Como se cala um lugar de fala?, por Paulo Fernandes Silveira 

Florestan Fernandes, que já trocava correspondências com Guerreiro Ramos e com Abdias do Nascimento, participou do Congresso do Negro, em 1950.

(Estudantes perseguidos após uma passeata, foto de Evandro Teixeira).

Como se cala um lugar de fala?

por Paulo Fernandes Silveira 

Num belo texto, Antônio Guimarães (2016), destaca as três obras que marcam a formação intelectual dos negros nos movimentos e organizações sociais: A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979), de Carlos Hasenbalg, e O negro revoltado (1982), de Abdias do Nascimento.

Ao lado do sociólogo Guerreiro Ramos, o ator, diretor, escritor e artista plástico Abdias do Nascimento militou no movimento negro desde os anos 40, tendo contribuído para a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), para a alfabetização e a formação política e artística dos negros e para organização de uma série de congressos e de publicações sobre a negritude. Já os sociólogos Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg tiveram suas pesquisas sobre as relações raciais fortemente influenciadas pelas questões e demandas do movimento negro.

Num artigo de capa para o jornal Quilombo (vida, problemas e aspirações do negro), publicado em 1950, Abdias anuncia o 1º Congresso do Negro Brasileiro com as seguintes palavras:

“O 1º Congresso do Negro pretende dar uma ênfase toda especial aos problemas práticos e atuais da vida da nossa gente de cor. Sempre que se estudou o negro foi com o propósito evidente ou a intenção mal disfarçada de considerá-lo um ser distante, quase morto, ou já mesmo empalhado como peça de museu. Por isso mesmo, o Congresso dará uma importância secundária, por exemplo, às questões etnológicas e menos palpitantes, interessando menos saber qual seja o índice cefálico do negro, ou se Zumbi realmente suicidou-se ou não, do que indagar quais os meios que poderemos lançar mão para organizar associações e instituições que possam oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na sociedade” (NASCIMENTO, 1950, p. 1).

Florestan Fernandes, que já trocava correspondências com Guerreiro Ramos e com Abdias do Nascimento, participou do Congresso do Negro, em 1950. A delegação de pesquisadores da USP no congresso, representada por Roger Bastide, apresentou uma análise sociológica desmistificando o preconceito a respeito da criminalidade dos negros na cidade de São Paulo (NASCIMENTO, 1982). Alguns meses após o congresso, Bastide e Florestan fizeram uma grande pesquisa sobre o preconceito racial (BASTIDE; FERNANDES, 1959). A pesquisa contou com a participação de inúmeras lideranças do movimento negro e com uma cuidadosa análise da produção intelectual dos negros.

Num artigo para a revista Habitat, originalmente publicado em 1953, Abdias volta a enfatizar a importância de trabalhos que tragam à baila as demandas do negro:

“O Teatro Experimental do Negro constitui-se, através desses anos de atividades em matriz de iniciativas e estudos que objetivam, de um lado, acelerar a integração dos homens de cor na sociedade brasileira e, de outro lado, examinar o nosso problema do negro à luz de uma sociologia militante que supere os vícios do academismo e indique rumos e soluções práticas” (NASCIMENTO, 1966, p. 122).

Essa mesma sociologia militante é defendida por Guerreiro Ramos no texto “O processo da sociologia no Brasil”, publicado em 1953. Mesmo sustentando, em resposta à Ramos (BARIARI JÚNIOR, 2003), que a sociologia não deve se afastar dos princípios e do rigor científico, num texto de 1962, com o instigante título “A sociologia como afirmação”, Florestan argumenta:

“(…) somente quis sugerir que o sociólogo, como homem da sociedade de seu tempo, não pode omitir-se diante do dever de pôr os conhecimentos sociológicos a serviço das tendências de reconstrução social. Numa fase de desintegração e mudança, não nos compete, apenas, produzir conhecimento sobre a situação histórico-social. Impõe-se que digamos, também, como utilizaríamos tais conhecimentos, se nos fosse dado tomar parte ativa da construção de nosso mundo de amanhã” (FERNANDES, 1976b, p. 90).

Num texto biográfico intitulado “Em busca de uma sociologia crítica e militante”, Florestan (1976a) oferece novos contornos para essa posição sobre a contribuição da sociologia para a transformação da sociedade. No livro Significado do protesto negro, Florestan lamenta o modo como ele e seus orientandos da USP foram silenciados pela ditadura militar:

“A pesquisa sociológica desvendou com maior rigor e objetividade a situação racial brasileira, e os principais sociólogos brasileiros, que contribuíram para isso, viram a façanha ser incluída em suas fichas policiais de agitadores e concorrer para a sua exclusão da universidade e, por vezes, do país” (FERNANDES, 1989, p. 7-8).

