A fagulha do Chile: um exemplo para os nossos manifestantes?

Comentário ao post “Classe média conheceu os abusos recorrentes na periferia

A fagulha do Chile: um exemplo para os manifestantes do passe livre no Brasil?

Poucos anos haviam parecido muitas décadas. Para a sociedade de um país que havia sido submetido a uma ditadura tão traumática como a abertura de uma verdadeira caixa de Pandora e despertado do pesadelo numa redemocratização repleta de sonhos coloridos, a democracia deixara um sabor demasiado amargo.

Submetida a constantes “choques de realidade”, a população presenciara a ascensão e decadência de uma geração de democratas e socialistas, que enterraram, um a um, os sonhos mais radicais  que haviam sido suas bandeiras não muito tempo antes. Era a política social-democrata “na medida do possível”. Assim o socialismo virou “crescimento com equidade social”, que derivou, de forma envergonhada e dúbia, numa mera administração do neoliberalismo.

Os antigos militantes dividiram-se em dois grupos. Uns, orgulhosos da pragmática capacidade partidária de agir com pouca margem de manobra, adotaram uma linha claramente defensiva, pois qualquer crítica pavimentaria o retorno da direita ao poder. Tornaram-se “autocomplacentes”. Outros, cada vez mais alijados do poder partidário, passaram a bater no próprio peito, num rito de autoflagelo pelo abandono gradual do próprio sentido de ser da esquerda. Enquanto os militantes debatiam asperamente, a população cada vez mais não via diferenças entre esquerda e direita. A juventude começava a desprezar “esses políticos”.

Mas não se tratava unicamente de um descrédito da política. Cada vez mais parecia que, no fundo, a vida consistia no velho e selvagem “cada um por si”. Cronistas da época sentenciavam que o espírito neoliberal alojara-se definitivamente nos corações e mentes dos cidadãos. A vida não seria mais do que sonhos de espetáculo e consumo, além de sangue, suor e lágrimas. Os defensores dos interesses do grande capital, travestido de promoção da concorrência e do empreendedorismo, sorriam placidamente, junto aos conservadores, os quais, a exemplo do que ocorria em outros lugares do mundo, especialmente em certo país anglo-saxão, aprenderam a usar os ventos do neoliberalismo em seu favor. A esquerda radical minguava. Iam restando apenas pequenos focos de resistência social e de refúgio na vida privada (para quem podia).

E então aconteceu. Uma fagulha. Poderia não ter sido nada demais, mas era a História a pregar peças. Da fagulha, um incêndio. Com direito a fogo nas ruas e tudo mais. Nada menos que um verdadeiro duplo twist carpado histórico quando quase ninguém o esperava.

Poderia ser o Brasil, mas refiro-me ao Chile. As primeiras manifestações vieram em 2006, com estudantes secundaristas protestando por aumentos nos preços dos vestibulares e das passagens de ônibus. A mídia, seguindo o procedimento padrão, tentou concentrar as atenções nos depredadores que apareciam nas manifestações (e que, desde então, tornaram-se uma constante nos protestos).  Surpreendendo a todos, os números das manifestações cresceram rapidamente. Michelle Bachelet, à época presidenta, não soube ler os sinais históricos. À sombra dos “autocomplacentes” do Partido Socialista, fez um par de promessas vazias, posteriormente não cumpridas, e esperou a baixada da bola. As imagens de vandalismo e a inexperiência dos jovens ativistas haveriam de enterrar suas aspirações. Business as usual.

Mas os pesadelos da elite política chilena apenas começavam. Algo definitivamente aconteceu naquele momento. Os estudantes secundaristas foram desmobilizados, mas permaneceu um mal estar no ar. É que a danada da História não tinha cumprido seus desígnios. Bachelet até se virou bastante bem no curto prazo. Cercada de marqueteiros e com um sorriso fácil, chegou ao final de seu mandato com alta popularidade, e os “autocomplacentes” respiraram aliviados. Mas o Partido Socialista, com suas rachaduras internas e algumas deserções entre os “autoflagelantes”, não conseguiu segurar o desempenho eleitoral da Concertação, a coligação com a Democracia Cristã. As eleições efetivamente foram perdidas para a direita. Parecia que o retorno da direita seria um cataclismo! Não foi.

Em 2011, eles apareceram de novo. Agora, estudantes universitários. Mais maduros, mais articulados em seu discurso. Inquebrantáveis em sua vontade. Assumidamente ativistas. Com asco “desses políticos”, mas, eles mesmos, inquestionavelmente políticos. Várias organizações de extrema esquerda participaram, inclusive o tradicional Partido Comunista, mas o movimento que se construiu nas manifestações não era vertical. Havia de tudo lá, e todos discutiam. E as manifestações, inclusive com os “violentistas”, voltaram, desta vez para ficar. Enormes, épicas.

