Contra o fascismo, o impossível já!, por Felipe Alves da Silva

Mas é precisamente esse o ponto: o fascismo passou da soleira da porta e dada a situação das coisas, precisamos justamente lutar por aquilo que hoje, dentro do nosso horizonte de experiências, apresenta-se a nós como impossível.

Eduardo Kobra

Contra o fascismo, o impossível já!

por Felipe Alves da Silva

“Todo mundo vê com clareza que esta civilização é como um trem em direção ao abismo, e que acelera. Quanto mais acelera, mais escutamos os gritos histéricos dos bêbados do vagão discoteca. Seria preciso aguçar os ouvidos para perceber o duro silêncio dos espíritos racionais que não compreendem mais nada, o silêncio dos angustiados que roem as unhas e o tom de falsa serenidade nas exclamações intermitentes daqueles que dão as cartas enquanto esperam. Interiormente, muitas pessoas escolheram saltar do trem, mas se mantêm no estribo. Muitas coisas ainda os tomam. Elas se sentem tomadas porque escolheram, mas a decisão ainda falta. Pois é a decisão que traça no presente a maneira e a possibilidade de agir, de fazer um salto que não seja no vazio. Essa decisão é a de desertar, de sair das fileiras, de organizar-se, de fazer secessão, ainda que seja de modo imperceptível, mas, em todo caso, agora. A época é dos tenazes”.

O amanhã está anulado. Este é o título do capítulo que inaugura o livro Motim e destituição agora, assinado pelo “comitê invisível”, da qual a passagem acima diz respeito. De qualquer ângulo, o presente não oferece saída. Segundo Paulo Arantes, a era nuclear – que posteriormente desencadeia a criação, em 1945, de um relógio do juízo final (Doomsday Clock) pelo comitê de cientistas atômicos da Universidade de Chicago, participantes do Manhattan Project que resultou diretamente no desenvolvimento das primeiras bombas atômicas, e cuja simbologia representaria a possibilidade concreta de destruição total por conflito nuclear, através do imaginário do apocalipse (meia-noite) e termos relativos à explosão nuclear (contagem regressiva até zero) para transmitir ameaças à humanidade e ao planeta –, a possibilidade real de um conflito nuclear, cuja expressão máxima se apresenta como destruição total da humanidade, inaugura um novo tempo do mundo, um tempo marcado pela possibilidade concreta de aniquilação, pelo uso de tecnologias disruptivas e também por mudanças climáticas e as consequências delas derivadas; um novo tempo que se apresenta como “fim de linha” em um estado de exceção permanente que prenuncia o início da ausência de futuro: o fim do mundo se aproxima e o atual governo é o que retira os freios da locomotiva que caminha a passos largos para o abismo. “A Catástrofe é o horizonte insuperável do nosso tempo”, diz o autor, indicando a obsolescência da humanidade, cuja existência “perdura à sombra da iminência da destruição planetária, a hora histórica em que passamos a viver não constitui mais uma época, mas um prazo, o tempo que resta”.

Em Depois do Futuro, Franco Berardi acaba por mostrar também uma condição “depressiva” do novo século, marcada pelo sentimento de melancolia, para sintetizar, um “Iluminismo obscuro”, que já não satisfaz o modelo cujo horizonte “parecia brilhante, mesmo que o caminho até o futuro fosse pavimentado com sofrimento, miséria, dificuldades e luto inimagináveis”. “O futuro”, complementa, “já não é mais percebido (tal qual no século passado) como fonte de esperança, como promessa de expansão e de crescimento. É um futuro amedrontador ao invés de promissor que aguarda essa geração, precarizada e altamente conectada”. O otimismo de dias melhores abre espaço ao pessimismo, o fim da linha chegou.

Nesse cenário, “que fazer?” é um questionamento completamente compreensível, pois parece-nos impossível pensar alternativas. Ora, é precisamente a exigência do impossível que pode nos ajudar, por isso nos interessa aproximar a obra Dar corpo ao impossível do filósofo brasileiro Vladimir Safatle, sobretudo ao tentar pensar sobre uma dialética tal “para os que não precisam mais de um mundo […], para os que se desampararam de um mundo. Mas um desamparo que poderia, paradoxalmente, dar corpo ao impossível”. A figura do que nos aparece como impossível não diz respeito a limites do que não poderia ser ultrapassado ou experenciado, pelo contrário, trata-se daquilo que, do ponto de vista da situação atual, é indescritível. Num dos mais recentes anúncios do comitê de cientistas atômicos, feito em 23 de janeiro de 2020, endereçado às lideranças políticas e às cidadãs e cidadãos de todo o mundo, o Boletim inicia afirmando que a humanidade estaria “closer than ever”, a 100 segundos para a meia-noite. De fato, do nosso contexto marcado por um futuro incerto só se tira um prognóstico: de que o amanhã será pior, de que nosso futuro não tem futuro.

Mas é precisamente esse o ponto: o fascismo passou da soleira da porta e dada a situação das coisas, precisamos justamente lutar por aquilo que hoje, dentro do nosso horizonte de experiências, apresenta-se a nós como impossível. Segundo Safatle, aquilo que aparece como impossível do ponto de vista das condições da situação das coisas atual pode se tornar a força motriz de uma nova situação. Fala-se em uma não-integração que “nos faz lembrar sempre do caráter mutilado de nossas vidas e da possibilidade de utilizar a força do negativo como dinâmica de passagem”. O impossível, que inicialmente nos apareceu como atrelado a uma condição melancólica de limitação do nosso horizonte, Safatle nos ajuda agora a pensá-lo de outra forma: como força política para a mudança social.

Herbert Marcuse termina a obra O homem unidimensional com uma citação de Walter Benjamin, escrita no início da era fascista, que aqui ecoamos: “Somente por causa dos que não têm esperança é que nos é dada a esperança”. Como adverte o Comitê Invisível, sejamos nós os tenazes que desertam, que saem das fileiras, que se organizam, que se amotinam e se revoltam, agora. Assim como o fizeram as e os jovens franceses nas barricadas, em maio de 1968, adotemos hoje as palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o impossível!”.

Felipe Alves da Silva – Mestrando em Filosofia pela USP, bolsista CNPq.

Redação

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