Em 2014, comemorou os 50 anos da publicação do A integração do negro na sociedade de classes; em 2020, comemora-se os 100 anos do nascimento de Florestan Fernandes. Em eventos que deveriam homenagear o sociólogo, alguns intelectuais das novas gerações pontuaram uma série de equívocos e de limitações em sua obra. Focando em suas divergências teóricas, esses intelectuais se desviaram de uma questão fundamental: assim como fizeram Abdias do Nascimento e Carlos Hasenbalg, o sociólogo militante não ignorou as demandas do movimento negro, muito pelo contrário, ele utilizou todo o seu capital intelectual para combater o racismo e as desigualdades.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Referências.

BARIARI JÚNIOR, Edson. A sociologia no Brasil: uma batalha, duas trajetórias (Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos). (Dissertação de Mestrado em Sociologia). UNESP. Marília, 2003. Disponível em:  https://repositorio.unesp.br/handle/11449/99018

BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

FERNANDES, Fernandes. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976a.

FERNANDES, Fernandes. A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro, Zahar, 1976b.

FERNANDES, Florestan. O significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989.

GUIMARÃES, Antônio. O legado de Carlos Hasenbalg (1942-2014). Afro-Ásia, n. 53,  277-290, 2016. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/770/77051153007/html/index.html#fn10

NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-ipeafro-disponibiliza-a-integra-das-duas-edicoes-do-livro-o-negro-revoltado-de-abdias-nascimento/

NASCIMENTO, Abdias. O 1º Congresso do Negro Brasileiro. Quilombo (vida, problemas e aspirações do negro), n. 5, 1950. Disponível em: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/jornal_quilombo_ano_ii_n5

NASCIMENTO, Abdias (Org.). Teatro experimental do negro. Testemunhos. Edições GRD: Rio de Janeiro, 1966. Disponível em: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/livro_testemunhos_2

RAMOS, Guerreiro. O processo da sociologia no Brasil. MIMEO: Rio de Janeiro, 1953.

RAMOS, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Editora UFRJ: Rio de Janeiro, 1995.

Redação

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  1. Lugar de “cale-se”!
    10/08/2020 – Por MARIA RITA KEHL*

    O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público?

    Decidi participar do debate entre setores do Movimento Negro e Lilian Schwarcz a respeito da Beyoncé, porque admiro muito tanto Lilian quanto o MNU. Acompanhei com interesse a divergência; admiro a Lilian por sua retratação pública, considerando que ela tenha sido convencida pelas críticas do Movimento Negro. Não gosto de imaginar que tenha feito isso apenas porque lhe sugeriram que calasse a boca. Acredito que a palavra, quando utilizada para argumentar e convidar o outro a pensar e debater conosco, seja o melhor recurso para resolver, ou ao menos dialetizar, ideias e valores situados em polos aparentemente opostos do vasto campo da opinião pública.

    Decidi agora, a partir do que aconteceu também com Djamila Ribeiro, debater essa questão de Movimentos Identitários e Cultura do Cancelamento. Apesar da enorme diferença entre minha experiência de vida e as experiências de vida dos descendentes de escravizados – prática horrenda que, no Brasil, durou 300 anos! – eu nos considero iguais em direitos e na capacidade de compreender o mundo para além de nossos diferentes quintais. Sim, estou ciente de que o quintal onde nasci é privilegiado, em relação ao de Djamila. Mais ainda em relação ao de muitos descendentes de africanos pobres. Peço desculpas se mesmo assim insisto em me considerar, como no verso de Baudelaire, sua igual, sua irmã.

    O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público? Cada um na sua casinha…? O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós? Bom, tem gente que é assim, não sai de seu cercadinho. Não pertenço a esse grupo, e creio que você, Djamila, também não. Se eu fosse torturada você se importaria, imagino, a despeito da cor da minha pele. O mesmo vale de mim para você.

    Meu “lugar de fala” é aquele de quem se identifica com a dor dos outros. Mas também é o de quem se permite criticar atitudes preconceituosas ou injustas, venham de onde vierem. Embora seja importante reconhecer a dignidade da condição de quem é vítima de alguma opressão – econômica, racial, sexual – não há motivos para acreditar que os oprimidos sejam santos. Isso não tem nenhuma importância. Você, “pecadora” como todos nós, foi vítima de discriminação por parte de seus irmãos de cor, membros do Movimento Negro Unificado.

