A terceirização do terror de Estado

Assisti em primeira mão à chegada do tráfico na Rocinha, em 1979. Quem assassinava os líderes comunitários que se opunham à instalação de bocas de fumo e de cocaína no morro não eram os traficantes, eram policiais. Quem fazia a segurança das bocas não era traficantes armados, eram policiais à paisana. A terceirização desses serviços para os próprios varejistas só se deu muito mais tarde, quando os pontos de venda já estavam firmemente entrincheirados e não enfrentavam mais oposição local.

Não são policiais corruptos que são cúmplices do tráfico, é justamente o contrário: os pés-de-chinelo que comandam a distribuição varejista nas favelas é que são cúmplices menores em um esquema muito mais amplo, que vai até os altos escalões da República.

Desde o princípio, a generalização do varejo armado foi uma operação de terceirização do terror de Estado nas favelas do Rio de Janeiro. O que se instalou nos morros cariocas não foi o tráfico, foi um aparato de repressão e de terror contra a organização política dos moradores, que despontava com força no final dos anos 70 e prometia ser um dos pilares da luta pela redemocratização do país. A função do tráfico nesse esquema sempre foi a de financiar o aparato, operado por agentes recrutados entre os próprios favelados – e servir de escudo de visibilidade para as grandes operações de tráfico. Que o esquema se tenha desenvolvido até gerar lucros reais e passar a justificar-se por si próprio era de esperar; afinal de contas, vender drogas ilegais *é* um negócio lucrativo, mesmo na escala relativamente menor do varejo.

Acho que o plano de combate montado pelos governos federal e do estado do Rio – expulsar o varejo armado e as milícias e instalar UPPs – está essencialmente correto, principalmente se for seguido de ações concretas e sistemáticas contra o médio e o grande tráfico e contra a corrupção de agentes públicos. Este, porém, é um trabalho de muito mais longo prazo, e de poucs resultados palpáveis no dia-a-dia da população. O fundamental, no momento, era eliminar o terror da vida das comunidades submetidas ao domínio do varejo armado, reinstaurar o poder do Estado nessas vastas regiões de onde ele esteve ausente por quase três décadas – inclusive, entre outras coisas, para que essas comunidades possam organizar-se para contestar por si mesmas esse poder de Estado – mas esta é outra história.

Com a expulsão do varejo armado e das milícias dos morros, elimina-se a base de poder do escalão seguinte na cadeia do tráfico, o dos funcionários públicos corruptos de nível estadual, sobretudo na polícia e nos serviços alfandegários, e prepara-se o terreno para atacar a verdadeira fonte do problema, os grandes traficantes – de drogas e de armas – instalados nos mais altos escalões da vida política e econômica nacional. Nesse nível há parlamentares, grandes empresários, banqueiros, secretários de segurança e outras altas autoridades e, enquanto se prosseguir na política absurda e obviamente falida de “guerra ao tráfico”, eliminar uns será sempre abrir caminho para outros.

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Esclarecendo:

  • Nas presentes condições de criminalização do consumo de drogas, o tráfico não vai acabar. Os lucros são grandes demais para não estimular o apetite empreendedor de alguns. O que importa é não permitir mais que ele ocupe e aterrorize as comunidades onde operar. E, como bem disse o excelente Luiz Eduardo Soares, o modelo boca-de-fumo de partilha de territórios está superado. O tráfico moderno é o do delivery, que pode operar de qualquer lugar.
  • Sejamos realistas: o consumo de drogas precisa ser descriminalizado e tratado como questão de saúde pública, não de polícia. As modalidades de distribuição precisam ser discutidas e regulamentadas, e as penas para danos e lesões provocadas sob efeito de drogas (incluindo o álcool) precisam ser pesadas e exemplares – e infalíveis. Cheirou três taturanas, pegou um carro e atropelou alguém? Cadeia sem apelação, seja quem for.
  • O segundo grande mal que aflige os cariocas e todos os brasileiros na área de segurança pública é a corrupção policial. Restabelecida a convivência democrática nas favelas cariocas, o próximo passo deve ser a luta sem quartel contra a banda podre da polícia, das propinas no trânsito ao tráfico de drogas e aos esquadrões de carrascos.

Queria aproveitar para fazer uma homenagem rápida ao bravo delegado Hélio Luz, primeira alta autoridade policial do Rio de Janeiro a chamar as coisas pelo nome e a bater de frente com a corrupção policial. A frase que pronunciou depois de por em cana vários agentes da divisão antissequestros do Rio, “a partir de hoje, a divisão antissequestros não sequestra mais”, deveria ser impressa nas folhas de rosto de todos os manuais das academias de polícia do país.

Redação

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