Espelhos, pra que tê-los? – por Marcelo Niel, meu painho Fofinho

por Mariana Nassif

Espelhos, pra que tê-los? – por Marcelo Niel, meu painho Fofinho 

Marcelo é um dos meus anjos favoritos, muito provavelmente por não se parecer em nada com um anjo e estar mais para alguém real e operante do que aquele que vive em lugares intangíveis. Esta possibilidade de ser, aliás, é o que permeia nossa relação, que me tem como pupila, uma filha em caráter hierárquico, colocada de forma respeitosa e amorosa mesmo quando esbravecido – ele não é fácil comigo, mas não deixo de sentir afeto vindo de lá pra cá e este, o afeto, especialmente o dele, literalmente vem salvando minha vida por aqui e acolá. 

É ele o grande responsável pela minha chegada ao candomblé, “a área VIP da espiritualidade”, como certa vez me falou. Psiquiatra dos bons, macumbeiro de corpo e alma, amigo pra toda hora, além de tudo cozinha e escreve. Replico aqui um texto que escreveu há pouco (ontem, acho eu) e que me tocou a alma neste período de reconhecimento e experimentações profundas. 

Se quiser ler mais dele, tem o blog, Le Coul du Tabou

*********

ESPELHOS, PARA QUE TÊ-LOS?
Por Marcelo Niel
 

Nesses últimos dias, eu tenho pensado muito em espelhos. Cenas do passado, histórias sobre espelhos, mitos, preceitos religiosos. Até zapeando pelas fotos arquivadas em meu telefone celular, fico reparando no tanto de fotos que tenho fazendo poses, eróticas ou não, ao espelho.

Esse deleite pelo espelho, diga-se, pela minha imagem nele refletida, tem sua razão de ser. Houve um tempo, num passado bem remoto, que eu fugia dele. Eu fugia de olhar-me ao espelho porque não gostava do que via. Primeiro por não gostar de mim, por me achar feio, por sentir-me uma cópia do meu genitor-rejeitador. Sentia raiva das pessoas que me chamavam pelo diminutivo de seu nome e sentia raiva de mim mesmo por ser uma cópia rejeitada dele. Também não me era possível gostar daquela imagem que colegas de escola e familiares caçoavam por ser gordo, por não saber andar descalço no barro ou no asfalto, por ter tetas grandes, por não ter coragem de tirar a camiseta na praia, do futebol forçado, suando de calor e dizendo que estava tudo bem. Talvez por último, por sentir medo de olhar para o espelho e enxergar-me gay.

Da adolescência e dos espelhos, guardo arriscadas e anedóticas incursões pela sexualidade.

Lá pelos onze anos de idade, grandão que eu era, já estava apto a ficar sozinho em casa. Adorava quando minha mãe saía e podia bater sossegado as minhas punhetas, testando sensações diversas, fosse colocando pasta de dente no pinto ou sugando o pau punheteiro recém descoberto com o sugador de leite abandonado no armário do banheiro. Adorava observar como o pênis se deformava naquela bomba de vidro e nela acabava gozando, lambuzando toda aquela bomba. É engraçado como a “viadagem” mora dentro da gente, mesmo antes de sabermos que ela nos habita: anos depois, visitando sex shops nos arredores gays de Nova Iorque, me deparo com aquelas bombas de sucção peniana.

Outras vezes me deliciava colocando roupas da minha mãe, como um maiô verde bandeira ou uma saída de banho amarela. Passava blush e batom, me divertia escondendo as bolas e pau por entre as pernas, subia no bidê e ficava dançando, diante do espelho, como uma Chacrete. Um dia, no auge da minha performance, a campainha toca. Quase despenco do bidê, saio correndo a esconder aquelas roupas e a arrancar as maquiagens. Abro a porta para minha tia e meus primos e, defensivamente, pela paranoia de ser flagrado ainda maquiado, digo que brincava de índio. Nunca soube se perceberam ou se acreditaram.

Véspera de Santo Antonio na mesma época. Preparávamos quitutes para a festa junina na cozinha do sobrado. Era uma época que eu era super afeito aos livros de simpatias, e resolvi seguir uma delas. Perto da meia-noite, subo correndo ao quarto da minha irmã, que tinha um espelho grande na porta do armário. Quarto escuro, vela na mão e de frente para o espelho: assim era a simpatia para saber com quem iria me casar. De repente, tudo escurece a minha volta e surge o contorno de uma pessoa no espelho. Saio correndo e chego à cozinha pálido, assustado. Anos depois, meu primeiro namorado suspeita, quando lhe conto essa história, que o que me assustou foi ver uma silhueta masculina naquele espelho. E até que faz sentido.

