O caso Selarón

Do O Globo

Selarón usou a própria arte para relatar ameaças de morte

Gravuras, a que O GLOBO teve acesso com exclusividade, foram feitas no dia 25 de novembro 

 Reprodução/Cezar Loureiro / Agência O Globo

Em novembro, Jorge Selarón exprimiu em sua obra a angústia diante das ameaçasReprodução/Cezar Loureiro / Agência O Globo

RIO – O pintor e ceramista chileno Jorge Selarón, de 65 anos – encontrado morto na manhã desta quinta-feira na Escadaria do Convento de Santa Teresa, que liga o bairro à Lapa – usou a própria arte para relatar a insegurança que vinha sentindo após ter recebido ameaças do ex-colaborador de seu atelier Paulo Sérgio. Em duas gravuras feitas no dia 25 de novembro do ano passado, o artista diz ter dormido num hotel depois de ter sido ameaçado de morte por Paulo. O texto de próprio punho foi escrito ao lado da imagem – que mistura seu rosto com o corpo de uma negra grávida, tema recorrente em sua obra.

O delegado titular da Divisão de Homicídios (DH), Rivaldo Barbosa, confirmou ter solicitado os dados referentes ao registro de ameaça feito por Selarón na 7ª DP (Santa Teresa), em 24 de novembro passado, véspera do dia em que o artista expressou sua angústia nas gravuras a que O GLOBO teve acesso com exclusividade. Rivaldo disse que todos serão chamados a depor. O delegado fez um pedido para que as pessoas denunciem por meio do Disque-Denúncia (2253-1177) qualquer informação referente ao caso:

— É preciso que as pessoas que conheceram o artista transformem a indignação com a morte dele em denúncias.

Na manhã desta quinta-feira, o delegado William Pena, da (DH), disse que a polícia não descarta qualquer hipótese para a morte do pintor.

Selarón foi encontrado com marcas de queimadura, no mesmo dia em que o GLOBO publicou reportagem com o próprio artista relatando sofrer ameaças. Ao lado do corpo de Selarón – autor do mosaico de cores que transformou os 215 degraus da escadaria num intenso ponto de visitação turística – havia uma lata de solvente de tintas.

Do O Globo

Morte de Selarón, ‘o maior artista popular do Rio’, mobiliza produtores culturais

Escadaria enfeitada pelo chileno já esteve em ensaio da ‘Playboy’ e ganhou elogios da ‘National Geographic’

‘Os riscos da Lapa só acabarão quando existir uma política de apoio ao território e as pessoas que vivem lá’, diz o diretor teatral Marcus Vinicius Faustini

  AFP PHOTO/ANTONIO SCORZA

O artista levou seu ateliê para a escadaria e, a quem puxasse conversa, contava sua história AFP PHOTO/ANTONIO SCORZA

RIO – Na escadaria que Jorge Selarón enfeitou, já houve de ensaio da “Playboy” norte-americana, que ele costumava lembrar com um sorriso faceiro no rosto, até fotos de famílias do mundo inteiro em viagem ao Rio. Pelos enfeites dele, a escadaria foi definida como “a maior escultura no mundo feita por um único indivíduo” pela “National Geographic”, revista que o artista chileno carregava consigo numa pasta entre tantos outros recortes elogiosos sobre seu feito.

 

Desde o início dos anos 1990, motivado pela Copa do Mundo de 1994, o chileno passou a alinhar os azulejos nos 215 degraus que saem da rua Joaquim Silva, na Lapa, e vão dar na Ladeira de Santa Teresa. Segundo ele mesmo, estavam ali mais de 2 mil azulejos vindos de quase 60 países — ele vagou desde os 17 anos, quando deixou o Chile, por 57 países da Europa, Ásia e América até se fixar de fato no Rio, em 1983. Para se manter, também segundo contabilidade dele próprio, vendeu cerca de 25 mil telas que produzia obsessivamente (algo como cinco ou seis por dia), retratando uma figura recorrente, a de uma mulher negra grávida, tema sobre o qual preferia não discorrer muito por “motivos pessoais”.A quem se sentasse na escadaria e puxasse conversa, Selarón contava sua história com um tom entre vaidoso e bonachão. Nas frases, costumava alinhar o próprio nome ao lado dos de Picasso, Michelangelo ou Gaudí (este era tido por ele como “menor”). Desde a manhã desta quinta-feira, os degraus estão “órfãos”. O homem que enfeitou a Escadaria do Convento de Santa Teresa foi encontrado morto sobre sua obra, que acabou mais conhecida pelo apelido que remete a seu “criador”: Escadaria Selarón.

Para o diretor teatral e produtor cultural Marcus Vinicius Faustini, coordenador do programa Agência de Redes para a Juventude, Selarón foi quem “reinventou aquela escadaria, artista contundente sem afetação nenhuma”.

— Podem dizer que estou forçando a barra. É que claro que algumas decisões pessoais podem ter levado nosso mestre a esse risco. Entretanto, é importante ficar claro que “os riscos” da Lapa só acabarão quando existir uma política de apoio ao território e as pessoas que vivem lá. E não apenas para incentivos ao mercado do entretenimento — afirmou Faustini.

Com ateliê há mais de dez anos naquela rua, Raul Mourão também vê a grandeza de Selarón, “o maior artista popular do Rio”, em contraponto ao cenário caótico da Lapa. Ele conta que Selarón, antes de fixar seu ateliê na escadaria, vendia obras pelos bares e restaurantes das redondezas até perceber que ali, ao lado de seu trabalho mais famoso, venderia mais e poderia seguir se dedicando à obra da escada. Nela, acrescentava azulejos que ganhava dos turistas ou que trazia das viagens que ele mesmo fazia.

— A escadaria é uma obra inacabada. Ele nunca parava de incluir azulejos, estava sempre erguendo mais um espaço, enchendo mais uma parede — conta Raul. — Em mais de dez anos que eu trabalho lá, não houve um só dia em que eu passei ali e não vi dezenas de turistas. O poder público nunca sinalizou, nunca fez calçamento, nunca iluminou decentemente aquele lugar, apesar de ser um marco, um ponto turístico dos mais importantes do Rio de Janeiro.

Há três meses, Raul vinha entrevistando o artista que, defende ele, foi capaz de construir “com as próprias mãos e os próprios recursos uma obra de arte pública, sem esquemas com políticos, sem edital e sem produtor”. Em 2005, a Escadaria Selarón foi tombada pela prefeitura, que concedeu ao chileno o título de Cidadão Honorário.

— Foi um dia terrível na minha vida. Perdi um amigo, perdemos um artista — diz ele, com a voz embargada. — E se esse artista morreu de forma tão trágica foi pela omissão dos políticos que deixaram a escadaria abandonada, assim como está abandonada toda a Lapa. E, assim, nesse contexto, ele era mais um maluquinho entre os maluquinhos. Os reais assassinos de Selarón são o prefeito e seus secretários.

O ator e diretor Enrique Dias, que até recentemente integrava a Cia. dos Atores (com sede na escadaria), compara Selarón ao Profeta Gentileza.

— São os dois maiores artistas populares do Rio. Eu até diria que gentileza gera a Escadaria Selarón — diz ele, citando a frase que Gentileza pintou nos muros da cidade (”Gentileza gera gentileza”). — Selarón fez uma ação de cidadania tão forte e tão espontânea. Seu trabalho é uma obra arquitetônica diária, um ótimo motivo para pensar no espaço público na Lapa. É um lugar central da cidade, charmoso arquitetonicamente, de efervescência e que se tornou um ponto turístico por causa de Selarón.

Luis Nassif

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