Quem tem direito e quem determina o acesso de presos à eutanásia?

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Na Bélgica, um preso condenado por uma série de estupros e assassinato solicitou à Justiça acesso à morte assistida. O pedido foi negado, mesmo que ele tenha enfrentado parte da pena em uma prisão psiquiátrica, denotando necessidade de tratamento mental. A situação gerou um debate sobre quem deve determinar que presos com longas condenações têm ou não direito à eutanásia. Não seria isso, afinal, uma pena de morte sobreposta ao encarceiramento?

Um assassino condenado à prisão perpétua pode ter direito à eutanásia?

Da BBC Brasil

Um assassino cumprindo pena de prisão perpétua em um presídio belga soube, em setembro do ano passado, que seu pedido para morrer com injeção letal foi aceito. Frank Van Den Bleeken estuprou e matou uma jovem de 19 anos, em 1989. Foi condenado e encarcerado em uma prisão psiquiátrica. Após ganhar a liberdade, voltou a estuprar mais três mulheres, incluindo uma criança de 11 anos.

Semana passada, o Ministério da Justiça do país revogou a decisão. O caso levanta uma questão interessante: presos que cumprem longas penas têm direito à morte assistida?

Na Bélgica, a eutanásia está disponível para doentes terminais e também para aqueles que desejam acabar com o sofrimento psicológico.

Aqui, três especialistas emitem suas opiniões sobre o caso e questionam se Frank Van Den Bleeken deveria ser autorizado a morrer.

Van den Bleeken deve ser autorizado a escapar de seu sofrimento mental, morrendo? Ou o certo é que, dados os seus crimes, ele deve ser obrigado a suportar o encarceramento? Há argumentos de ambos os lados.

Por um lado, Van Den Bleeken tem um passado muito traumático e problemas psiquiátricos tão severos que chegou a não ser considerado criminalmente responsável por um tribunal, tornando-o um bom candidato ─ se alguém é ─ para a eutanásia, em razão do sofrimento psicológico.

Por outro lado, alguns podem argumentar que a prisão não é para ser agradável e que é inapropriado permitir que presos fujam de seu sofrimento por meio da eutanásia.

Há, no entanto, um forte argumento para permitir que Van Den Bleeken morra como ele deseja.

Se encararmos a eutanásia como um tipo de tratamento médico (há boa razão para isso, pelo menos na Bélgica, onde é implementada por médicos, em resposta a problemas médicos), então Van Den Bleeken deve ser tratado como qualquer cidadão livre.

Isso ocorre porque os prisioneiros, em qualquer país civilizado, não têm o acesso negado a tratamentos médicos como parte de sua punição. O fato de o preso ter cometido crimes atrozes é uma pista falsa.

Se seu pedido de eutanásia fosse concedido, fosse ele um homem livre, então ela deve ser concedida, apesar dos crimes que cometeu.

Devido a isso, não era adequado que o ministro da Justiça se envolvesse no caso, principalmente derrubando a decisão que permitiria a Van Den Bleeken morrer.

Perguntas sobre se um indivíduo deve ter acesso a tratamentos médicos não devem ser respondidas por um ministro da Justiça, independentemente de o indivíduo ser, ou não, um criminoso.

Permitir que um prisioneiro, que não é doente mental, morra por eutanásia tem um cheiro de pena de morte.

Antes de seu pedido de eutanásia, Van Den Bleeken havia pedido para ser tratado em um centro psiquiátrico especializado na Holanda. O pedido foi, inicialmente, recusado pelo Ministério da Justiça belga. Isso sugere que ele ainda tinha esperanças de obter algo melhor.

