A evolução do mito do Saci Pererê

Do Portal de Luís Nassif
Do Blog do Jornal O Dias

Monteiro Lobato e os quilombos

Por Marco Aurélio Dias

O povo brasileiro, caracterizado como mestiço, é mais palpável como uma cultura do que propriamente como uma etnia. Em muitos casos, a miscigenação cultural antecedeu a formação étnica do mestiço, iniciada, segundo Darcy Ribeiro, no “cunhadismo”, mecanismo pelo qual os portugueses casavam com as índias e se tornavam parentes dos nativos a fim de convencê-los mais facilmente a trabalhar na exploração do pau Brasil, a primeira riqueza detectada nas terras descobertas. Posteriormente, o Saci, personagem folclórico se converte no símbolo cultural do mestiço (o brasileiro) e na semente da formação da cultura brasileira, alavancando a miscigenação.

O Saci de Monteiro Lobato tem a força de um arquétipo racial e é o símbolo do Brasil mestiço e do sangrento período da escravidão. Originariamente, o Saci é um ente lendário da cultura indígena. Era um menino ameríndio de uma perna só. Tinha como função defender a natureza. Era uma espécie de guarda florestal. Talvez uma regra do legislativo oral da preservação do meio ambiente entre os índios. As escravas, que eram ótimas contadoras de histórias, transformaram o Saci indígena em Saci negro. Neste caso, o alinhamento foi fácil. Tudo aconteceu na época da escravidão.

NaquelNaquela época, quando os negros fugiam das senzalas iam se refugiar nos quilombos dentro das florestas. Assim como o Saci armava ciladas para os índios que destruíssem desnecessariamente as árvores, os arbustos, as florestas, etc., do mesmo modo os negros, que já tinham desenvolvido a dança ou luta Capoeira, armavam ciladas para os portugueses que iam até lá armados, tentando recapturá-los e levá-los de volta para o trabalho forçado. Então a reconfiguração do símbolo foi praticamente automática. Foi só tirar uma perna do escravo e dar cor negra ao Saci. Estava pronta a lenda do Saci que Monteiro Lobato ouviu das escravas.

Estava configurado o novo Saci, o Saci que Monteiro Lobato introduziu na sua nova fase literária. Visto por este ponto de vista, o imaginário coletivo daquela sociedade criou o arquétipo racial ou cultural como elemento representativo do tipo étnico brasileiro, o Saci. Ele então passa a ter uma carga cultural imensa. Sai da boca das aias e entra para as páginas dos livros. A função do arquétipo já era a mesma, praticamente. O Saci era um guarda florestal e defendia as florestas, as matas, os vegetais. Os quilombolas defendiam a liberdade. Eram negros corajosos que se rebelavam contra o cativeiro e contra o sistema de trabalho opressivo e sem direitos.

Trata-se a escravidão de uma relação social de trabalho mesquinha e unilateral, onde o patrão tem todos os direitos sobre a vida do trabalhador e este só tem deveres e obrigações com o patrão, como se o trabalhador aqui, no caso o escravo, não tivesse individualidade e nenhum interesse em si mesmo como pessoa. Então o negro se revolta e monta o quilombo escondido na floresta, preparando-se para uma eventual luta. Não havia discurso formalizado, mas estava implícita na luta dos negros, além do protesto contra a escravidão, a reivindicação dos direitos trabalhistas. Algo semelhante ao movimento moderno dos metalúrgicos paulistas que se sindicalizaram e lutaram contra os patrões.

Porque a relação básica entre os homens é de domínio. Um querendo ser mais forte do que o outro. Independente da forma, a escravidão do negro foi o processo da relação natural de domínio entre os homens. Neste caso, o negro era o mais fraco, e ficou na posição de dominado. Mas a verdadeira leitura desse processo natural de dominação é a relação de trabalho e de sobrevivência que se estabelece entre duas ou mais pessoas. É preciso se unir para sobreviver. Da união surge o trabalho e, imediatamente, uma luta para definir quem vai mandar e quem vai trabalhar.

