entrevistas para todos os órgãos de imprensa do Brasil e internacionais. New York Times, El País, La Vanguarda, de Barcelona, a imprensa entende e foi quem reabriu o diálogo sobre a exposição. Notei, na conversa com os jornalistas, que as pessoas ficaram consternadas. Não há precedentes na história do Brasil para o que está acontecendo.

Sua convocação para depor na CPI dos Maus-Tratos, por um senador da bancada evangélica, é um sinal desses tempos ?

É muito típico. Agora o fundamental para entender esse desvio de objeto da CPI é ver que essa é uma tentativa de criminalizar a arte, esse é o objetivo. A CPI não foi criada para julgar o mérito de obra de arte, elas não contém esses aspectos, isso foi uma narrativa criada pelo MBL, mas a CPI está fazendo isso, na pessoa do senador Magno Malta. É um desvio de objetivo.

Do que trata a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença da Arte Brasileira ?

É a primeira exposição Queer da América Latina e uma das quatro do mundo que trata de questões de gênero. As outras três aconteceram em Whashington (EUA), na Polônia e em Londres. Essa exposição foi criada sob a perspectiva de abrir diálogo sob esse vasto universo de questões da diferença, diversidade, identidade de gênero… mas isso dentro de um campo artístico, que a gente não pode perder de vista. É uma exposição muito importante sob o ponto de vista histórico.

A reação do público te surpreendeu ?

A exposição adquire um impacto mundial quando é fechada. Essa é a razão pela qual a sociedade e a comunidade internacional se indignam. Me parece que não é um fenômeno, já fiz mais de 50 exposições. Isso não é um fenômeno de mídia. A imprensa não me procurou para fazer sensacionalismo em nenhum momento. A mídia me procura em razão de um ato de absoluto autoritarismo que atinge uma exposição cujas questões levantadas são de interesse da população brasileira. Está claro pelas manifestações de profissionais. Também não podemos perder de vista que essas manifestações, essa falsa narrativa ganha adepto nas redes também através de robôs que a internet proporciona. Isso não é um clamor popular. Claro que depois que foi fechada, a atitude do Santander alimenta uma parcela considerável da sociedade, da extrema direita, fundamentalista, e isso cresce. Mas alguns desses protestos estão sendo feitos sem que as pessoas sequer vejam a exposição. E agora é que não podem ver mesmo porque foi fechada.

Você pretendia levar essa exposição para outras cidades brasileiras ?

A exposição acontecia só em Porto Alegre mesmo, mas agora existem inúmeros convites. No primeiro incidente, a secretaria de cultura de Belo Horizonte se manifestou em favor da exposição e isso vazou para a imprensa. E passaram a sofrer ataques massivos, então ficou bastante complicado. Mas recebemos convites para levá-la para Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

Uma das justificativas usadas pelo MPF para recomendar a abertura imediata da exposição é o fato da Queermuseu ter sido criada com financiamento público. Logo, o público não poderia ser privado de ter acesso à exposição.

O MBL constrói essa narrativa. Ele pega 4 obras da exposição de um universo de 263, juntam palavras-chaves e colam nessas obras. E então constroem essa narrativa. Quando o MPF diz que o argumento do MBL não procede, eles mudam a narrativa e passam a dizer que a exposição usou dinheiro público, que é dinheiro do imposto. Minha resposta para isso foi imediata: a lei Rouanet não foi criada como mecanismo de censura, não julga se as obras podem ou não podem ser exibidas. Os critérios são técnicos, não de mérito artístico. Segunda coisa: eles falam que essa exposição não poderia ser feita com dinheiro do contribuinte. Mas esse imposto é de todos, não é um grupo que vai decidir. Caso contrário fica caracterizada uma atitude de autoridade. Senão vamos ter que fazer um plebiscito para cada projeto aprovado na lei Rouanet. O mecanismo da lei é para permitir essa acessibilidade. Os impostos são pagos por toda a população brasileira, pelos que querem e pelos que não querem a exposição.

 

MPF recomenda abertura imediata da exposição

O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul recomendou a imediata reabertura da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença da Arte Brasileira pelo Santander até 8 de outubro, data em que inicialmente estava previsto o encerramento da mostra. Na mesma recomendação, o MPF determina que, a título de compensação pelo período em que a exposição permaneceu sem acesso ao público em geral, realize nova exposição.

– Em proporções e objetivos similares a que foi interrompida, preferencialmente com temática relacionada a diferença e a diversidade e que esteja aberta aos visitantes em período não inferior a três vezes o tempo em que a “Queermuseu” permaneceu sem visitação.

Na recomendação, o procurador da República Fabiano de Moraes é categórico ao afirmar que a justificativa do MBL para os protestos que levaram o Santander Cultural a cancelar a exposição não se sustenta:

– As obras que trouxeram maior revolta em postagens nas redes sociais não tem qualquer apologia ou incentivo à pedofilia, conforme manifestação pública, divulgada por diversos meios de comunicação, dos Promotores de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul com atribuição na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que estiveram visitando as obras.

O fechamento da exposição, ainda segundo a recomendação do MPF, é um ataque à liberdade de expressão artística e, como tal, traz de volta episódios perigosos do passado:

– O precedente do fechamento de uma exposição artística causa um efeito deletério a toda liberdade de expressão artística, trazendo a memória situações perigosas da história da humanidade como os episódios envolvendo a “Arte Degenerada” (Entartete Kunst), com a destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista;

Amparado na defesa da liberdade de expressão, o procurador da República também destaca que essa liberdade não se encerra com a abstenção do Estado. Segundo ele, é necessário ir além:

– A liberdade de expressão não se esgota no dever de abstenção do Estado em praticar atos de censura, necessitando também por parte dele e dos por ele patrocinados exercerem ações positivas visando a possibilidade real de exercício e o aprofundamento dos debates sobre os mais diversos aspectos da sociedade. Na atualidade moderna, os meios de comunicação virtual, exercem impacto, negativo ou positivo, sobre as pessoas, cabendo atuações positivas voltadas a não repressão de ideias, inclusive aquelas rejeitadas pela maioria.

O fato da exposição Queermuseu contar com financiamento indireto federal, via renúncia fiscal pela lei Rouanet de incentivo à cultura, é mais um argumento usado pelo MPF para pedir a imediata reabertura da exposição em razão da obrigação conjunta dos patrocinadores em cumprir o objetivo previsto.

Moraes defende ainda que as principais polêmicas que cercaram a exposição Queermuseu seriam contornadas, em grande parte, com a inclusão de informação, por parte dos organizadores, de aviso aos responsáveis por crianças e adolescente referente ao teor de algumas obras existentes na exposição, mesmo que tal exigência não exista no Estatuto da Criança e Adolescente.

 

 

Redação

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