Os princípios jurídicos da não autoincriminação

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Quem não se lembra do discurso da presidente Dilma Rousseff, presa e torturada durante o regime militar, no Congresso, destancado que ela, como militante da esquerda armada contra a ditadura, “não tinha compromisso nenhum com a verdade”, quando verdade significava delatar colegas e, consequentemente, vê-los serem perseguidos e mortos pelas forças de repressão?

Teria Dilma lançado mão, em um período negro da história, do direito de mentir? Os advogados Luiz Flávio Gomes e Aline Bianchini explicam, em texto veiculado no portal Atualidades do Direito, quais são os princípios da não autoincriminação e em quais casos é permitido ficar em silêncio e não produzir provas contra si próprio. Eis os principais pontos:

1. Princípio da não autoincriminação significa que ninguém é obrigado a se autoincriminar, ou seja, a produzir prova contra si mesmo (nem o suspeito ou indiciado, nem o acusado, nem a testemunha etc.). Trata-se de um princípio-garantia (Canotilho), que institui uma garantia para todos os cidadãos, com densidade autêntica de uma norma jurídica determinante. Sendo um princípio fundamental, conta com a proteção dada pelas cláusulas pétreas.

2. Somando-se o direito de não autoincriminação com a presunção de inocência, chega-se à conclusão de que da não colaboração do suspeito ou acusado com a produção de qualquer tipo de prova incriminatória não se pode inferir qualquer tipo de presunção contrária ao réu, muito menos a presunção de culpabilidade. Quando o juiz afirma que “quem cala consente”, “inocente nunca fica calado”, está retrocedendo ao tempo da inquisição.

3. A garantia (ou o direito) de não autoincriminação abarca duas grandes dimensões: (a) o direito ao silêncio assim como (b) o direito de não colaborar para a produção de provas incriminadoras. O direito de não autoincriminação integra a autodefesa, que faz parte da ampla defesa, que é uma das garantias do devido processo criminal.

4. Qualquer tipo de prova contra o réu que dependa (ativamente) dele só vale se o ato for levado a cabo de forma voluntária e consciente. São intoleráveis a fraude, a coação física ou moral, a pressão, os artificalismos, enganos etc. A garantia de não declarar contra si mesmo está contida expressamente no art. 14.3, “g”, do PIDCP, assim como no art. 8º, 2, “g”, da CADH.

5. A não autoincriminação é, antes de tudo, quando vista desde uma perspectiva individual (subjetiva), um direito. Mais precisamente, um direito fundamental, porque catalogado no art. 5º da CF (daí a sua proteção por cláusula pétrea), assim como em tratados internacionais (que possuem valor, no mínimo, supralegal). Também pode ser reconhecida como uma “liberdade pública”, na medida em que é um direito oponível ao Estado (direito de primeira geração, que abarca os direitos de resistência ou de oposição ao Estado, como diz Paulo Bonavides).

6. A não autoincriminação faz parte da liberdade individual, da esfera das liberdades oponíveis contra o Estado (na sua atividade persecutória). Ela protege o indivíduo contra os excessos e abusos do Estado, sobretudo quando este pretende obrigá-lo a colaborar (ativamente) na atividade probatória ou quando busca reintroduzir no sistema persecutório a verdade saída da boca ou da colaboração do suspeito ou do acusado (tal como vigorava no tempo da inquisição).

7. O direito à não autoincriminação começou a ganhar contornos bem claros na era moderna, como refutação (civilizadora) dos horrores gerados pela inquisição (Idade Média), conduzida pelo absolutismo monárquico e pela Igreja, que tinha na confissão a prova mais suprema (a rainha das provas), podendo-se alcançá-la inclusive por meio da tortura. A colaboração necessária do suspeito ou acusado era imprescindível para a busca da “verdade”. Esse foi o modelo inquisitivo, que se valia da tortura para conseguir a colaboração efetiva do suspeito na produção da prova (a verdade era uma verdade extorquida).

8. A cultura civilizatória (vê-se que o princípio da não autoincriminação é fruto da evolução da civilização) foi se posicionando gradativamente contra as atrocidades do sistema inquisitivo (procedimento secreto, desrespeito ao sistema acusatório, ausência de advogado, obrigatoriedade da confissão, juramento de dizer a verdade, tortura etc.), destacando-se nesse papel crítico (denunciador), desde logo, o Iluminismo.

9. Foi no famoso Caso Miranda vs. Arizona, de 1966, que a Suprema Corte norte-americana sublinhou os limites do Estado frente a seus cidadãos, enfatizando que o Estado tem que produzir as provas de forma independente, sem contar com a colaboração do réu.

10.  É da natureza do ser humano não se incriminar, lutar pela sua liberdade (inclusive pela fuga), defender-se de agressão injusta etc. Tudo deriva do instinto de conservação (da preservação da existência ou da liberdade etc.). O direito não pode remar contra a natureza. Como se vê, o direito de não autoincriminação tem fundamento natural (instinto de preservação ou de autopreservação, como dizia Bentham). O suspeito ou indiciado ou acusado pode até contribuir para a produção de uma prova incriminatória, mas o fará se quiser. Obrigado ele não é, mesmo porque ele é presumido inocente, dotado de dignidade, de liberdade e de autodeterminação.