Esse confronto entre patrão e empregado, mas na relação de senhor e escravo, vai ser transportado culturalmente para a figura do Saci que encarna esse período social da nossa história. Ele é o símbolo da miscigenação. Até o elemento europeu aparece naquele capuz vermelho, tipo capuz de Papai Noel e dos Sete Anões. Essas figuras miscigenadas viram símbolo, arquétipo, e passam a representar uma cultura, uma região, uma ética, etc. Foi o caso do Saci que emenda o arquivo filosófico de uma postura diante da natureza, enquanto arquétipo ecológico dos índios, com esse novo arquivo das lutas sociais do período escravocrata.

Depois os quilombos são transformados em favelas e a luta social do moleque saci (no caso estamos falando da figura do pobre, do marginalizado, do quilombado ou favelado, e, em última análise, do mestiço que aparece configurado com a problemática social, sem recursos, sem moradia, sem emprego, sem assistência social) vem se perpetuando por todo o Brasil. Os novos quilombos, como Canudos também, viraram redutos de todos os pobres e desassistidos. Verdadeiros laboratórios da miscigenação, ou o forno onde foi assada a etnia do povo brasileiro. Foi um processo que encarnou um período histórico revestido com as cores do negro, do índio e do branco, embutiu as reivindicações do negro, a exportação do pau Brasil e a relação sem ética entre as pessoas envolvidas na sobrevivência do Novo Mundo.

O negro de Monteiro Lobato, simbolizado nas histórias do Saci, tanto durante a escravidão quanto após a Lei Áurea, pode ser visto como símbolo do pobre moderno, do desprotegido e como um discurso de aceitação da sociedade. Aquele mandamento indígena que pedia para não destruir a natureza e o qual estava incorporado no Saci de tal forma que seu aparecimento na floresta estava condicionado ao fato de algum índio danificar os arbustos desnecessariamente, bem como a luta do Saci para aplicá-lo (a lenda diz que o Saci armava ciladas nas florestas contra as pessoas que danificavam os vegetais), essa conotação se converte na força de vontade do negro quilombola resistindo ao relacionamento injusto de trabalho.

Então o negro se transforma no Saci que agora pune o senhor e os feitores dentro do seu reduto que é a floresta. E as notícias de que os negros agora enfrentavam os senhores de engenho dando saltos (pois eles haviam inventado a capoeira justamente como uma forma de dança-luta) e armando emboscadas dentro das florestas – este foi o ingrediente que faltava para o alinhamento do Saci indígena com esse novo saci mestiço que se formava com a cor e as reivindicações dos negros. Na boca das aias aqueles negros fortes e altos que davam pulos e armavam emboscadas na floresta foram convertidos no saci mestiço que Monteiro Lobato usaria como personagem nos seus contos infantis.

Claro que o moleque Saci de Monteiro Lobato não teve uma conotação política ligada aos signos sociais que ele representava. De alguma forma, Monteiro Lobato ajustou ao Saci a opinião portuguesa acerca desse período da história, ou seja, que o negro fugido era um moleque (daí moleque Saci), um irresponsável e uma pessoa ilegal que havia fugido irregularmente ao seu contrato de trabalho (a posse legalizada pelo recibo de compra). Essa era a visão do português, pois as leis coloniais davam aos senhores o direito da escravidão. O negócio legal.

Portanto o negro fugido do cativeiro estava ilegal e era um moleque. Prefiro dizer que Monteiro Lobato desenvolveu uma maneira quixotesca e descompromissada com a História de ver o negro e a sua problemática social. Meio ao estilo do sem sucesso Cervantes, tenta uma última tacada literária, segue os passos do filósofo suíço Jean Jacques Rousseau e se volta para a educação infantil, passa a desenvolver a sua literatura para a infância, conta as mesmas estórias das aias, mas com essa visão social do português, e obtém sucesso com o seu Moleque Saci que é um tipo de negro malandro libertado pela Lei Áurea e sem direitos sociais. Belíssima a obra pedagógica de Monteiro Lobato, onde o folclore brasileiro está abundantemente registrado.

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Luis Nassif

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