Crueldade e assédio marcam a Vogue Brasil, por Carolina Maria Ruy

Sofrendo com a concorrência imposta pela internet a Vogue, que vende criatividade, continua encastelada em seu perfil de histeria e crueldade exibindo modelos de açoite e de humilhações.

Crueldade e assédio marcam a Vogue Brasil

por Carolina Maria Ruy

Gritos, humilhações, xingamentos, medo e abusos de toda sorte foram situações relatadas por 27 funcionários ou prestadores de serviços da revista Vogue Brasil segundo uma matéria publicada no BuzzFeed em 28 de agosto.

A violência, inclusive, segundo foi apurado, ultrapassa as relações de trabalho. Ela também acontece com relação, por exemplo, às roupas e à aparência física dos funcionários. Houve também diversas queixas com relação a trabalhos não pagos, mal pagos ou trabalho muito além do valor combinado.

A comparação com o filme O Diabo Veste Prada (David Frankel, 2006), inspirado na personalidade de Anna Wintour, editora da Vogue Americana, foi recorrente.

Foi um texto do repórter Chico Felitti, publicado em uma rede social, que desencadeou uma série de reclamações e que levou à produção da matéria, assinada por ele.

No texto, Felitti reclamou que havia recebido um convite para escrever (de graça) para uma revista sem ter sido avisado que se tratava de um texto para um comercial de xampu.

Li as denúncias sem surpresa. Elas se encaixam no perfil histriônico e cruel que (infelizmente, não precisava ser assim) define o alto escalão do mundo da moda. Perfil já retratado em filmes como o já mencionado Diabo Veste Prada e em Prêt-à-Porter, de 1994, do diretor Robert Altman e que está impresso no conteúdo palaciano da revista.

A moda vendida pela empresa, com valores (na última edição de agosto de 2020) que vão de 300 reais à 30 mil reais (um vestido Dolce &Gabbana), ainda que busque se enquadrar em um padrão mais humano, atendendo às exigências de um novo mercado, mais conectado e mais antenado a questões sociais e ambientais, não consegue se desfazer do seu molde mofado de aristocracia fora de época.

Achei curioso, nesta última edição, um ensaio chamado “Que seja feita a revolução!”. Em sua abertura estão os dizeres: “É fato que a pandemia acelerou algumas mudanças que já estavam em curso na moda, com isso faz-se urgente o renascimento de uma indústria mais humana e conectada à natureza – aqui representada pelas estampas florais – para se livrar do caos em que nos encontramos”. Mas os valores das roupas mostradas no ensaio vão de 350 reais, uma bota, a 6.650 reais, um blazer. Fico a pensar a quem se dirige esta proposta de “revolução” já que ela está condicionada a objetos que custam mais de seis meses de trabalho para a maior parte das mulheres brasileiras.

As denúncias de assédio na revista Vogue divulgadas pelo BuzzFeed são o ensaio de moda da decadência estética, comportamental e moral de uma elite que acha que vive na corte de Luís XV.

Decadência comportamental porquê o assédio reproduz relações feudais entre patrão e empregado.

Moral porquê o patrão expõe nesta relação toda sua má educação, falta de princípios e falta de hombridade.

Estética porquê, da mesma cultura e mentalidade que embasam tais relações feudais, brotam as ideias expressas na revista: uma moda aristocrática, anacrônica, desagradável, antissocial e que oprime as mulheres.

A moda Vogue é status e nada além. E a moda não é necessariamente isso. É também liberdade, quebra de padrões, superação e rebeldia, a exemplo dos hippies, dos punks e dos grunges. A moda contempla a dimensão subjetiva do ser humano. Ela define identidades, reforça personalidades, estabelece comunicação e traz inspiração e autoconfiança.

Sendo uma revista de moda, seria de se esperar que a Vogue olhasse além, captasse e desse voz ao que há de mais avançado.

A revista, entretanto, parou no tempo. Sofrendo com a concorrência imposta pela internet a Vogue, que vende criatividade, continua encastelada em seu perfil de histeria e crueldade exibindo modelos de açoite e de humilhações.

Mas, mesmo que não seja novidade, isso não pode se limitar a uma crítica superficial e morrer no chavão de que se trata de estilo e excentricidade inerentes ao contexto. Ao contrário, é uma cultura que deve ser combatida dentro da luta por direitos sociais e trabalhistas.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

Redação

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