A judicialização da Hepatite C

O problema da judicialização na Hepatite C 

Por Bruno de Pierro, do brasilianas.org

No último dia 23 de maio, a Food and Drug Administration (FDA), órgão de controle de saúde dos Estados Unidos, aprovou a fabricação de um novo medicamento para a hepatite C. O Incivek – nome comercial do componente Telaprevir -, ao contrário das drogas existentes, ataca diretamente o vírus da hepatite, e por isso já é considerado uma revolução por médicos e portadores da doença. Uma semana antes, foi aprovado o Victrelis (Bocepevir), que também deverá aumentar as chances de cura. A revolução, porém, não atinge o preço do tratamento com esses medicamentos. Assim como os remédios convencionais, o Incivek e o Victrelis custarão aproximadamente 50 mil dólares.

Considerada a maior epidemia de todos os tempos, a hepatite C é conhecida como “o assassino silencioso”. Ao contrário das outras hepatites, A e B, boa parte dos casos de hepatite C não apresenta sintomas na fase aguda da inflamação do fígado. O paciente pode conviver por décadas com a doença, e só perceber que algo está errado quando os olhos ficarem amarelados e a barriga e as pernas incharem. Geralmente, esta é a etapa na qual o portador do vírus precisa de um transplante do fígado.nobrasNo Brasil, estima-se que a hepatite C atinja 3 milhões de pessoas. No mundo, são 200 milhões, cerca de 3% da população mundial. Por ano, 1,5 milhão de pessoas morrem devido a suas complicações. A Aids, por exemplo, tem hoje 32 milhões de infectados em todo o mundo. Apesar de ser maioria, a hepatite C é menos “popular”, exatamente pela forma “discreta” com que agride suas vítimas. Muitos, aliás, não sabem que possuem o vírus. Dos 200 milhões de portadores, apenas 10% sabem que tem a doença. Pesquisadores fizeram essa constatação, após observarem que de cada 100 pessoas que doavam sangue, duas descobriam que tinham hepatite. O exame que detecta o vírus é feito desde 1992.

Diferente da Aids, cujo coquetel de remédios acompanha o paciente por toda a vida, a medicação da hepatite C não exige casamento tão duradouro com seu portador. A duração varia de seis meses a um ano. Mas se o processo terapêutico da hepatite C é mais curto, isso não ocorre de modo tão democrático. Pessoas que estão infectadas com o vírus de genótipo 1, o mais agressivo dos seis genótipos da doença, encontram mais dificuldades para responder ao tratamento logo na primeira vez. Em alguns casos, precisam do retratamento, ou seja, a repetição do processo.

A nova medicação, que pode começar a circular no país ainda este ano, deverá aumentar as chances dos pacientes que possuem o genótipo 1 do vírus. No Brasil, prevalecem os genótipos 1 – o mais freqüente no mundo e também o mais difícil de curar – e o 3, com predominância que varia de 30% a 50%, dependendo da região do país. Conforme explica o chefe do Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia do Hospital das Clínicas e professor da Faculdade de Medicina da USP, Flair José Carrilho, os portadores do vírus com genótipo 3 costumam responder bem ao tratamento convencional, feito com o Interferon e a Ribavirina.

Durante os testes nos Estados Unidos, os pacientes naive (que ainda não receberam nenhum tipo de tratamento) chegaram a responder 79%, do grupo de genótipo 1. Sob tratamento convencional, o índice é de 46%. Os testes também indicaram aumento de resposta ao tratamento em pacientes que chegaram a negativar o vírus após tratamento clássico, mas que meses depois do fim do processo, voltaram a manifestar ação do vírus. “Nestes casos, em que o vírus não é aniquilado, mas sim inibido, o índice foi de 86% de resposta efetiva com a nova medicação”, afirmou Carrilho.

A judicialização C

Há cerca de um ano, pouco antes da Copa do Mundo na África começar, Humberto Silva recebeu o diagnóstico de hepatite C. Mais assustador do que descobrir que era portador da doença, foi saber que o vírus, segundo estimativa do médico, consumia seu fígado havia um tempo considerável, aproximadamente 36 anos. Provavelmente, o vírus foi contraído quando Humberto, aos oito anos, passou por uma cirurgia de apendicite e teve que receber sangue durante uma transfusão. À época, o exame para hepatite não existia e, devido à comedida ação do vírus, Humberto nunca desconfiou de nada. “Vimos que eu já estava com cirrose hepática, às portas de um transplante”, conta. Por “sorte”, o vírus detectado era de genótipo 3, mais disposto a responder ao tratamento, atualmente em andamento.

Humberto, que hoje é presidente da Associação Brasileira de Portadores de Hepatite (ABPH), não teve negado o acesso ao tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas não são todos os pacientes que conseguem o mesmo. Portadores de genótipo 3 ou que precisam do retratamento, como ocorre com freqüência com o genótipo 1, tem enfrentado barreiras no balcão do SUS.

“O SUS tem optado por cuidar dos casos mais avançados. O retratamento tem sido negado pelo SUS, como se pensassem que se a pessoa não foi curada na primeira vez, então não terá cura na segunda tentativa”, explica Humberto.

