Jair Messias, o espírito de colonizador, por Camila Koenigstein

Desde que assumiu a Presidência, em 1º de janeiro de 2019, Jair vem construindo a imagem do colonizador com os pés fincados em 1492.

Foto Agência Brasil

Jair Messias, o espírito de colonizador

por Camila Koenigstein

Em 1521, Hernán Cortez junto com uma pequena expedição chegou ao território seria o México.

A configuração interna do reinado de Montezuma, líder dos mexicas, era opressiva contra os demais povos que habitavam a região. Com a chegada de Cortez, rapidamente houve uma mudança nas estruturas do Império asteca, que enfrentaria o ódio das outras tribos por ele controladas e a fúria dos espanhóis ávidos por ouro e pela dominação territorial.

Hernán era um assassino fundamentalista, acreditava que estava em uma missão civilizatória em nome de Deus, matava em nome do divino. Em uma dessas expedições cometeu o morticínio em Cholula. A violência e a quantidade de mortes chegaram a Tenochtitlán, e Montezuma ficou chocado com o que os espanhóis eram capazes de fazer.

No entanto, para Hernán aquelas mortes tinham justificadas, os indígenas não portavam alma, não eram batizados, portanto, seus crimes eram em nome de Deus. Já os sacrifícios que os mexicas e os demais povos faziam para suas entidades eram em nome de nada. Na cosmovisão dos espanhóis era somente um desejo sangrento dos povos bárbaros e sem o cristianismo como porta de salvação. Por essa razão um padre sempre acompanhava as missões para realizar os batismos, casamentos forçados e confissões, tudo em nome da sagrada Igreja.

A ausência de crença daqueles que viviam na região no Deus branco, de cabelos longos e olhos azuis, o Deus de Cortez, foi o que possibilitou o genocídio dos povos originários e o total domínio territorial. O saldo inicial foi a morte de 100 espanhóis e 100 mil indígenas. Doenças, estupros, profanações foram o modus operandi dos colonizadores, que sem nenhuma piedade exploraram absolutamente tudo no Caribe, América Latina e América Central, devastando, saqueando, matando em nome do Deus branco e seus ensinamentos e a Coroa.

Em suas crises morais, Hernán entrava em conflito com ele mesmo, sabia que era um pecador por tirar vidas, mas não sabia se eram vidas realmente, se tinham alma ou eram animais em forma humana – um conflito para um homem que acredita que só estava fazendo o correto.

Desde 1492 o continente recebeu muitos homens que acreditavam estar agindo corretamente, pois o Deus em sua imagem e semelhança permitia dizimar todos os habitantes e, na falta de mão de obra para cultivar as terras, começaram a sequestrar homens e mulheres oriundos da África. Estes também não tinham o mesmo Deus dos europeus, portanto, mereciam o castigo divino vindo nas diversas formas de violência que suportaram por séculos.

E assim se constituiu nosso continente, com sangue, violência, exploração e um pai permissivo, que autorizava os europeus a matar, quase sempre sem nenhuma culpa.

Por mais de três séculos, após quase desaparecer a cultura dos povos originários, os negros foram usados para enriquecer a Europa. A terra era o bem mais precioso, nela se cultivava e dela se extraia tudo. Diferentemente dos Estados Unidos, no resto da América havia abundância de recursos naturais, facilmente se podia extrair ouro, prata e bens de consumo, que circulavam pelo mundo através da venda e negócios entre os países europeus, o que fez com que muitos, como a França e a Inglaterra, se tornassem potências econômicas.

Em 1894 nasceu no Peru José Carlos Mariátegui (falecido em 1930), escritor e jornalista que, segundo o filósofo argentino Néstor Kohan, no seu curto período de vida produziu estudos que podem ser comparados aos de Antonio Gramsci e Walter Benjamin.

