Estão fraudando o sentido correto de democracia, por Nilson Lage

Definir “democracia” não é forma de governo, mas atributo de formas que atendem a imposições éticas, sociais e políticas vinculadas a valores

Foto: Antonioni Cassara/Mídia Ninja

Estão fraudando o sentido correto de democracia

Por Nilson Lage

Há duas maneiras opostas e comuns de manipular conceitos. Uma é generalizar, quando se diz “as forças armadas”, “o Judiciário”, ou “o povo brasileiro” e atribui ao conjunto designado por essas expressões característica ou comportamento de alguns militares, bacharéis ou brasileiros.

A outra maneira, menos perceptível, é particularizar um conceito “quase abstrato” — em termos lógicos, não função ou proposição atribuída a algum ente, mas atributo de um conjunto de funções sujeitas a condições específicas. Um exemplo seria limitar a versos rimados a condição de “poesia” ou reduzir “beleza” a padrões estéticos da moda, qualquer uma.

É o que fazem com “democracia”.

A palavra grega — povo+poder = governo do povo — já não tinha sentido claro quando os sofistas amealhavam fortunas ensinando os homens ricos a operar no espaço ambíguo entre o verdadeiro e o verossímil para convencer assembleias que se reuniam nas praças das cidades helênicas. Foi sob a ditadura de Péricles (460a.C. – 429a.C.), não por acaso descrito como “populista” pela moderna historiografia ocidental, que Atenas viveu seu apogeu.

O erro, em parte, é confundir “poder” e “governo”, ambiguidade contida na raiz grega “cratos”: ainda que o povo tenha poder — tanto que mesmo a tirania depende de um contato social –, governar não é algo de sua natureza.

Definir “democracia” é tão difícil quanto definir “poesia” ou “beleza”, Pode-se afirmar, no entanto, que não é forma de governo, mas atributo de formas de governo que atendem a imposições éticas, sociais e políticas vinculadas a valores transcendentes que se especificam em cada espaço e tempo. Isso não é uma definição, é o recorte de fronteiras vagas, balizas da inteligência.

Haverá, assim, democracia na tribo em que o poder se distribui entre as mulheres, o conselho de anciãos, o cacique e o pajé, tanto quanto em um Estado formalmente autoritário, no qual, no entanto, se cultivam a paz e a decisão negociada dos grandes e pequenos problemas.

O conceito moderno de democracia foi moldado após o Renascimento europeu, no contexto do Iluminismo, quando se supunha que a razão guia os homens, e, pois, bastaria esclarecê-los; comprovou-se, depois, que ela serve para moderar, compor e viabilizar desejos decorrentes de impulsos básicos e da vocação gregária da espécie. Regime democrático deve ser, hoje, entendido, não como expressão pétrea da vontade da maioria medida em votos — entre outras razões porque estes resultam de decisão momentânea, pois mutável, sujeita a controle por inibição e estímulo dirigidos –, mas como aquele que atende aos interesses difusos da coletividade, com o consentimento da maioria e a adesão de parte do povo. Há constituições escritas e tradições culturais que ajudam a definir tais interesses.

Como “beleza” ou “poesia”, a palavra “democracia” presta-se bem à propaganda, porque imprecisa: está no nome da Coreia do Norte e da aliança dos latifundiários ou do partido golpista no Brasil pré-1964. Resiste a construções adversativas: os Estados Unidos proclamaram ideais da Revolução Francesa, no Século XVIII, embora os escravos, e se propõem desde então modelo democrático único, apesar do extermínio das nações indígenas por ações estratégicas do Estado, no Seculo XIX; da implantação de um sistema de castas étnicas que perdurou até a década de 1960, quando começou a erodir, mas não de todo; e do uso intensivo da tortura e da violência contra pessoas que atrapalham e pequenos países eleitos como inimigos.

No atual caso brasileiro, a questão a ser considerada é a sobrevivência da nação e, com ela, a razão de haver democracia. Somos um povo mestiço, e, à falta de referência étnica, a noção de pátria que temos se agarra à soberania. Como a estamos perdendo — e já não resistimos minimamente à vassalagem — que nos resta? Sem nação, o que seria a democracia no Brasil senão uma forma nostálgica, como a Corte Imperial na Festa do Divino Espírito Santo que se comemora há 169 anos em Florianópolis e cidades próximas?

Sujeitos a leis extraterritoriais estrangeiras, com briosas tropas armadas de sucatas e aprestadas a guerras por interesses que não são nossos, que adiantaria preservar a forma democrática, se ela, obviamente, apenas disfarçaria a ocupação territorial?

É preciso ter a coragem e achar os meios de passar a régua e construir de novo o estado democrático brasileiro. Sob nova direção, como a padaria ali da esquina.

Redação

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