Para o advogado e especialista em questões de saúde Carlos Alberto Pessoa, o Estado tem obrigação de fornecer a medicação contra a hepatite C. E, quando o cidadão encontra barreiras, a opção é entrar com ação judicial. “Tenho mais de 50 clientes que me procuraram para realizar esse tipo de ação judicial, e nunca tive uma liminar indeferida. Existe, na Constituição Federal, a garantia à saúde”. Pessoa também foi portador da doença, mas há quatro anos está com o vírus negativado. “Fui meu primeiro cliente”, brinca.

No próximo mês, o governo federal lança o Plano Nacional de Combate às Hepatites Virais. Em nota enviada ao Brasilianas.org, o Ministério da Saúde (MS) afirmou que a atual recomendação de tratamento da hepatite C já prevê o retratamento, mas classificou como preocupante a “naturalização” das ações judiciais. De acordo com a nota, “não há dúvidas que a indústria farmacêutica, com apoio de alguns atores sociais, exerce influência sobre as pessoas que buscam tratamento, o que não contribui para o avanço da resposta e estes agravos no campo da saúde pública”. O ministério ainda afirma que este circuito possui interesses comerciais e financeiros evidentes, o que se contrapõe à política de saúde.

Pessoa reconhece que o tratamento é caro e que a produção das drogas está restrita a poucos laboratórios no mundo, que fazem altos investimentos e, por consequencia, esperam o lucro. Mas não concorda com a justificativa do Ministério da Saúde. Segundo o advogado, cabe ao governo brasileiro negociar melhores preços com os laboratórios. “O governo, que é o principal comprador dessa medicação no país, tem poder para mobilizar os laboratórios, para que os remédios sejam mais acessíveis”.

Na avaliação do MS, o preço com que estes medicamentos foram registrados nos EUA é um desrespeito ao direito das pessoas em ter acesso à saúde. Os gastos semanais por paciente é de aproximadamente 1.100 dólares, o que, para o ministério, inviabiliza o acesso das populações de países de médio e baixo desenvolvimento. O fato é que, com a nova medicação, que será utilizada em parceria com a anterior, pessoas com genótipo 1 (65% da população em tratamento) que não conseguem obter resposta no primeiro tratamento, apostam todas as fichas nas novas drogas. “Imagina que, em 20 anos de tratamento, esses que fracassaram, o que fizeram? Estavam esperando surgir coisa nova. O acúmulo dessas pessoas que não se curaram vai bater na porta do SUS no dia seguinte à aprovação dos remédios no país”, observou Humberto.

De fato, o ministério terá uma conta muito grande para pagar. Segundo a associação presidida por Humberto, em 20 anos de tratamento, metade das pessoas não conseguiram se curar. O que ocorre é que casos muito graves, em que o tratamento à base de medicação não é mais viável, a solução está no transplante do fígado – que também se configura em longas filas de espera. Entretanto, o transplante sai mais barato ao SUS do que os remédios.

“O tratamento com uma droga dessas, de quase 50 mil dólares, é mais caro do que um transplante de fígado”, explica Carrilho, da USP. Para o médico, o ministério terá de definir quais serão as prioridades, após a aprovação dos novos compostos. “É uma questão de prioridades. Não podemos pensar unilateralmente. O ministério terá que dizer se tem condições de abrir [os novos remédios] para todos os casos, ou não, como primeira opção”.

O Inquérito de Prevalência da Hepatite C no Brasil, contudo, já forneceu as respostas ao ministério. Segundo o documento, existe uma prevalência de 1,4% de portadores nas capitais. Extrapolando os dados para os municípios do interior, estima-se que cerca de 1,5 milhão de pessoas sejam portadoras da hepatite C (diferente da estimativa da ABPH, de 3 milhões). Diante disso, a ANVISA deverá indicar o Telaprevir e o Bocepevir para pacientes experimentados no tratamento e que apresentaram recidiva virológica, ou seja, “que alcançaram supressão viral completa no término do tratamento, mas que voltaram a apresentar carga viral detectável, identificada pelo exame de carga viral da hepatite C após seis meses do término do tratamento”. Em outras palavras, o retratamento.

O MS ainda informou à reportagem que o processo de conclusão do registro, até a definição do preço dos medicamentos, definição dos critérios de utilização e sua introdução no SUS, permitirá um trabalho junto à rede de serviços e aos médicos, definindo parâmetros adequados para sua utilização. Pacientes que portem genótipo 3 do vírus não estão, por enquanto, nos planos. “A indicação [da nova medicação] é exclusiva para pacientes com genótipo 1 do vírus”, salientou o ministério. A absorção, no entanto, será gradativa, de acordo com a demanda.

Mas para Pessoa, a demanda pouco importa. “Havendo prescrição médica, não importa a medicação ou se é uma pessoa com genótipo 3, nós vamos conseguir. O SUS tem a obrigação constitucional de fornecer essa medicação”, argumenta, ao chamar a atenção também para a recusa ao pagamento de procedimentos realizada pelos planos privados de saúde.

Em meio ao que está por vir com a aprovação do Telaprevir e do Bocepevir no Brasil e às implicações referentes ao acesso a eles por meio do SUS, Humberto lembra-se do mais importante. Um apelo para que os médicos, de todas as especialidades, peçam o exame de detectação da hepatite C. Um dos raros consensos entre todas as partes.

Luis Nassif

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