O escritor ficou conhecido quando fundou o Partido Socialista Peruano, em 1928, e desenvolveu teses próprias. A singularidade de Mariátegui foi introduzir o problema dos indígenas ligado à questão da terra. Amauta, como era chamado, que em quéchua significa maestro, fez um estudo profundo sobre a sociedade indígena e campesina peruana.

Vinculado à teoria marxista, desenvolveu estudos singulares sobre a cultura e o domínio europeu desde o início da invasão.

Para o escritor, o grande problema nacional era o agrário, ou seja, uma questão que envolvia diretamente os indígenas e campesinos, sujeitados aos proprietários de terras que os mantinham em um estado semifeudal, quando não de escravidão, por meio do processo de arrendamento.

Amauta via nos povos originários a possibilidade de um socialismo genuíno, pois ignoravam o tão conhecido etapismo, que levaria ao estágio final do capitalismo.

O próprio Marx em sua última fase já não enxergava o etapismo como a única via para a liberdade plena dos povos, principalmente em países subdesenvolvidos.

Os habitantes originários compartilhavam um modo de vida comunal. A acumulação do capital e a exploração por meio do processo de industrialização que se sucederam na Europa eram desconhecidas entre os homens e mulheres que viviam no campo, sobretudo na América Latina. No entanto, eram explorados por aqueles que, sim, sabiam como operava o capitalismo de forma plena. Para o autor, o “problema do índio” era socioeconômico, construído pelos europeus e posteriormente pela burguesia criolla.

O que destaca Mariátegui era que, além de ver a presença do colonialismo na prática que os criollos executavam com os indígenas, sentia que havia a possibilidade de um socialismo genuíno. Para Lenin, a América Latina não era a última fase do capitalismo, mas sim a primeira, contrariando a crença de Mariátegui, que não via no tempo cronológico razão para a não implantação do socialismo.

Os principais oponentes de Mariátegui seguiam uma visão eurocêntrica de etapas específicas da vida social, econômica e cultural da Europa, que não tinham relação alguma com um continente precisamente devastado pelos europeus.

“Segundo a perspectiva de Mariátegui, só nos países europeus de classe operária industrial tinham possibilidades de desenvolver o socialismo, enquanto na América Latina os partidos revolucionários não podiam se dar ao luxo de dispensar o campesinato e particularmente os trabalhadores indígenas.”

O que marca sua posição no campo teórico é que compreendia as diferenças entre os debates internacionais e nacionais, os problemas oriundos do colonialismo e da industrialização europeia.

Como sempre as divergências ideológicas dentro do partido geraram discussões graves, se para alguns o regime soviético e a linearidade dos processos históricos levaram ao socialismo, para Mariátegui a materialidade das sociedades latino-americanas era o que definia a forma como o socialismo poderia ser implantado na América Latina.

É necessário contar com um fator concreto dado o problema agrário peruano, um fator peculiar: a sobrevivência da comunidade e os elementos de socialismo prático na agricultura e na vida dos indígenas. Para o socialismo, esse fator tem que ser fundamental […] as comunidades indígenas reúnem a maior quantidade possível de aptidões morais e materiais para se transformarem em cooperativas de produção de consumo.

Ideologia e política.

Passadas décadas, o marxismo de Mariátegui foi “esquecido”, considerado místico e ideológico demais para toda a carga do leninismo que dominou a maior parte da esquerda latina, inclusive adaptada na Revolução Cubana, o que até hoje deixou marcas extremamente negativas para a maioria dos cubanos. Paradoxalmente, um dos poucos homens que entenderam a importância da mentalidade e configuração particular do continente foi esquecido por não acreditar plenamente em um marxismo voltado somente para o proletariado industrial.

Dessa forma, o problema da terra e dos indígenas foi soterrado no campo ideológico. Somente com a morte de lideranças locais ao longo das últimas décadas, o problema do campo e dos indígenas foi entendido como um problema socioeconômico.

Hernán Cortez, o problema da terra e Bolsonaro. 