    Considero as políticas identitárias como recursos essenciais para impor respeito, exigir reparação por todos os crimes do racismo assim como lutar (ainda!) por igualdade de direitos. Abomino todas as formas de discriminação baseadas na cor da pele, no país de origem, na fé religiosa ou nas diferenças de práticas culturais. Nenhuma “palavra de ordem” se manteve mais atual, ao longo dos séculos, do que o lema da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade. Me parece que o que está em causa, quanto ao que acontece com pessoas de descendência europeia e as descendentes de africanos, seja a “igualdade”.
    Como considerar iguais pessoas oriundas de classes sociais, grupos étnicos e experiências de vida tão desiguais?

    Mas, sim, em alguns pontos somos iguais. Em direitos (embora, no Brasil, tantos deles sejam desrespeitados). Em dignidade. Na capacidade de produzir cultura, seja musical, pictórica, teatral. Nesse aspecto da produção de cultura, entra em causa a liberdade de expressão. Podemos participar, sem pedir licença a ninguém, de todos os debates que nos interessem. Podemos nos pronunciar a respeito de problemas e questões que não fazem parte de nosso dia a dia. São questões dos “outros”. Mas que nos importam. Queremos falar. Se a palavra não é livre, o que mais será? Mas, claro: abomino a palavra que induz a linchamentos virtuais.

    Não quero imaginar um mundo em que cada um de nós só pudesse dialogar com seus supostos “iguais” em gênero, cor da pele ou classe social. Senão como pude eu, branquela de classe média urbana, ter sido aceita pelos “compas” do MST com quem trabalhei entre 2006 e 2011, até ingressar na Comissão da Verdade? Como pude ser respeitada entre grupos indígenas para relatar, no capítulo que me coube escrever, o genocídio sofrido por eles durante a ditadura se nunca, antes disso, tinha sequer pisado em uma aldeia?

    Durante o nazismo, um dos períodos mais horrendos que a humanidade atravessou, algumas famílias alemãs não hitleristas abrigaram famílias judias em suas casas, salvando muitas delas. Alguns esses alemães antirracistas foram denunciados por seus vizinhos e assassinados pela Gestapo. Mesmo pertencendo à “raça ariana”, foram mártires em sua ação solidária contra o genocídio.

    Meu sobrenome é alemão. Meu avô, muito carinhoso comigo na infância, era antissemita por razões “eugenistas”. Entendi, na adolescência, que ele a defendia supremacia da “boaraça”. Que conceito desprezível, para dizer o mínimo. Mais justo é dizer: que conceito criminoso. Nenhum dos seis netos dele compartilha aquelas ideias. E defendo que nenhum de nós deva ser calado num debate sobre “raça” por conta de nossa ascendência e de nosso avô.

    Aliás, por conta dessa essa ascendência que não escolhi (para mim, ele era só um doce avô), talvez o Movimento Negro me considere a última pessoa autorizada a dialogar com seus ativistas. Mas quero correr o risco. Acima de todas as diferenças, aposto sempre na livre circulação da palavra e do debate. E afirmo que nosso habitat “natural” é esse caldo de culturas que constitui o vasto mundo da palavra – fora do qual, o que seria do ser humano? Como escreveu Pessoa, apenas um “cadáver adiado que procria”.

    Já participei, com alegria, de muitas manifestações do dia da Consciência Negra. Tenho inúmeras afinidades com a cultura que seus antepassados, generosamente, nos legaram. Sou do samba, desde criancinha. Meus tios maternos, boêmios, tocavam e cantavam. “Caí no caldeirão”, como Obelix. Às vezes penso que sei, de cor, todos os sambas desde o final do século dezenove até o final do vinte. Sou filha de Santo: que pretensão, não é? Nem pedi para isso acontecer, foi o santo que “mandou”. Essa filiação me encoraja muito na hora das dificuldades.

    Escrevi um ensaio sobre a história do samba que começa com o abandono dos escravizados depois da Abolição; é claro que o “sinhozinho” que explorava trezentos africanos, ao ter que pagar pelo menos um salário de fome a cada um, preferiu botar duzentos e cinquenta na rua e explorar até o osso os outros cinquenta. Ao contrário do que aconteceu em alguns Estados do sul dos Estados Unidos, aqui ninguém recebeu nenhuma reparação pelos abusos sofridos durante gerações. Foi preciso que um operário chegasse ao poder para instaurar algumas políticas reparatórias, como as cotas para afrodescendentes ingressarem nas universidades ou a legalização das terras quilombolas.

