O gênero bate às portas do Supremo, por Ligia Fabris Campos

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Ligia Fabris Campos
Professora da FGV Direito Rio

Do Jota

Hoje, o Supremo pode começar a decidir se pessoas transexuais têm direito ao reconhecimento jurídico da sua identidade de gênero, sem necessidade de cirurgia. Pode parecer uma questão específica, mas não é. É parte de uma onda geral de mobilização para mudar as maneiras pelas quais o direito regula gênero e identidade. Movimentos feministas/LGBTTIQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Intersexuais, Queer) lutam pelos direitos à liberdade e à autodeterminação; direito ao aborto legal e seguro; direito a viver sem violência; direito de ir e vir sem assédio e com segurança, entre muitos outros. A reivindicação por direitos é ampla. Mas qual é, afinal, a importância do direito para os movimentos com pautas de gênero? Qual a relevância das discussões sobre gênero para o direito?

Estudos de gênero se perguntam, fundamentalmente, o que se entende por “homem” e “mulher”, como se forma essa distinção e de que maneira ela é estruturante de assimetrias de poder na sociedade. O direito tem um papel central nesse contexto. Em que medida instituições jurídicas regulamentam e normalizam hierarquias de gênero? E como o direito poderia funcionar como instrumento de luta contra tais hierarquias? Para essas questões, não há respostas triviais. Mas o Supremo Tribunal Federal precisará enfrentá-las em um futuro próximo. Dentre as ações hoje em trâmite no tribunal, duas se destacam. Nelas, está em jogo a autonomia sobre o próprio corpo.

A primeira diz respeito à constitucionalidade do art. 10, §5o da Lei 9.263/96, que estabelece a obrigatoriedade do consentimento expresso do cônjuge para casos de esterilização voluntária. Em parecer, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, já manifestou que, ao proibir o aborto e a esterilização voluntária sem o consentimento de terceiro, o Estado “impõe à mulher situação de restrição extrema”, o que representa “grave violência sociojurídica e até psicológica, inaceitável anacronismo jurídico”. Não é a capacidade de engravidar que define o que é ser mulher, mas o fato é que são primordialmente as mulheres que engravidam. Cria-se, assim, uma situação em que a restrição de direitos e suas consequências cerceiam sobretudo a mulher.

Outro caso que se coloca para decisão do STF é o do Recurso Extraordinário que questiona a cirurgia de transgenitalização como condição necessária para o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans. Não há, até hoje, no Brasil, qualquer lei que assegure o direito de transexuais. O procedimento se dá sempre por via judicial, sem qualquer garantia de mudança do nome e menos ainda de ver reconhecida a identidade de gênero, com as consequentes alterações no registro civil das pessoas naturais. Prevalece, majoritariamente na jurisprudência, a ideia – ultrapassada até na biologia – de que a genitália determina o sexo. Há, inclusive, algumas decisões ainda mais retrógradas que negam o direito de alteração do sexo no registro mesmo após a realização da cirurgia, alegando que “a intervenção médica não tem o condão de alterar um dado da natureza”. Se o problema, no caso anterior, é a restrição ao direito de esterilização voluntária, neste, é a esterilização forçada, imposta por meio de um procedimento invasivo e doloroso, que nem sempre é desejado por pessoas trans. Muitas vezes, a decisão judicial requer a esterilidade, com a retirada dos órgãos sexuais internos e externos. Essa falta de direitos deixa a vida de pessoas nas mãos das concepções morais e dos preconceitos de cada juiz.

Em ambos os casos, a imposição de condicionantes ao exercício de direitos individuais é um mecanismo claro de controle do Estado sobre algo tão privado e íntimo quanto o próprio corpo. Eles mostram com clareza como o direito opera seletivamente: a esterilização só parece ser um problema a ser evitado quando se trata de um casal heterossexual e cisgênero – isto é, em que a identidade de gênero está em consonância com o “sexo biológico”. Quando se trata de pessoas trans, no entanto, a esterilização deixa de ser intervenção “grave” a ser evitada e passa a ser condição para aquisição de direitos.

O Supremo enfrentará essas questões em momento político desfavorável: o clima conservador empurra para o âmbito público questões da autonomia privada. Essa distinção entre o privado e o público vem sendo criticada desde pelo menos a segunda onda do feminismo, no final dos anos 60, como mecanismo de controle e subordinação: “o privado é político”, não por acaso, é o lema da luta contra a violência doméstica. Por outro lado, a crescente apropriação de certos temas privados pela política representa um movimento de disciplinamento e normalização – como o controle do corpo, das relações sexuais e afetivas, por exemplo, a partir da patologização da homossexualidade como desvio psiquiátrico e sua tipificação como crime de sodomia, como vários países já fizeram e alguns ainda fazem.

O direito oscila entre reconhecimento e disciplinamento: ao mesmo tempo em que se garante, por exemplo, o direito à igualdade de maneira universal, tolera-se, de acordo com as Estatísticas de Gênero do IBGE, que mulheres tenham, em média, salários cerca de 30% mais baixos que homens; se olharmos especificamente para mulheres negras, veremos que elas recebem ainda menos: cerca de 30% do salário médio dos homens brancos, com uma diferença salarial, portanto, de cerca de 70%; e a exclusão de mulheres trans, no país que mais mata pessoas trans no mundo, conforme dados da ONG Transgender Europe, é tamanha que as opções trabalho disponíveis são basicamente duas: trabalho informal ou prostituição. Esses cenários foram construídos também por meio da aplicação de regras jurídicas aparentemente neutras e universais.

Em meio a essa tensão – própria do direito – como o Supremo vai se posicionar? Chancelar a onda retrógrada ou indicar um caminho alternativo?

No limite, embora essas ações obscurantistas busquem cercear discussões sobre gênero, ele é inescapável. Como elemento da sociedade, o problema do gênero invariavelmente se coloca. E o Supremo, claro, não escapa a isso: o gênero já está na porta da lei.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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