Disputa de butim versus união democrática contra o fascismo, por Benedito Tadeu César

Os avanços sociais ocorridos ao longo do século XX, depois das duas Grandes Guerras Mundiais, impulsionados pela organização dos trabalhadores assalariados e pela ameaça de expansão do comunismo soviético, se esvaem rapidamente.

Disputa de butim versus união democrática contra o fascismo

por Benedito Tadeu César

Vivemos hoje, no Brasil e no mundo, um aparente paradoxo. De um lado, o avanço exponencial das ciências fazendo com que a humanidade rompa barreiras antes consideradas intransponíveis.

Vou citar apenas um exemplo. Estima-se também que dentro de algumas décadas a espécie humana terá criado condições para se tornar “amortal” ou seja, que a vida humana possa ser prolongada por tempo indeterminado e a morte ocorra apenas por causas violentas.

Esta situação, que nos parece ainda inverossímil, já é considerada plausível no mundo científico e hi-tech. Estamos, sem dúvida, no limiar de uma nova era.

Paradoxalmente, no entanto, a concentração da riqueza e do poder político se aprofunda em todo o mundo e, obviamente, também no Brasil.

Os avanços sociais ocorridos ao longo do século XX, depois das duas Grandes Guerras Mundiais, impulsionados pela organização dos trabalhadores assalariados e pela ameaça de expansão do comunismo soviético, se esvaem rapidamente.

O hiperindividualismo, em avanço em todo o mundo ocidental, coloca nas costas de cada um de nós a responsabilidade única pelo seu sucesso ou fracasso. As ações coletivas estão desprestigiadas e, cada dia mais, tornam-se procedimentos exóticos.

A política democrática, espaço do embate de opiniões e interesses distintos para a construção do bem-estar geral, foi criminalizada e seus agentes estão sendo desmoralizados.

Os pobres são considerados os “fracassados”, os que não conseguiram sucesso no seu “empreendedorismo” de vida. São eles os alvos preferenciais do novo fascismo que se espalha por todo o mundo, reduzindo as redes de proteção social existentes para todos os cidadãos.

Os pobres, juntamente com os negros, os moradores das periferias urbanas e os imigrantes, os índios, os gays e as mulheres emancipadas (todas e todos aqueles que não são considerados os cidadãos “bem-sucedidos, chamados de “cidadãos de bem”), são agora os “diferentes” a serem combatidos.

A democracia liberal, tão desprezada pela esquerda, que deseja algo além e muito mais radical, está em crise em todo o mundo e, por ser uma conquista civilizatória, merece ser defendida por todos nós. As causas desta crise têm sido amplamente debatidas. Aqui, basta relembrar que ela é resultado do avanço do ultraliberalismo, do capitalismo financeiro e da consequente crise do Estado de Bem-Estar Social.

A criminalização da política e dos políticos, que abriu as portas para a escalada populista autoritária com fortes traços fascistas no Brasil e no mundo expressa, na verdade, a falência do atual modelo de desenvolvimento econômico e social, gerado pelo “globalismo” neoliberal-financista. A chamada “falência da democracia” é uma evidência do desgaste do atual modelo econômico, social e político.

Os momentos de crise econômica são momentos propícios para se promover os retrocessos sociais. Desmobilizados pelas crises econômicas, os não detentores de capital, antigos assalariados e hoje precarizados estão se tornando maioria entre os trabalhadores. São os “empreendedores autônomos”, uberizados em todos os setores. Os “aplicativos” são hoje os maiores empregadores (?) / contratadores (?) (como dizer?) de pessoal no Brasil, já ultrapassando os 4 milhões de “colaboradores”, a nova denominação para os antigos assalariados.

Não irei me alongar na análise da conjuntura política e social brasileira, mas é forçoso refletir aqui sobre a crise que atravessamos no país e, nos limites estreitos de minhas possibilidades, pensar um caminho possível para a sua superação.

O processo de deterioração institucional em curso no país continua e não dá ainda sinais de arrefecer. A equipe da Lava Jato, incrustada no Ministério Público Federal, na PGR, no STF e no Ministério da Justiça pode praticar as ilegalidades tornadas públicas recentemente, pelo site The Intercept e outros veículos de mídia, porque foi respaldada pelas demais instituições republicanas brasileiras: o Congresso Nacional, o Poder Executivo em seus diversos níveis e escaninhos, grande parte dos partidos políticos, a grande imprensa e, finalmente, a opinião pública.