    Nos Estados Unidos, país hoje governado por um dos ídolos do desgovernante brasileiro, existe uma grande população afrodescendente de classe média. Um descendente de africanos presidiu o país, por dois mandatos, de forma relativamente progressista – até onde o congresso permitiu. Outro deles é um cineasta genial. A produtora de Spyke Lee se chama Tree acres and a mule, em referência a reparação recebida por seus antepassados depois da abolição. Como se Lee nos dissesse: sou cineasta por causa daquele pedaço de terra.Vamos também contar os compositores, músicos e cantores de jazz. Tocavam em espaços que os brancos não racistas nunca foram proibidos de frequentar e ouvir.
    Aqui no Brasil, diante do abandono dos escravizados recém libertos, os brasileiros descendentes de portugueses, italianos e outros europeus racistas estabeleceram uma associação vergonhosa entre as pessoas de pele escura e a “vadiagem”. Uma ruindade a mais, entre tantas outras.Mas os exescravizados, sem trabalho depois da Abolição [1], que se reuniam na Pedra do Sal, na zona portuária do Rio, a espera do trabalho pesado de ajudar a descarregar navios que chegavam, nas suas horas vagas criaram o samba: uma das marcas mais fortes da cultura brasileira. Que nunca nós, brancos, fomos proibidos de cantar e dançar. Na Bahia, surgiram os terreiros de Candomblé, que não atendem apenas os negros. Brancos podem se consultar e se for o caso, a mando do santo, se filiar.
    Para que você não pense que o atrevimento de me identificar com a riquíssima cultura que você compartilha com “mais de cinquenta mil manos”seja um “abuso” exclusivo em relação aos afrodescendentes, te conto que sou incuravelmente heterossexual, mas participo todos os anos da Parada Gay. Nenhum de meus amigos gays, um dos quais já sofreu perseguições homofóbicas no trabalho, me desautorizou a me identificar com eles. Mas também nenhum se ofendeu nas ocasiões em que discordamos sobre algum assunto, mesmo referente à sua causa identitária.
    Às vezes, no debate, me convenceram. Outras vezes eu os convenci. Liberdade de opinião combinada com igualdade de direitos podem dar resultados excelentes. No entanto, você sabe, existem negros racistas – não contra os brancos, o que até seria compreensível. Contra outros negros. Sérgio Camargo, que presidiu por curto tempo a Fundação Palmares no atual governo, teve que ser demitido até mesmo por Bolsonaro por conta de declarações racistas.
    Uma das razões dessa minha iniciativa de escrever, em público, para os companheiros do MNU, é que acredito que sejamos iguais também na capacidade de empatia. Não preciso ter sido amarrada no tronco para ter horror disso. O país inteiro, até mesmo os indiferentes, sofre de baixa estima por conta de nosso longo período escravista. E nós, brancos antirracistas, somos sim capazes de nos colocar emocionalmente no lugar daqueles que ainda sofrem o que nunca sofremos. No entanto, não tenho dúvidas de que até hoje os descendentes de africanos sofreram e sofrem, no Brasil, muito mais do que os descendentes de europeus.
    Somos iguais. Não em experiência de vida, nem na cor da pele. Em direitos, em dignidade e, como tento fazer agora, em liberdade de expressão. Eu desrespeitaria os membros do Movimento Negro Unificado se fosse condescendente. Ou se eu fingisse concordar para não sofrer linchamentos virtuais. A consideração e o respeito é que me autorizam, em casos como esse, a discordar. De igual para igual. Por isso não aceito que, em função de nossas origens diferentes – e dos privilégios dos quais tenho consciência – os companheiros membros do MNU eventualmente exigissem que eu calasse a minha.