Quando nos iniciamos no Candomblé, somos proibidos de olhar ao espelho por um longo período. Alguns anos se passaram e sou um pouco mais capaz de refletir sobre alguns interditos existentes na religião e penso que essa questão do espelho parece muito mais um pensamento colonizado, “emprestado” da magia e da feitiçaria medieval europeia do que realmente um preceito trazido da África. Até porque não existiam espelhos na África. Enquanto escrevia, fiquei pensando sobre isso e cheguei a conversar com um “mais velho” do Candomblé, que concordou com minha opinião. Não existiam espelhos, mas o Abebê que as senhoras yabás empunham em suas maravilhosas danças, era feito de metal polido, que refletia imagens.

De todo modo, o interdito do espelho permanece ainda em muitas casas de Candomblé. Algumas pessoas me disseram que isso se deve ao fato de que os espelhos são portais místicos que podem atrair energias ruins para aquele iniciado que está muito sensível. Mas eu penso que faz mais sentido pensar que, nesse período de resguardo estamos passando, por um luto de nós mesmos, da pessoa que éramos antes de nascermos para o orixá. Olhar para o espelho pode assustar, tanto por esse antigo ser que está indo embora quanto pelo novo que ainda desconhecemos.

Eu me lembro que, durante o período em que estava recolhido para a iniciação, da sensação de estranheza que eu tinha em não ver nunca o meu rosto. Ficava imaginando como estariam minhas feições, minha cabeça raspada, eu com a cara lisa após tanto tempo usando barba. Certa noite me assustei ao deparar com um reflexo deformado de mim mesmo numa face metálica lisa do adereço de um orixá. E lembro quando me olhei ao espelho pela primeira vez após esse período. Eu tinha a mesma cara de antes, mas me enxergava modificado. Modificado de um jeito tal que sentia que era a primeira vez que me sentia inteiro. Eu uno, com meu orixá, com minha devoção, liso, cara limpa, sem pelos no corpo, roupas simples, dormindo numa esteira, num chão frio. Em meu pequeno diário de “bordo”, deixei essa pergunta que pairava em minha mente: “Quem serei eu após essa feitura?”

A imagem do espelho me fez pensar também na música “Índios”, do Legião Urbana: “nos deram espelhos, vivemos num mundo doente”. E fiquei pensando que, se não existiam espelhos na África e se os espelhos foram dados às orixás como símbolos da vaidade feminina, mesmo que possuam a conotação símbólica de olharmos para nós mesmos, será que precisamos mesmo deles? Sim, precisamos. Seja ele feito de lâminas de plástico dos supermercados populares, do metal polido das yabás, do reflexo produzido nas águas de mares e rios ou do cristal europeu mais caro e elegante, o espelho vai conter sempre essa dualidade, a possibilidade de enxergar-se e a possibilidade admirar-se, exageradamente ou não.

Narciso acha feio o que não é espelho, disse Caetano. Narciso, extasiado com a própria beleza, mergulha nas profundezas do rio em busca de sua própria imagem e se afoga. A narcísica selfie, o espelho contemporâneo, aprisiona a quase todos. Fazer uma selfie, produzir-se em roupas e locais para mostrar-se a si e para si mesmo, mas também aos outros o quanto se é lindo e admirável, um espelho que aprisiona almas.

Devo confessar que eu me perdi nesse labirinto de imagens que comecei a trilhar. Escrevendo, pensando, refletindo sobre o espelho, me distanciei de uma ideia inicial da qual nem me lembro mais, mas que foi o ponto de partida para traçar essas linhas. Talvez seja para poder lembrar sempre que os espelhos não são fidedignos e podem ser traiçoeiros. Espelhos de lojas, espelhos de cabeleireiros, são feitos deformados para tornarem ou fazerem com que as pessoas se sintam mais bonitas. Espelhos são usados em ambientes públicos e privados para criar a ilusão de ambientes maiores. Espelhos em motéis podem esconder câmeras de segurança e pode ter alguém lá, assistindo a sua performance erótica.

Verdade ou vaidade? Nunca saberemos.

 

Mariana A. Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador