A paz dos cemitérios: a irresponsabilidade do discurso da estabilidade, por Frederico Firmo

A discussão do momento é o movimento de retorno às aulas. Obviamente capitaneado pelo setor privado.

Foto Agência Brasil

A paz dos cemitérios: a irresponsabilidade do discurso da estabilidade

A grande mídia beirando a irresponsabilidade faz um discurso dúbio sobre a pandemia. Por instantes traz especialistas, da linha de frente do combate a epidemia, que gritam e imploram por um pouco mais de racionalidade. Na sequência dedicam um bom tempo do noticiário às medidas de flexibilização do isolamento e de estudos para o retorno das atividades econômicas. Especialistas ligados a governos e prefeituras divulgam os seus protocolos e medidas para o retorno. O retorno é tratado como fato, uma decorrência natural que necessita apenas regras e planejamento. Mesclando notícias sobre a abertura nos países Europeus e ou Asiáticos, onde a epidemia já está em seu estágio final, vão criando o cenário para que estados e prefeituras lancem mensagens confusas sem saber se enfrentam a epidemia ou as pressões empresariais. Governadores e prefeitos falam em medidas restritivas ao mesmo tempo que exibem seus planos, datas e protocolos de flexibilização. Para se precaver ameaçam que se não funcionar tomarão medidas duras.

A discussão do momento é o movimento de retorno às aulas. Obviamente capitaneado pelo setor privado. No discurso para justificar o retorno os empresários escolares falam sobre exclusão digital e desigualdade social. Um argumento deveras suspeito quando sai da boca das escolas privadas. Todos sabemos que os estudantes de escola privada são os que tem mais condições para enfrentar um estudo remoto. São acompanhados no discurso pelo restante do empresariado que usam o desemprego como argumento para o retorno. Neste cenário o retorno das atividades econômicas se torna autoevidente. A experiência em criar narrativas na política tornou a mídia especialista em criar cenários subliminares e narrativas que colocam em dúvida fatos e tornam autoevidentes certas conjecturas. Os fatos mostram que o país mantém a assombrosa média de 1000 mortes diárias, há quase 4 meses. Sem contar prováveis subnotificações. Na TV, gráficos são apresentados no mesmo formato do boletim meteorologico ou notícias da bolsa . Se fala de uma tal de média móvel e enfatizam quando esta oscila para cima ou para baixo. Chamam atenção para a quase constância desta média que resolveram chamar de estabilidade. E mostram no país uma grande mancha amarela de estabilidade com palavras de tranquilização. Mas olhemos o que significa esta estabilidade.

O gráfico mostra um achatamento da curva de mortes por dia. A linha em vermelho mostra que o número de mortes diárias está quase constante. Meses atrás o termo achatamento da curva como sinal de estágio final da epidemia e isto tem confundido muito a população. No entanto, a curva que deveria se achatar não é esta do gráfico, de mortes por dia, mas sim a de mortes acumuladas. O achatamento e o plateau seria um dado positivo e tranquilizador se indicasse que o número de mortes não está crescendo, significaria que estaríamos no estágio final da epidemia. Porém a curva “achatada”, que tem sido mostrada na TV e que está no gráfico acima é de mortes diárias e indica que o final da epidemia está se distanciando cada vez mais. É como estar num carro com velocidade constante, estável, rumo ao precipício. A uma velocidade média de 1000 mortes por dia estamos rumando para um número de mortes desolador. Você só para um carro desacelerando e as mortes diárias não desaceleram há quase três meses. Parar um caminhão desembestado leva tempo e espaço.

O termo estabilidade gera nas pessoas uma esperança de tranquilidade e paz, cria um clima favorável ao retorno das atividades econômicas. Estimula aquele desejo de todos de que tudo volte ao normal, ou eufemisticamente um novo normal. Porém esta paz prenunciada por esta estabilidade é a paz dos cemitérios. As taxas constantes mostram que o país vai a velocidade constante rumo ao precipício. Uma catástrofe tanto no número de mortes como na economia. Quanto mais tempo ficarmos nesta tal “estabilidade” mais mortes e mais tempo se levará para chegar ao “novo normal”. A estabilidade vai inchar os hospitais e cemitérios. E a única forma de desacelerar é o aumento do isolamento social. Porém a ansiedade de alguns, a avidez pelo lucro,a manipulação dos desejos fáceis vai ser autodestrutiva. Aliás, a autodestrutividade é uma marca de nossa elite.

Em pânico com os impactos da paralisação da economia, ao invés de pressionarem os governos para ações de mitigação das desigualdades,auxílio às empresas, e um plano econômico consistente, a classe empresarial vai ao limite da irresponsabilidade pressionando fortemente os governos de prefeituras e estados para retornar. Não contente com isto voltam a usar toda a máquina midiática para passar a boiada, isto é, privatizações e reformas. Em coro criminalizam o funcionalismo público dando sequência ao plano de destruição do estado. Transformando a lei do teto em décimo primeiro mandamento, se preparam legalmente para cortar as verbas para combater as sequelas sociais e econômicas da pandemia. Guedes parece em pânico, paralisado, mas não perdeu a avidez por seus negócios com mercado. Suas ex empresas afiam as facas e se preparam para a liquidação. Negociatas são feitas na surdina. A debandada de seus comparsas no Ministério da Economia apenas mostra que os que saíram ou não conseguem ver os lucros que imaginavam ou já se aprontam para no campo privado dar os seus lances de cartas marcadas. São animais de mercado. No processo que se prenuncia será interessante seguir o caminho do dinheiro. Daqui a alguns anos as falcatruas virão a tona, mas como no caso da privataria Tucana, ou dos negócios de Serra e caterva, tudo será arquivado ou prescrito.

