“Não há surpresa”, adiantava Instituto há 2 anos sobre decretos de armas

"As pessoas legitimamente têm medo, e a promoção de discursos duros de lei e ordem dialoga muito bem com este medo", adiantava diretor do Instituto Sou da Paz

Jornal GGN – “Que da busca por uma flexibilização ampla do acesso a armas de fogo decorra naturalmente da plataforma eleitoral que elegeu o novo governo, não se pode dizer que haja qualquer surpresa”, disse o gerente de advocacia do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli.

Apesar de se encaixar ao atual cenário, a frase não foi escrita agora, depois de o governo do presidente Jair Bolsonaro aumentar a flexibilização das armas, com decretos publicados na última sexta (12).

Mas é de artigo de novembro de 2018, que integrou um especial do GGN, já anunciando o que ocorreria no governo do então candidato presidencial. Não havia surpresas, acertou Angeli. “Este debate deve, especialmente pelo governo, ser tratado com a seriedade que merece”, afirmava, há mais de dois anos. Relembre:

O debate sobre armas deve ser tratado com a seriedade que merecePor Felippe AngeliGerente de advocacy do Instituto Sou da Paz

Entre as diversas pautas polêmicas trazidas à ribalta no processo eleitoral de 2018, o Estatuto do Desarmamento e a discussão em torno da política nacional de controle de armas de fogo e munições certamente têm projeção especial.

Que da busca por uma flexibilização ampla do acesso a armas de fogo decorra naturalmente da plataforma eleitoral que elegeu o novo governo, não se pode dizer que haja qualquer surpresa. Recentemente, tem-se observado um recrudescimento do debate em torno da flexibilização do acesso e do porte de armas[1]. Pudera, a crise de segurança pública nacional é brutal e são mais de 63 mil brasileiros assassinados em 2017. As pessoas legitimamente têm medo, e a promoção de discursos duros de lei e ordem dialoga muito bem com este medo. Grandes interesses comerciais estão envolvidos, haja vista a valorização acionária da ordem de 400% que a Taurus, a fabricante de armas do Brasil, acumulou durante o processo eleitoral em que Bolsonaro liderava[2].

De forma eficiente, ideólogos do armamento com influência em redes sociais conseguiram transmitir narrativas que se transformaram em ideias-chave dos novos tempos. Uma destas narrativas consiste na ideia de que o governo, possivelmente por razões “esquerdistas”, não respeita o resultado do referendo, embora nunca tantas armas tenham sido compradas por cidadãos comuns desde 2004 quanto agora[3]. Outra ideia padrão é que o Estado desarmou apenas o “cidadão de bem”, embora não cumprir a lei seja justamente o que torna criminosas as pessoas que detém uma arma ilegal. Isto para não mencionar a total correlação entre o mercado legal de armas e o mercado ilegal. A arma do cidadão de bem um belo dia se torna a arma do bandido[4].

De todo modo, o debate é atual e tem centralidade no plano político do governo eleito. Há que se debater; um tema desta seriedade não pode ter uma opinião imposta sobre outra, inclusive porque, no limite, o maior risco associado às armas é justamente o potencial assassino que têm. Mas este debate deve, especialmente pelo governo, ser tratado com a seriedade que merece.

O que temos, de forma uníssona na comunidade acadêmica nacional e internacional, é um consenso que estabelece de forma muita clara a conexão entre o aumento na circulação de armas de fogo e o aumento da violência letal. Dizemos que pode-se fazer um paralelo com o tabagismo: cigarros fazem mal, você pode até gostar deles, mas fazem mal. Com as armas, se dá o mesmo.

Uma pesquisa publicada em 2016[5] revisou 130 estudos anteriores realizados em 10 países diferentes e encontraram relação entre leis mais restritivas de acesso a armas e diminuição da violência letal. Outra pesquisa, da Universidade de Stanford, na Califórnia, EUA, traz uma pesquisa sobre índices criminais americanos entre 1977 e 2014, indicando igualmente a relação entre portar uma arma e o aumento da violência[6]. Por fim, em novembro de 2017, o Jornal Associação Médica norte-americana (JAMA) publicou um editorial em sua revista científica fundada em 1883 declarando a violência com armas de fogo uma crise nacional nos Estados Unidos[7]. Igualmente no Brasil, publicamos em setembro de 2016 um manifesto à sociedade, assinado por mais de 50 pesquisadores, professores, economistas e outros especialistas, que contam com trabalhos acadêmicos publicados em jornais científicos, indicando outras dezenas de estudos nacionais e internacionais que constatam sempre a mesma coisa: mais armas, mais crimes[8].

Não deixa de ser surpreendente, neste contexto, que Olavo de Carvalho, personalidade exilada e marginal até pouco tempo atrás, hoje encarado como alguém que indicou pessoalmente os Ministros da Educação e das Relações Internacionais escolhidos por Bolsonaro[9], saiu com a seguinte frase: “o antitabagismo é o penúltimo refúgio dos canalhas. O último é o desarmamento”. De forma caricatural, mas incrivelmente precisa sobre os tempos atuais, esta personalidade influente da cúpula política nacional declara que “em qualquer caso de morte de um paciente fumante, todas as estatísticas de “morte por tabagismo” são falsas”[10].

O que temos, então, é um debate deste nível, uns querendo provar que fumar faz bem, outros querendo informar que armas fazem mal. A ciência não tem dúvida, mas o homem tem.


[1]https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/229473/em-2018-exercito-concede-numero-recorde-de-registr.html

[2]https://www.infomoney.com.br/forjastaurus/noticia/7713199/acao-da-fabricante-de-armas-taurus-salta-400-em-outubro-de-olho-em-crescimento-de-bolsonaro

[3]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/09/30/registro-de-armas-de-fogo-policia-federal-estatuto-desarmamento.htm

[4]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1632988-roubada-e-apreendida-pela-policia-arma-volta-para-o-crime.shtml

[5]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26905895

[6]https://www.nber.org/papers/w23510

[7]https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2657417

[8]http://soudapaz.org/upload/pdf/manifesto_dos_pesquisadores_contra_a_revoga_o_do_estatuto_do_desarmamento_21_de_setembro_de_2016_vers_o_final.pdf

[9]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/novo-chanceler-ernesto-araujo-foi-indicado-por-olavo-de-carvalho.shtml

[10]https://catracalivre.com.br/cidadania/olavo-de-carvalho-guru-de-bolsonaro-cigarro-e-bom-para-saude/https://catracalivre.com.br/cidadania/olavo-de-carvalho-guru-de-bolsonaro-cigarro-e-bom-para-saude/

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