Tudo era considerado “legítimo” e, para muitos continua sendo, para afastar da disputa política a esquerda, apresentada como responsável pela crise do país, e, assim, eliminar os avanços sociais e econômicos garantidos pela Constituição Federal de 1988. Neste processo Dilma Rousseff foi retirada da Presidência da República e Lula foi preso.

Os partidos e as autoridades públicas, em sua grande maioria, foram e continuam sendo coniventes com a construção do caos institucional e o avanço do autoritarismo em curso no país.

O novo fascismo avança em todo o mundo e, como já ocorreu historicamente, com a conivência de grande parte dos cidadãos comuns, das elites econômicas e de muitos daqueles que ocupam posições chave nos espaços de poder político e nas instituições que deveriam zelar pelo respeito à democracia e aos seus princípios basilares: os direitos e deveres individuais e coletivos, a equalização social, a independência dos poderes, o desenvolvimento e a soberania nacional. Princípios que norteiam a Constituição Federal de 1998 e que estão consagrados já no seu preâmbulo.

A experiência histórica já provou que a única forma de se derrotar o fascismo em ascensão no mundo e no Brasil é a união de todas as forças democráticas. No entanto, a repetir os erros do passado, as diferentes forças políticas democráticas, especialmente no Brasil, da extrema esquerda à direita não extremada, ainda acreditam que poderão vencer a besta fera fascista agindo isoladamente, sem se aliarem, e, pasmem, ainda creem que obterão algum ganho com esse tipo de enfrentamento isolado.

Muitos, no centro, acreditam e se preparam para se apropriar do espólio das esquerdas, principalmente do PT e de Lula, que supõem moribundos. Outros, à esquerda, acreditam que se reerguerão apropriando-se das bases dos partidos de centro e centro direita, que, eles têm certeza, em pouco tempo se desiludirão com o governo Bolsonaro.

Todos se preparam para se apoderarem de um butim que ainda não existe e que não existirá tão cedo. Estão equivocados. O atual governo só cairá quando tiver promovido todas as medidas concentradoras de riqueza e destruidoras do incipiente Estado de Bem-Estar Social que se construía no Brasil, do qual a Constituição de 1988 é o grande marco. E, aí, muito pouco restará para ser resgatado.

Na verdade, Bolsonaro, assim como Trump, Erdogan, Duterte, Orbán, Macri, Moreno, Piñera, lideranças populistas de extrema-direita, ascenderam ao poder exatamente para isso – para destruir, desmontar e desregulamentar a chamada “antiga política” e, com ela, a “antiga” forma de organização social e de representação política. Colocaram em seu lugar o velho fascismo, que agora se apresenta (tra)vestido com nova roupagem.

Uma nova forma de fascismo que, felizmente, começa a dar sinais de esgotamento em algumas regiões do mundo, as recentes explosões sociais no Equador e no Chile são uma evidência disso, mas que demorará ainda muito para ser vencida.

A luta contra o fascismo, para ser vitoriosa, exige que as diferentes forças políticas, sem que nenhuma delas renuncie às suas bandeiras e aos seus projetos, suspendam temporariamente suas divergências e se unam na defesa da democracia.

A bandeira Lula livre, por exemplo, não pode ser imposta a todas as forças políticas democráticas, mas ela precisa ser levantada bem alto pelas forças democráticas de esquerda e de centro esquerda, pois os processos inquisitoriais a que ele foi submetido estão eivados de irregularidades e parcialidades, como afirmam diversos juristas e magistrados de renome internacional de diferentes partes do mundo.

Só com a união de todas as forças políticas democráticas será possível superar o caos institucional e o autoritarismo atuais, fazendo com que as divergências e as disputas possam novamente se instalar e, cada força política possa lutar, ainda com maior ênfase, por aquilo que acredita ser o melhor caminho para a construção do desenvolvimento nacional e do bem-estar coletivo.

Haverá estadistas, nos diferentes partidos democráticos do Brasil e do mundo, capazes de assumir esse desafio e empreender essa tarefa?

Na verdade, cabe a cada um de nós, cidadãos comprometidos com a luta social, nos esforçarmos para tornar possível a união de todas as forças dispostas a lutar pela democracia.

Benedito Tadeu César – cientista político*

*Discurso proferido na cerimônia de recebimento da Comenda Porto do Sol, concedida pela Câmara Municipal de Porto Alegre ao autor, no dia 25/10/2019.

Redação

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