À inércia das ações do Ministério da Economia, se junta a inépcia dos dois guris, que presidem o Senado e a Câmara. Juntos com a figura trágica, apareceram em público para jurar que estão juntos pelo teto e pelas reformas. Sinalizando para os seus mentores do mercado, prometem continuar defendendo os velhos interesses, enquanto a realidade passa ao largo. A mídia bate palma e elogia os dois meninos e vê com esperança a adesão do presidente ao projeto que o elegeu. Também utilizam que esta aparição para mais uma vez utilizar a palavra estabilidade , agora na política. Quem acredita nisto?

Sem ideias ou propostas e diante da tragédia se apegam aos mantras, reformas e reformas, e o teto. Um futuro tormentoso nos espera no pós pandemia, porque assim será em todo o mundo mas aqui não temos propostas ou reflexão sobre isto. Existe apenas ato reflexo deste grupo tentando se defender da realidade onde o estado vai ser não apenas necessário, mas a única saída. Mas sabemos com certeza que a lei do teto só será rasgada quando o caos se instaurar. Não há nenhum sinal de medida econômica, a não ser mais uma vez liberar o FGTS, para alimentar os bancos e garantir que dívidas sejam pagas. Sem comando a pandemia vai se aproximando do teto das almas e do poço sem fim da economia. Sem comando na economia, sem lideranças ou pessoas capazes, a gente descobre mais uma vez que nossa elite segue apoiando a incapacidade e incompetência.

Nem a máscara que usam, na frente de um microfone, os faz ver que a dinâmica da realidade vai triturar seus projetos tão mesquinhos e antes disto, triturar o país. Os dois guris estão inebriados com a capitulação do capitão e os elogios que recebem. Os bons guris, sequer se envergonham quando os elogios dizem que eles estão fazendo o dever de casa. Apesar das aparências do encontro, o capitão investe cada vez mais em grupos de inteligência, repressão e ameaças às instituições. Como disse uma das mãos direita do capitão, general Heleno:”calma, AINDA não é o momento”. O engomado ministro da Justiça com cara de pastor esconde a arma em sua mão. Se juntando ao predecessor mostra sua faceta violenta e autoritária, preparando o terreno para a serpente.

A grande estupidez da classe empresarial é não ter consciência de que quanto mais durar a epidemia maior vai ser a paralisia na economia. Numa mistura de ignorância e crueldade fingem não compreender as consequências ou de fato não se importam com as mortes nem mesmo de crianças, quando pregam o retorno às aulas. Cinicamente para justificar o retorno discursam sobre excluídos digitais e os sem merenda. Excluídos e desempregados aparecem na boca destas figuras quando querem justificar o injustificável. Provavelmente não irão mandar seus filhos para a escola, mas a classe média vai.

A realidade da epidemia não se curva a esta narrativa cínica. O comportamento da epidemia depende fundamentalmente do tamanho da população infectável. Qualquer medida de flexibilização e de retorno coloca ao alcance do vírus uma população maior. O Amazonas após um início trágico, em meados de maio iniciou uma queda consistente nas mortes diárias. O gráfico de número de óbitos mostram que estavam evoluindo para um patamar, curva vermelha. Os óbitos diários se aproximavam do zero e a curva em vermelho prognosticava uma chegada aos estágios finais da epidemia. Porém nas duas últimas semanas houve um recrudescimento da epidemia, provavelmente causada pelo fim das medidas restritivas. No gráfico de óbitos diários se vê as duas colunas mais altas se afastando da curva em vermelho. Caso não tomem medidas imediatas, Amazonas poderá iniciar uma segunda onda. O perverso desta narrativa é que todos, sem exceção sonham com o retorno ao normal. Todos se inquietam e se incomodam com o isolamento. Entre desejos desejos e ou necessidades uma boa parcela da população aceita com facilidades a narrativa da estabilidade e da abertura gradual. Abertura que aliás não tem acontecido gradualmente. Em cidades como Florianópolis as ruas estão cheias, e os funcionários de lojas se movimentam muito para pouquíssimos clientes. Em breve saberemos quais os efeitos e o custo econômico desta abertura. Santa Catarina, semanas antes tinha um crescimento lento mas ainda não havia se aproximado do patamar. Com poucos casos e óbitos a situação estava sob relativo controle. A capitulação diante das pressões, análises precipitadas e ou mal intencionadas levaram a uma abertura do comércio e de outras atividades econômicas. Estas medidas já começam a cobrar seu preço. O estado como outros se depara com o recrudescimento da epidemia. E como não se prepararam para o pior, os leitos de UTI minguam, os novos casos aumentam e as mortes diárias teimam em subir.

Se o Brasil, no gráfico abaixo, começasse a desacelerar as taxas de mortes diárias, poderia seguir a curva em vermelho, que dá um prognóstico “otimista”. Este prognóstico “otimista” indica que apenas em novembro entraríamos no estágio final da pandemia com um total de aproximadamente 120 000 mortos. Porém os dados das últimas semanas parecem indicar o contrário, nos condenando a mais mortes e a perspectiva de entrarmos dezembro ou mesmo o ano novo com epidemia velha.

Redação

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