    Para terminar, deixo para os leitores que ainda não conhecem a letra de uma das canções mais tocantes já escritas para denunciar um dos muitos atos de barbárie racista, nos Estados Unidos: um ex escravizado que foi enforcado em uma árvore.Tenho certeza de que muitos de vocês a conhecem. Aí vai, na versão do poeta (branco) Carlos Rennó:

    Strangefruit
    (Fruta estranha)
    Árvores do sul dão uma fruta estranha:
    Folha o raiz em sangue se banha:
    Corpo negro balançando, lento:
    Folha pendendo de um galho ao vento.
    Cena pastoril do Sul celebrado:
    A boca torta e o olho inchado
    Cheiro de magnólia chega e passa
    De repente o odor de carne em brasa
    Eis uma fruta que o vento segue,
    Para que um corvo puxe, para que a chuva enrugue.
    Para que o sol resseque, para que o chão degluta.
    Eis uma estranha e amarga fruta [2]
    Ao digitar esses versos, já tenho vontade de chorar. Vocês devem saber que ela não foi composta por um negro e sim por um judeu novaiorquino, Abel Meeropol (com pseudônimo de Lewis Allan). Como desautorizá-lo com o argumento de que ele não teria o “lugar de fala” apropriado? Para estender esse argumento até o absurdo: como conseguiríamos sequer dialogar com nossos não-iguais? A empatia e a solidariedade seriam sempre hipócritas? A proposta é “cada um na sua caixinha”? Não quero viver em um mundo desses.

    *Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).

    Notas
    [1] Evidentemente o senhor de escravos que explorava 500 indivíduos, ao ter que lhes pagar ao menos um salário de fome, preferia mandar 400 para a rua, ao Deus dará, e abusar ao máximo da força de trabalho dos cem restantes.

    ***************************************************************

    Precisamos falar sobre o “lugar de fala”
    Wilson Gomes – 9 de agosto de 2019

    Ferramentas conceituais na luta política

    Em política, cada lado se dota das ferramentas conceituais que consegue imaginar, desde que funcionem com eficiência. “Funcionar”, no caso, significa servir a propósitos que favoreçam quem o emprega: aglutinar os seus, reforçar laços identitários, constranger oponentes, oferecer justificativa moral para as pretensões do grupo, atrair simpatia ou compreensão geral, mobilizar para a ação política, dentre outros.

    Em política, cada lado tentará convencer todos de que as suas ferramentas conceituais preferidas são teses objetivas sobre o funcionamento do mundo, são evidências incontornáveis sobre fatos e não instrumentos para os propósitos da tribo. É o que a direita fez com “politicamente correto”, ferramenta usada para desqualificar comportamentos que os liberais simplesmente chamaríamos de “respeito e consideração pelos outros”, principalmente por minorias socialmente estigmatizadas. E é o que a extrema-direita agora faz com ferramentas-conceitos como “ideologia de gênero”, “comunismo”, “doutrinação ideológica” e “gayzismo”. Para os partidários, não são o resultado de interpretações discutíveis de fatos, não são hipóteses arriscadas e não testadas, orientadas por preferências e conveniências. Não, são fatos objetivos e incontestáveis, a dura realidade que o outro lado não aceita e não pode aceitar apenas porque iria desmascarar o que ele realmente é.

    A esquerda também tem as suas ferramentas conceituais de cunho ideológico, forjadas para os propósitos da luta política. Dentre estas, destaca-se por sua rápida assimilação e extrema adesão, principalmente por parte da assim chamada esquerda identitária, a ideia de “lugar de fala”. A este ponto, importam pouco as intenções originárias do conceito, como crítica às pretensões universalistas dos discursos sociais, como revelação de que todo discurso é situado e traz consigo as marcações, de toda natureza, que configuram a posição social de quem fala. Há pilhas de intuições conceituais dessa natureza abandonadas ou pouco frequentadas por quem estuda ou pensa a sociedade. O conceito foi retirado do uso contido e quase obscuro das pessoas que só frequentam livros e ideias, e se tornou um sucesso de público apenas quando foi transformado em ferramenta da luta política. O que realmente importa, portanto, é o seu emprego como parte dos recursos ideológicos de um dos lados da disputa política.

    Nesse sentido, falar de deturpação ou distorção do conceito por aqueles que o empregam faz pouco sentido, vez que dificilmente se pode separar significado de uso. Filosoficamente, não faz sentido opor conceito e uso. No máximo, podemos dizer que o conceito original de “lugar de falar” foi em sua maior parte reconfigurado como um novo conceito, este, sim, de amplo uso e enorme gama de aplicação na luta política.

    E “lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer justificativas de superioridade moral para ação praticada. Nestes ambientes, “lugar de fala” é tanto um discurso sobre direitos de autorrepresentação por parte de minorias (“nós podemos falar em nosso nome e de nossas coisas”), quanto uma reivindicação de reconhecimento da autoridade de uma determinada minoria para falar sobre determinados temas e “protagonizar” determinadas ações. Mas, da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à interdição da fala que não se situa na minoria e à inspeção constante para verificar se essas duas premissas são integralmente cumpridas em todas as formas de expressão artísticas, científicas e políticas. Como tão bem formulou o professor Luis Felipe Miguel esta semana em seu perfil no Facebook, “nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais”.

