Diplomacia e projeto nacional

Por Guilherme Patriota

Prezado Luis Nassif,

Agradeço a oportunidade de participar do painel de abertura no seminário sobre diplomacia comercial, em representação do professor Marco Aurélio Garcia. Acabei tentando seguir o tema “O Brasil no Mundo” de uma forma mais ampla, ao invés de falar, propriamente, sobre comércio (o que poderia ter feito também).

Caso considere útil, transcrevo abaixo as anotações que utilizei para a minha apresentação (com algumas revisões a posteriori).

O Contexto Internacional

Globalização comercial expande-se para a área financeira, da ciência e tecnologia, e dos valores (democracia, meio ambiente e direitos humanos). Há transformação dos padrões produtivos, de consumo, de comunicações (era digital, que encurta distâncias, aproxima geografias reduz o hiato que separa culturas e regiões do mundo). O processo de globalização, porém, é sujeito a crises recorrentes, as quais sinalizam esgotamentos de determinados modelos de desenvolvimento. Ocasionalmente, como na última crise iniciada em 2008, há oportunidade para uma projeção relativamente maior de países na periferia do sistema, quando conseguem isolar-se do contágio externo e assumem projetos nacionais de desenvolvimento consistentes. Esse seria o caso do Brasil na crise atual do sistema financeiro e econômico mundial.

O enfraquecimento do núcleo duro do capitalismo moderno nas principais economias desenvolvidas, o que se verificou com a crise da hiper-expansão do capitalismo financeiro desregulado e o surgimento de novos atores com projetos nacionais consistentes e bem sucedidos, como os BRICs, sinaliza possível fim da era bipolar do pós-guerra fria. Estaria em curso processo de regionalização das relações internacionais, que embasa um mundo multipolar e oferece a oportunidade para o revigoramento do multilateralismo.

A expansão econômica do pós-guerra, apesar de assimétrica e desigual, gerou riqueza e elevou o padrão de vida em muitas regiões do mundo, integrando novas áreas produtivas importantes (China, Índia, Brasil) ao mercado global. Valores exportados pelo mundo ocidental desenvolvido nesse processo expansionista — como democracia representativa e desenvolvimento sustentável com respeito aos direitos humanos — precisam ser também observados no plano internacional, nas relações entre Estados. O Brasil trabalha por maior democracia e representatividade, não só no plano nacional, mas também nos órgãos globais de governança: nas áreas comercial (G20 comercial, na OMC); financeira (G20 financeiro e reforma de quotas e participação nas instituições de Bretton Woods) e em questões de paz e segurança coletiva (reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas).

O Projeto Nacional

Os indícios de uma inflexão histórica positiva do projeto nacional brasileiro durante os últimos anos são cada vez mais claros e reconhecidos, tanto no plano doméstico brasileiro (processo eleitoral no qual a política econômica e social vigente é apoiada, com nuanças, à esquerda e à direita), quanto internacionalmente (prestígio brasileiro refletido na grande imprensa e nos meios especializados internacionais). Começamos, finalmente, a avançar em nossa busca pela realização do amplo potencial do país (um dentre poucos “países monstros”, conforme definiu o diplomata norte-americano George Kennan). Essa empreitada requer sobretudo superação do legado histórico brasileiro caracterizado por “déficits” de democracia, de desenvolvimento, de inclusão, de mercado, de educação, etc. No flanco externo, somos confrontados, simultaneamente, por complexa agenda sócio-ambiental. Tanto a superação do legado histórico brasileiro (deficitário) quanto o enfrentamento da agenda externa sócio-ambiental exigem a retomada do desenvolvimento econômico com inclusão.

Nos últimos anos, o Brasil apostou em um projeto nacional cuja consistência, eficácia e credibilidade são de amplo reconhecimento, tendência que fortalece em muito as condições de projeção diplomática do país.

Projeção Diplomática

O papel da diplomacia consiste em promover uma articulação entre o contexto internacional e o projeto nacional. Este último, quanto mais consistente e eficaz mais peso dará ao país em sua busca por um lugar ao sol na hierarquizada ordem mundial. Sob todos os ângulos, tanto o contexto internacional quanto o doméstico oferecem oportunidades únicas para que o Brasil passe hoje a ocupar um lugar central no mundo.