Desde que assumiu a Presidência, em 1º de janeiro de 2019, Jair vem construindo a imagem do colonizador com os pés fincados em 1492. Sua missão civilizatória tem direção: indígenas, negros, mulheres e homossexuais. Diferentemente de Hernán, Bolsonaro não tem crise moral. Seu Deus branco, juntamente com doses de um judaísmo apropriado –  o que se dá pelo uso de objetos religiosos nos ritos judaicos –, atrelado a um discurso messiânico, faz dele um dos piores homens que exerceram poder no continente. Talvez a imagem seria outra se ele tivesse chegado em 1492 com os homens que dividiriam os mesmos valores.

Com a pandemia, todos os aspectos do espírito do colonizador se evidenciaram, com a crença de que Deus determina o destino dos homens e ele nada pode fazer, que os indígenas são vagabundos que não acreditam no modo de vida que ele determina.

Houve a diminuição dos territórios e a formação de pequenos guetos de indígenas, que antes já se suicidavam[1] e agora morrem de covid-19, que possivelmente foi levada pelos médicos enviados às comunidades logo após a retirada dos médicos cubanos comunistas.

Durante a campanha presidencial, Bolsonaro prometeu que abriria a Amazônia para o desenvolvimento comercial, incluindo a mineração e a agricultura em grande escala. “Onde tem terra indígena”, disse, “tem riqueza embaixo”.

Completamente desprotegidos com os cortes de orçamento que o governo federal fez para a Funai, as diversas comunidades e campesinos já estavam denunciando os abusos dos grileiros, madeireiros, garimpeiros, além da instalação de hidrelétricas em terras indígenas e expansão do agronegócio, modelo bastante admirado pelos políticos que compõem as bancadas do boi e da bala no Congresso. Segundo a Pastoral da Terra, o número de conflitos por terra em 2019 foi o maior desde 1985, o que expõe a desumanidade do atual governo.

“Lo que estamos viendo es el resultado de un gobierno que está a favor de la deforestación de la Amazonia”, dijo Bitate Uru Eu Wau Wau, un líder de la comunidad. “Eso incentivó a los invasores a entrar en territorios indígenas.”

O colonizador disse que os indígenas já não podiam viver na pré-história, era necessário seu modelo de bom civilizador, fazendo negócios com grandes corporações, afinal ele, sim, letrado sabe o que é  melhor para o seu Império.

Desde o começo da pandemia vem ocorrendo o aumento exponencial de casos confirmados de contaminados e óbitos. Oficialmente são 19 mil contaminados e 600 óbitos, mas para a Articulação Povos Indígenas do Brasil (Apib) os números não mostram a realidade.

A morte dos idosos representa o fim de uma parte da cultura desses povos, das diversas etnias que sofrem desde que o europeu pisou nessas terras, mas nada é feito. A sociedade civil, estudiosos, “letrados” informam que, mesmo antes desse cenário, os povos originários já vinham sofrendo todo tipo de violência. Sempre houve suicídios, invasões, extermínio, precariedade no âmbito da saúde e educação, no entanto, o homem branco olha com distância e foca sua força na “luta de classes” na selva de pedra, tal como Lenin entendia.

No último mês o Congresso Nacional aprovou a Lei de Emergência, mas nos pontos mais importantes Jair usou do seu poder de veto. A distribuição de água, materiais de higiene, limpeza e artigos para desinfetar as aldeias foi retirada.

Messias não conhece Hernán, quem sabia de Hérnan era Mariátegui. Messias não deve saber o que se passou em Cholula, mas seguramente estaria de acordo. Mariátegui advertiu que o “problema do índio” era o problema da terra. Hernán e Messias já sabiam disso, por isso cada qual explorou à sua maneira.

