A demarcação da terra dos Miquelenos, em Rondônia

Nassif, a propósito dos dois posts “O índio e a Constituição” e “O crime organizado na renovação do capitalismo brasileiro” os temas propostos têm íntima relação com a realidade vivida aqui em Rondônia. Estado da região Norte entre os maiores desmatadores (cerca de 40% do território já desmatado), a pressão contra comunidades ribeirinhas, quilombolas e indíginas é gritante.

Valendo-se da desinformação, políticos fazem palanque pregando o “progresso” rondoniense com base na agropecuária, com mais ênfase na pecuária de corte (mais ou menos 11 milhões de cabeças), apoiando o desmatamento e a hostilização de movimentos sociais em defesa das comunidades que disse antes.

Em 2009, fiz uma reportagem sobre a situação da Terra Indígena dos Miquelenos que até hoje não foi totalmente demarcada nem resolvida. São interesses conflitantes entre fazendeiros e políticos usando pequenos agricultores contra quilombolas, ribeirinhos e os indígenas, além de um emaranhado de pareceres discordantes dos órgãos governamentais como Incra, Funai, Ibama e agora ICMBio.

Precisamos voltar mais os olhos para fora do eixo RJ-SP-Brasília. As realidades do interior do Brasil contrastam imensamente com as discussões que afligem essas metrópoles e o centro do poder político do país.

Segue abaixo a matéria que escrevi e que foi publicada no Brasil de Fato.

Abraços.

Demarcação de terra indígena gera conflito no interior de Rondônia

Entre discursos e ameaças, Miquelenos continuam sem território

Luiz Augusto Rocha

São Francisco do Guaporé é um município do interior de Rondônia, distante 650 km da capital, Porto Velho. Conforme dados do IBGE, sua população é estimada em 16 mil habitantes, distribuída sobre uma superfície de 4.747 km². Convivem nessa área, duas comunidades de remanescentes quilombolas, uma etnia indígena e os brancos imigrantes das mais diversas partes do país.

Em princípio, poder-se-ia pensar em um lugarejo calmo e bucólico, imagem estereotipada que se faz do interior. Entretanto, pelo menos desde 2003, um impasse tem sido motivo de boatos, debates, relatórios, reportagens e ameaças de morte.

A etnia Wanyam, mais conhecida como miquelena, reivindica o território de onde foram expulsos quando da criação da Reserva Biológica do Guaporé. O líder indígena Juscinaldo Cardoso Tanadi conta que, em 2003, aconteceu a primeira reunião no município para se discutir o processo de demarcação da terra dos Miquelenos.

De lá até 2009, envolveram-se na questão a Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério Público, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Conselho Missionário Indigenista (CIMI) de Rondônia, lideranças políticas, os Miquelenos, pequenos e grandes proprietários rurais.

A última audiência pública sobre o assunto aconteceu no dia 07 de novembro deste ano, em uma escola do distrito Porto Murtinho, pertencente a São Francisco. Além dos mais de 200 pequenos produtores rurais, autoridades locais, como o prefeito Jairo Borges e os vereadores, o deputado estadual José Eurípides Clemente, a deputada federal Marinha Raupp e o senador Valdir Raupp compareceram à reunião.

O representante regional do Incra, João Luiz Esteves, participou da audiência assegurando a legalidade da posse de terras, entretanto, não foram chamados representantes da Funai, do CIMI ou dos indígenas, pessoas e entidades que foram citadas em audiências anteriores.

Palco perfeito para um palanque de campanha, as autoridades fizeram seus discursos na tentativa de tranquilizar os proprietários da região do Porto Murtinho de que suas terras não seriam tomadas por nenhum órgão público em favor dos indígenas. Falas corroboradas por João Luiz, quando ele disse que já estavam em processo de finalização as titulações dos lotes e das glebas assentadas ali.

Ao se retirar da audiência, o senador Raupp declarou que toda a culpa dessa situação seria do CIMI, que estaria encorajando os índios a requererem “uma terra que nunca foi deles”, referindo-se ao Porto Murtinho.

O prefeito Jairo e o deputado José Eurípedes também dirigiram seus ataques contra a Igreja Católica e o CIMI. O prefeito declarou que “estes padres não gostam de quem planta na terra, eles querem que a gente passe fome, fique mendigando e passando necessidade”.

O deputado, reportando-se aos clérigos espanhóis que vivem na região, perguntou “por que têm tantos estrangeiros nesta região?”, para ele, os padres “são todos espiões que querem explorar nossas riquezas”. Por fim, o parlamentar insuflou os presentes alegando que eles “precisam defender suas terras com unhas e dentes, nem que corra sangue na canela!”.

Houve uma tensão entre membros da Igreja Católica e as autoridades que compunham a mesa. A freira Thereza Canossa saiu em defesa do trabalho que vem sendo desenvolvido pela Igreja no município e a ação do padre Josep Iborra Plans, o “padre Zezinho”, que tem se destacado por sua atuação na Comissão Pastoral da Terra.

Em 16 de novembro, o bispo de Guajará-Mirim, D. Geraldo Verdier, chegou a São Francisco. Ao tomar conhecimento das declarações feitas na audiência, ele preparou um texto em resposta, declarando a posição da diocese e em favor do trabalho que vem sendo desenvolvido pelo padre Zezinho.

Foi redigida uma carta repudiando as declarações do prefeito Jairo Borges e do deputado José Eurípides Clemente. No texto, D. Geraldo afirma que as palavras do parlamentar são ofensas que atingem toda a Igreja Católica, lembrando-o de que a incitação à violência não é típica de lugares onde há lei. “Deputado, esta incitação à violência dá a impressão de que a Amazônia é uma terra sem lei! O senhor bem sabe não é verdade!”, diz um trecho da carta.

Em relação ao prefeito, D. Geraldo é direto e diz que ele “não conhece a atuação dos padres, das irmãs e dos leigos voluntários da Igreja Católica nesta região, desde 1932”. O texto ainda sugere, ao final, que qualquer pessoa, antes de acusar a igreja, procure conhecer o seu trabalho.

 

E os Miquelenos…

Em meio a tudo isso, os Miquelenos estão dispersos por Rondônia, sem seu território. O índio Tanadi lembra que, desde a época das expedições do marechal Rondon, que sua etnia vem sendo expulsa de suas terras e muitos dos índios sendo mortos. “Quando eles apareceram [as missões do Mal. Rondon], vieram outras pessoas, como os seringalistas que começaram a matar os índios. Porque é como dizem, tu tem uma terra, o cara vai lá, tem dinheiro, contrata pistoleiro para defender sua terra, então, quem entra lá não vai morrer?”.

Entretanto, ele pondera que os indígenas também lutam pelos seus territórios, dizendo que, “apesar do índio estar lá no mato, ele tem a mesma noção de que aquela terra é dele e, se é dele, vai defendê-la”.

No caso da área em questão, são cerca de 300 mil hectares que estão dentro da Reserva Biológica do Guaporé, em uma região conhecida como Limoeiro. Sobre o número de indígenas, Tanadi diz haver um problema sério, “porque muitos não são índios puros, puros… Ao todo são oito famílias, com mais ou menos umas 380 pessoas que estão em Guajara-Mirim, Porto Velho, Ariquemes, São Francisco e no Porto Murtinho”.

Por sua luta, “seu” Tanadi já sofreu ameaças de morte. Segundo ele, nunca falaram diretamente, mas, já estiveram em sua casa. O cacique garante, porém, que jamais tenha sofrido ameaças de fazendeiros. Isto porque vem sendo disseminada uma ideia errada de que os Miquelenos querem expulsar os moradores do Porto Murtinho. “Queremos o Limoreiro, lá é a nossa terra e defendemos isso desde que toda essa discussão começou”, enfatiza o líder.

Sobre sua condição de indígena, ele diz: “Infelizmente, eu me considero indígena, porque a situação hoje é de muito preconceito… As leis que existem fazem com que a gente seja tratado quase como bicho. Hoje, precisamos para tudo de uma autorização da Funai. E somos seres humanos iguais a qualquer outra pessoa”, afirma Tanadi.

Assim, 2009 vai terminando entre palanques e ameaças sem um caminho para a demarcação da terra do Miquelenos. Ainda se espera o índio que “surpreenderá a todos, não por ser exótico”, mas, por querer ser igual a qualquer outra pessoa.

Luis Nassif

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