Não há tema da agenda internacional para cujo encaminhamento o Brasil não se tenha tornado país indispensável: –

nas negociações multilaterais de comércio (a Rodada Doha ao amparo da Organização Mundial do Comércio) a articulação de grupo de países em desenvolvimento pelo Brasil (o G20 comercial, criado por iniciativa brasileira na reunião ministerial de Cancun, em 2003) constitui elemento fundamental para qualquer desfecho negociador, ao contrário de experiências vividas em negociações anteriores, ns quais ficávamos a reboque dos chamados “majors” ou “quad” (EUA, União Européa, Canadá e Japão); –

no contexto da crise financeira de 2008, o Brasil, entre outros países em desenvolvimento de maior projeção, foi chamado a contribuir em pé de igualdade para as decisões a respeito das respostas coordenadas ao choque vivido nos grandes centros do capitalismo. Isto ocorreu no marco do G20 financeiro, grupo elevado ao nível de presidentes, que poderá lidar não só com questões técnicas financeiras, como as reformas nas estruturas da governança financeira mundial e da regulamentação bancária (FMI, Banco Mundial, Junta de Estabilidade Financeira) como, eventualmente, com qualquer outro tema que algum chefe de estado de país membro considere pertinente suscitar (cooperação para o desenvolvimento, protecionismo comercial, ou a idéia do Presidente Sarkozy de mitigar especulação em matéria de produtos de base). –

– o âmbito de governança mundial tradicionalmente mais refratário à participação de novos atores seria aquele que lida com questões de paz e segurança coletiva: o Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Brasil tornou-se também um dos países líderes do movimento pela modernização do Conselho, com a ampliação do número de membros permanentes e não permanentes, de modo a refletir a correlação de forças e a realidade do mundo atual, e não aquela do final das grandes guerras, sessenta e cinco anos atrás. Nas negociações diplomáticas com o Irã, para as quais o Brasil foi chamado a contribuir, ficou claro que países importantes que não integram o Conselho de Segurança da ONU em caráter permanente, como Brasil e Turquia, podem lidar diretamente com questões relacionadas à paz e segurança. Ações diplomáticas diretas por novos atores em áreas anteriormente consideradas “sensíveis demais” para serem tratadas fora do clube fechado dos “cinco grandes” membros permanentes do CSNU evidenciam o envelhecimento daquela estrutura decisória do pós-guerra e a urgência de sua reforma. –

Seria difícil, enfim, imaginar o encaminhamento de qualquer tema da agenda internacional, hoje em dia, sem a participação do Brasil ou sem consulta aos interesses brasileiros em cada setor: além dos campos comerciais, financeiro e de paz e segurança, acima apontados, essa assertiva seria tanto ou mais verdadeira caso estivéssemos falando de negociações sobre mudança climática, biodiversidade, florestas, energia (tanto fóssil quanto renovável); ciência e tecnologia; propriedade intelectual, saúde, políticas públicas de proteção social e inclusão, questões de gênero, questões de valor (direitos humanos, políticas contra a discriminação racial, assuntos indígenas, direitos sexuais e reprodutivos e orientação sexual); Cooperação Sul-Sul e solidariedade internacional vis-à-vis a África e os países necessitados da América Latina e Caribe, usos pacíficos da energia nuclear, desarmamento nuclear e criação de zonas livres de armas nucleares, diversidade cultural, governança da Internet e políticas de acesso a bens culturais, “software livre” e diversidade lingüístico-cultural, entre muitos outros temas; –

Parece claro que o Brasil já ocupa hoje um lugar central no mundo. Significa que, queiramos ou não, o país será chamado a opinar e a posicionar-se sobre praticamente todas as questões importantes de uma agenda internacional cuja relevância para as políticas públicas domésticas dos Estados cresce a cada dia, tornando menos clara a separação entre o interno e o externo. –

A nova diplomacia comercial brasileira distingue-se, portanto, das anteriores: (a) pela sua maior amplitude temática, pois não se restringe apenas a comércio no sentido tradicional, mas leva em consideração maior número de vetores, como emprego, integração física e energética regional, cadeia produtiva, inclusão social, interesses de longo prazo em matéria de ciência e tecnologia e inovação (a “Agenda para o Desenvolvimento” na OMPI e a agenda agrícola na OMC); (b) pela sua maior amplitude geográfica (acordos com novos parceiros emergentes e países em desenvolvimento); (c) pela maior relevância conferida às esferas regionais latino-americana- caribenha e Sul-Sul de modo geral. Por exemplo, na nova diplomacia comercial brasileira, não se troca mais, como em negociações anteriores, capítulos substantivos contendo normas assimétricas em matéria de propriedade intelectual por concessões tarifárias pontuais e incompletas em setores do comércio internacional de bens de baixo valor agregado (essencialmente de interesse importador das economias maiores). Queremos a liberalização substancial do comércio agrícola internacional como condição para aberturas adicionais em bens industriais, assim como regras de propriedade intelectual que permitam políticas públicas de acesso a medicamentos genéricos mais baratos e que reduzam o grau de pirataria internacional em torno da biodiversidade concentrada no Brasil e em outros países em desenvolvimento. * *

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Luis Nassif

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