11. O direito ao silêncio (direito de ficar calado), previsto constitucionalmente (art. 5º, inc. LXIII, da CF), constitui somente uma parte do direito de não autoincriminação. Como emanações naturais diretas desse direito (ao silêncio) temos: (a) o direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (b) o direito de não declarar contra si mesmo; (c) o direito de não confessar e (d) o direito de não falar a verdade.

12. As dimensões do direito de não autoincriminação valem tanto para a fase investigatória (qualquer que seja ela: inquérito policial, CPI etc.) como para a fase processual (propriamente dita). Vale também perante qualquer outro juízo (trabalhista, civil, administrativo etc.), desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecução penal contra ele.

13. A testemunha (ou mesmo a vítima ou perito etc.) também tem direito ao silêncio ou direito de não declarar contra si mesma (Bedê Júnior e Senna). Nesse caso não há que se falar no crime de falso testemunho (para a testemunha), porque quem exerce um direito não pratica nenhum ilícito. A testemunha tem a obrigação de dizer a verdade, mas essa obrigação está limitada pelo direito de não autoincriminar. Não importa se essa testemunha já está sendo ou não processada ou investigada pelo fato que pode lhe trazer prejuízo, se esse fato já foi descoberto ou não. Nada disso interessa, visto que a preponderância é da garantia da não autoincriminação.

14. Existe uma diferença entre a proteção do réu (suspeito ou acusado) e da testemunha: o réu tem direito de ficar calado em relação a todo interrogatório de mérito e não responde por nenhum crime (em virtude desse silêncio). A testemunha só pode se calar em relação às perguntas que tendem a extrair dele uma colaboração (ou comprometimento) para a autoincriminação. O princípio da não autoincriminação incide para o réu de forma ampla; para a testemunha de forma parcial (limitada).

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

12 Comentários

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  1. O artigo eh maravilhoso, mas

    O artigo eh maravilhoso, mas comenta (direta ou indiretamente, intencionalmente ou nao) outro item do dia que nao vou nem mencionar.  O outro item foi escrito por alguem psicopatico, no minimo.

  2. o negócio da lei seca

    como se enquadra? O Aércio nevis se negou a usar o bafômetro e há videos (provavelmente filmados em outros dias) em que ele aparece visivelmente alterado…

    1. É absolutamente indiferente,

      É absolutamente indiferente, pois não há prova mais contundente do que aquela que os olhos captam. Não se incriminar não significa que não será condenado, já que a prova colhida de corpo presente é apresentada em fase posterior da ação penal. Quando o subterfúgio é desmontado adiante, o criminoso deverá receber a sua pena. No entanto, o caso em questão está previsto em lei branda e as consequências do crime, embora possam ser desastrosas, são muito atenuadas pelas penalidades hoje aplicadas. 

  3. E o que dizer sobre os réus

    E o que dizer sobre os réus do Barbosa no caso do NÃO-MENSALÃO? Não apenas não se autoincriminaram, como também tiveram que aguentar calados um dos próprios “magistrados” que os julgavam forjar provas e teorias para que fossem condenados. Foi uma tragicomédia que o país teve de ver ao vivo e que ficou entalada na garganta de todos com um mínimo de senso de justiça verdadeiro, não aquele que foi martelado pela mídia corrupta e assassina. Inclusive, muitos componentes do Poder Judiciário, conhecedores do melhor Direito, se prostraram inertes diante de um circo de horrores.

    Quando o país irá se lavar dessa sujeira?

    Porém, como no filme do Chaplin, o circo vai embora, deixando no chão batido, apenas as marcas das estacas e o círculo de sua lona no chão. Então, sairemos andando com a cabeça erguida, rodando nossa pobre bengalinha e dentro de  nossas roupas puídas, mas estaremos contentes por sabermos que nesse país tudo é difícil pois sempre encontraremos pela frente o muro da injustiça.

    1. que falta faz algo de melhor…

      de como eram os interrogatórios nessa  época, só as vítimas falam

      até parece que não têm a dizer, também com base no direito

  4. Uma visão!

    O jurista argentino e integrante do Supremo Tribunal daquele País Eugênio Raúl Zafforin acentua: “A função do Direito Penal é limitar o poder punitivo”! (No que estou de acordo!)

  5. O perigo das Entrelinhas…

    O artigo do professo LFG está excelente e muito bem sintetizado sobre o direito individual de não auto-incriminar. PORÉM discordo do ponto contido na letra “d” do parágrafo 11 deste artigo: “(d) o direito de não falar a verdade”.

    O motivo é que se tenta legitimar uma das mais perversas características da cultura brasileira que se diz cidadã: tenta legitimar a “mentira”. Existe o direito ao silêncio, o qual é fundamentado por vários princípios constitucionais, porém o direito a “mentir” contra o Estado não existe e tem outros princípios que não o legitimam como: princípio da cidadania, boa fé…

    Deve-se atentar que o “dierito de mentir” não é abalizado por nenhuma doutrina contundente e apenas se presta para legitimar outras ações contra o Estado e Brasileiros como Crimes Tributários ou de “Colarinho Branco” (principalmente a Sonegação Fiscal e Evasão de Divisas), utilização de interpostas pessoas (Laranjas), dissimulação de atos ou negócios com o intúito de prejudicar a parte ou o Estado. 

    A cultura Jurídica Moderna se presta para avançar em favor das Liberdades, Igualdades, Solidariedades… mas não deve se prestar para legitimar a Má Fé, pois aí essa cultura jurídica – em minha opinião – estaria eivada de vício de Oportunismo Jurídico.

     

     

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