Os estudantes mudaram tudo. É como se o Chile tivesse atravessado o Rubicão. A bandeira dos estudantes era uma só, a educação pública gratuita e de qualidade (no Chile, universidades são pagas, e a escola pública não está longe da brasileira em termos de qualidade). Conseguia apelar para segmentos da classe média e da classe baixa. Mas, subitamente, demandas que haviam passado mais de década reprimidas saíram à luz do dia. Nova Constituição, reforma política, reforma tributária, ataque às desigualdades econômicas regionais, eliminação definitiva da miséria, entrega de recursos naturais ao capital internacional, questão indígena, direitos GLSBT, etc., tudo foi posto na mesa, e não só pelos estudantes. Antes deles, governar era ter um bom marketing e uma boa gestão. Um mundo criado especialmente para a direita. Agora ninguém sabe mais o que é governar. Parece mais um pesadelo. Sebastián Piñera, que quase fora ao céu quando tirou os famosos 33 mineiros de uma mina soterrada no Norte, viu seu governo e sua imagem serem despedaçados. A resistência ao diálogo com os estudantes foi sua ruína.

Mas as coisas ficaram ainda mais estranhas na esquerda. Bachelet, que voltou ao Chile garbosa, pronta para aproveitar seu poderoso recall e faturar as eleições como quem faz um passeio pelo parque, foi rapidamente colocada contra a parede. Os estudantes não esqueceram a traição de 2006. Não esqueceram as festinhas entre os dirigentes do Partido Socialista e os grandes empresários. Mas, sobretudo, não esqueceram a capitulação de Bachelet ao neoliberalismo. A entrega dos recursos naturais, dos serviços públicos e de tudo que se pode comercializar ao grande capital não mais cheira bem. Não há mais contentamento com “o possível”.

Um episódio curto é ilustrativo. Ao chegar no Chile, Bachelet foi informada por seus “estrategistas” de que os empresários que financiam o partido não queriam educação superior pública e universal. Então, Bachelet tentou ir por um antigo caminho socialista, o do “avanço na medida do possível”. Disse que educação universal era algo bonito, mas que não era ético que sua filha de classe alta tivesse universidade grátis, sendo que podia pagar. Mal imaginaria ela que a resposta estaria no dia seguinte, na boca do povo: a universidade da filha de Bachelet seria gratuita, mas os impostos de Bachelet pagariam os estudos de sua filha e de “mais dez chilenos”. O neoliberalismo perdeu de vez os corações e mentes que ganhara. Velhas falácias não mais confundem os chilenos. O chileno, pela primeira vez em décadas, está vendo a universalidade e a justiça social como pilares para uma nova república.

Será uma mudança muito difícil, é verdade. O sistema político chileno de voto distrital sui generis herdado de Pinochet, com seu mecanismo “binomial”, foi feito para sufocar qualquer possibilidade de mudança ao statu quo, impedindo que transformações importantes tenham quorum no Legislativo. Perto dele, as dificuldades legislativas do Brasil parecem um conto de fadas. No entanto, a elite política está tão acuada, que o inimaginável aconteceu: Bachelet afastou-se definitivamente de seus antigos estrategistas do PS –e, portanto, dos lobistas–, e estabeleceu-se uma aliança entre o PS e o Partido Comunista que não se via desde o fim do governo Allende, em 1973. Uma aliança estranha não só pelo fato de juntar inimigos históricos, mas também por ser constantemente arrastada para a esquerda pelo clamor das ruas. No espectro político estabelecido, não há partido tão radical quanto os próprios cidadãos.

O que isso tem a ver com o Brasil? Não dá para ter certeza, mas pode ter sim, e muito. Por estes dias, vi Manuel Castells sugerindo uma comparação entre o movimento do passe livre e os indignados espanhóis. Certamente há comparações possíveis –e não poderia ser diferente, pois estamos no mesmo período histórico. Mas o Brasil não é a Europa. O Brasil, lembrarão alguns, também não é a Venezuela ou o Ecuador.

E o Chile? Apesar de ser um país minúsculo e totalmente baseado no que acontece na capital, Santiago, o Chile também entrou num processo de redemocratização que derivou em uma situação de grande imobilismo político. A esquerda pragmática de lá chegou ao poder muito antes da esquerda pragmática daqui. E o debate entre os “autoflagelantes” e os “autocomplacentes” do PS muito se assemelha à crescente tensão entre os tradicionais eleitores do PT.

A eclosão do movimento estudantil chileno não foi prevista. O PS de lá interpretou de forma completamente errônea a situação. Trair os estudantes foi um equívoco com grande custo, pois o PS é um partido hoje praticamente sem juventude. Ainda consegue mobilizar seus antigos eleitores, mas os jovens estão criando partidos próprios, que provavelmente contarão com a simpatia dos mais velhos quando conseguirem se estabilizar. As novas faces da política não vêm do PS, vêm das ruas.

Mais do que tudo, os estudantes viraram a mesa com uma velocidade inacreditável, unindo segmentos das classes média e baixa ao redor das mesmas bandeiras de universalidade e justiça social. Eles mesmos, os estudantes, atravessaram e induziram uma profunda transformação ideológica, como ocorreu talvez com a geração das Diretas Já nos anos 80. Tudo isso sem a ajuda direta dos partidos, que ficaram olhando entre atônitos e apavorados o que ocorria.

Não sei como terminará a história dos estudantes do Chile, e não sei aonde chegarão as manifestações do pessoal do passe livre. Mas compartilhei este relato absolutamente imperfeito neste espaço porque acredito sinceramente que os erros do PS e os acertos dos estudantes poderiam servir de inspiração e motivo de reflexão, respectivamente, ao PT e ao incipiente movimento de reivindicação de um sistema de transporte público universal, acessível e de qualidade.

Luis Nassif

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