    Como ferramenta ideológica, motiva e justifica, por exemplo, inspeções nas listas de bibliografias para verificar a proporção de autores por seu “lugar de fala”, independentemente de quaisquer outros critérios.
    Assim como se conhecem fiscalizações desta natureza – com o consequente lavramento de autos de infração e punições instantaneamente aplicadas por meio agressões, bloqueios e impedimentos – em peças de teatro e em debates políticos públicos. A militância do “lugar de fala” tornou-se, crescentemente, bruta, intolerante e agressiva.

    Contra o lugar de fala

    Nesse contexto, considero que faça sentido os oito argumentos abaixo, contra a ferramenta ideológica do “lugar de fala”:
    1-“Lugar de fala” é o novo fundamentalismo político. Refúgio de dogmáticos e intolerantes, que, da forma mais autoindulgente possível, concedem-se prerrogativas de superioridade moral.
    2-“Lugar de fala” é um espaço privilegiado de exigência de que os outros calem a boca. É o lugar do “cale-se” aplicado a todos que não são como eu. Lugar de falar é ao mesmo tempo um lugar de calar – eu falo, você cala.
    3-“Lugar de fala” é o álibi perfeito para reivindicações de monopólio de fala. Só eu e os meus temos a fala autorizada e os direitos de explorá-la.
    4-Como em todo sistema monopolista, o “lugar de fala” provê ao falante certificado um modelo de negócios. Como somos poucos os que têm direito de exploração desse produto, a raridade agrega enorme valor aos biscoitos finos que eu forneço e a, mim, naturalmente, seu fabricante autorizado. Encontrado um bom nicho, pode-se ganhar dinheiro, prestígio ou celebridade com o monopólio da fala autorizada. E há muitos faturando com isso.
    5-A artimanha principal das reivindicações do “lugar de fala” consiste em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam. O seu direito de falar é transferido para mim, porque o coletivo onde você se situa deve historicamente ao coletivo onde me situo. A sua classe oprime a minha, mas quem deve pagar é você, independentemente do que você fale ou seja. A reivindicação de que você deve calar a boca, porque as pessoas da sua espécie já falaram demais, e me deixar falar sozinho, porque as pessoas da minha espécie não tiveram chances históricas de falar, é um truque para disfarçar o meu autoritarismo e a minha intolerância.
    6-O argumento em defesa do pluralismo e da consideração pelas diferenças de identidades e pontos de vista não precisa do conceito de “lugar de fala” para ser defendido. Ao contrário, a reivindicação de “lugar de fala” serve hoje principalmente para que os patrulheiros da identidade verifiquem se o seu monopólio está sendo respeitado. Os “fiscais de atendimento às normas sobre monopólio do lugar de fala” são a nova moda na universidade, nos debates públicos e nas artes. A ideologia do “lugar de fala” virou adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância.
    7-Alimenta os direitos de reivindicação de “lugar de fala” a ideia de que expressar ideias, fazer pesquisa ou discutir problemas sociais são atividades direta e inextrincavelmente ligadas à “representação” de uma espécie ou de um coletivo. Propriedades individuais relacionadas a conhecimento, competência, domínio do assunto, inteligência ou boa-fé são secundárias em face do que realmente importa, que é a que gênero ou espécie identitária você pertence e cujo direito de representar você pode reivindicar. Então, não se trata apenas de representação, mas de autorrepresentação. Só está habilitado a falar quem está autorizado a representar, ficando cancelado todas as outras formas tradicionais de competência.
    8-A esquerda criou e alimentou as teses fundamentais do “lugar de fala” e ainda cerca os reivindicadores do monopólio do falar e do mandar calar com extrema complacência. Paradoxalmente, o “lugar de fala” é usado de forma eficiente apenas contra a esquerda. A extrema-direita, que agora a sitia política e socialmente, é imune aos constrangimentos das reivindicações do lugar de falar e, antes, usam tais reivindicações para as ridicularizar e para reforçar o próprio ponto de vista. O “lugar de fala” se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se autodevora.

    WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

  2. o conteúdo do artigo não discorreu sobre o lugar de fala que, entendo e setores progressistas assim veem: o espaço de fala deveria incluir e ser democrático ao invés de excluir

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