Passados mais de 500 anos, absolutamente nada separa Bolsonaro de Cortez, exceto o tempo e uma grande pandemia que veio legitimar todos os seus desejos, o desejo do seu Deus branco.

https://www.nytimes.com/es/2020/07/20/espanol/america-latina/brasil-coronavirus-comunidades-indigenas.html

https://jornalggn.com.br/artigos/brasil-colombia-e-honduras-a-eterna-desumanidade-do-estado-com-os-trabalhadores-rurais-e-povos-originarios-por-camila-koenigstein/

https://observatorio3setor.org.br/noticias/racismo-e-perda-da-terra-suicidio-de-indigenas-dispara-no-brasil/

https://www.nytimes.com/es/2019/12/06/espanol/america-latina/amazonia-bolsonaro.html?action=click&module=RelatedLinks&pgtype=Article

https://www.elmundo.es/internacional/2020/07/30/5f217eebfc6c83f37e8b465b.html

Simposio Internacional 7 ensayos , 80 años . Mi sangre, mis ideas/Ministerio de Cultura, Lima:2011.

Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

[1] Nos casos de suicídio entre indígenas em todo o país, o documento do Cimi destaca os altos índices registrados nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul. As duas regiões carregam as marcas de uma série de conflitos fundiários, principalmente entre ruralistas e indígenas que pedem a regularização das terras.

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. Bolsonaro não tem Deus. Ele apenas usa a palavra “Deus” para justificar suas ações homicidas. Ele não tem Deus, não tem moral, não tem humanidade. É um genocida a serviço de si e dos seus.

  2. Parece que ninguém se da conta.
    Tenho estado angustiado,desesperado e tenho tentado alertar ao máximo sobre o perigo que corre toda América Latina com essa nova ditadura militar Brasileira.
    Uma ditadura que pensa em expandir fronteiras,tenta o confronto bélico com nossos vizinhos e está pronta a nos colocar mordaças e armando aparelhos de espionagem contra o POVO,preparando dossiês contra trabalhadores são ardilosos e só olhares atentos parecem perceber.
    Ontem duas preocupantes notícias; “O Ministério da Defesa quer ampliar de R$ 6,7 bilhões para R$ 9,2 bilhões o orçamento do próximo ano para reequipar as Forças Armadas. O aumento de 37% seria destinado a projetos considerados prioritários pelos militares, como a aquisição de aviões de caça, lançadores de foguetes e submarinos movidos a propulsão nuclear. Neste ano, a pasta de Defesa já recebeu R$ 3 bilhões da previsão orçamentária para estes projetos. “. “JAIR BOLSONARO TENTOU INTERVIR,MANDAR TROPAS AO STF E GENERAL HELENO ARGUMENTOU “AINDA NÃO SER HORA”.
    São quase 7 mil militares ocupando cargos civis no governo,os estratégicos estão todos ocupados por militares adeptos da linha ideológica NAZISTA de Eurico Gaspar Dutra que queria aliar-se a Hitler na segunda guerra mundial.
    Vemos então;- Casa Civil: Walter Souza Braga Netto (general do Exército);
    Gabinete de Segurança Institucional: Augusto Heleno (general da reserva do Exército);
    Secretaria de Governo: Luiz Eduardo Ramos (general da reserva do Exército);
    Secretaria-Geral: Jorge Oliveira (major da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal).
    Além deles, também são militares ou têm formação militar os ministros:

    Defesa: Fernando Azevedo e Silva, general do Exército;
    Ciência e Tecnologia: Marcos Pontes, tenente-coronel da Aeronáutica;
    Minas e Energia: Bento Albuquerque, almirante da Marinha.
    Saúde (interino): Eduardo Pazuello, general do Exército.
    Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) .
    Também há 1.249 militares em cargos de profissionais da saúde.
    MILITARES FICAM FORA DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA,TEM SOLDOS AUMENTADOS EM MAIS DE 30%,OCUPAM A AMAZÔNIA COM INTUITO DE ARMAR AS FRONTEIRAS.
    Essa DITADURA é mais perigosa para o mundo do que a ditadura passada.
    URGE DERRUBAR ESSA MILICADA NAZISTA ,TRAIDORES DO BRASIL,VERDUGOS DO POVO!

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