Como se vê, as autoridades belgas agora dizem que estão organizando sua transferência para a instituição holandesa. A combinação de sua doença mental, as dificuldades intensas do ambiente na prisão de Merksplas, para onde foi mandado (algo que foi criticado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em um processo anterior, envolvendo um prisioneiro com doença mental) e seu pedido de tratamento levanta uma possibilidade preocupante: em vez de respeitar sua autonomia, permitindo que ele morresse, representaria uma forma de abandono.
“Abandono”!, muitos podem dizer, apontando para o estuprador e assassino de Christiane Remacle, de 19 anos, em 1989. Ele estuprou mais três mulheres, incluindo uma criança de 11 anos, após ser liberado de uma prisão psiquiátrica. O rastro de miséria deixado por ele permanece entre as vítimas e seus entes queridos.

As irmãs de Remacle são contra a autorização do pedido de eutanásia por Van Den Bleeken. Elas querem que ele ‘apodreça na prisão’, para o resto de seus dias.

Em Reflexões sobre a Guilhotina, o filósofo francês Albert Camus contou a história de seu pai, que acordou uma manhã bem cedo para assistir à execução pública de um assassino que havia matado uma família inteira, incluindo crianças.

Seu pai pensou que a decapitação foi uma punição muito leve. Após a execução, ele voltou para casa, pálido como um fantasma, deitou na cama e vomitou. Em vez de satisfazer o desejo de seu pai em ver a Justiça ser feita, a execução tinha simplesmente provocado náuseas nele.
Camus escreveu que “longe de reparar a ofensa à sociedade, a pena de morte acrescenta uma nova mancha para o primeiro”.

Permitir que os presos com doença mental grave se matem por eutanásia, sem oferecer apoio e tratamento psiquiátrico adequado, representa uma mancha na sociedade civilizada. Isso não pode ser descrito como uma eutanásia voluntária.

Se um prisioneiro com o pé gangrenado for deixado sem tratamento, com dor insuportável, e pedir a eutanásia, também não será uma escolha livre. Ele faria isso por necessidade, apenas com aparência de voluntariedade.

O caso de Van Den Bleeken levanta questões prementes sobre o nível de atendimento psiquiátrico nas prisões, na Bélgica e em outros lugares.

Os serviços psiquiátricos são adequados? São acessíveis? Há bastante investimento financeiro neles?

O caso não é único. Após o pedido de Van Den Bleeken para a eutanásia ter sido aprovado em setembro do ano passado, outros quinze detentos fizeram pedidos para serem submetidos à morte assistida.

Talvez

Victor Tadros, professor de Direito Penal e Teoria do Direito na Universidade de Warwick
Frank Van Den Bleeken, ao que parece, pretende ser condenado à morte, porque ele acredita que sua alternativa é passar o resto da vida na prisão. Para ele, talvez esta alternativa é um destino pior que a morte. Deve ser concedido a ele o direito de morrer? Não tenho certeza.
Suponha-se que aqueles que consideram o sofrimento um destino pior que a morte têm, geralmente, o direito de morrer se assim o desejarem. Suponha-se, também, que Van Den Bleeken seja suficientemente competente para tomar decisões por si mesmo.

Podemos, no entanto, duvidar que passar o resto da vida na prisão seja, segundo Van Den Bleeken, um destino pior que a morte. Nós também podemos duvidar de que suas condições não poderiam ser melhoradas para fazer o seu destino melhor do que a morte ─ talvez o seu tratamento psiquiátrico vá conseguir isso? No entanto, Van Den Bleeken pode acreditar que seu destino será pior do que a morte, mesmo que esse tratamento seja dado a ele.

Alguns podem argumentar que, se Van den Bleeken acredita que seu destino será pior do que a morte, então deve ser assim. No entanto, é difícil para nós imaginar quão bem ou mal a nossa vida vai, mesmo quando sabemos que, em termos gerais, o que vai acontecer com a gente. Van den Bleeken não é exceção.

Talvez, porém, o julgamento de Van Den Bleeken deve ser decisivo, mesmo se acabar sendo errado, ou porque ele tem mais chance de estar certo, ou porque devemos respeitar seu julgamento.

Suponha-se que Van Den Bleeken esteja certo, ou que devemos respeitar seu julgamento, mesmo que seja errado. Ele tem o direito de morrer? Alguns podem acreditar que um destino pior que a morte é uma punição proporcional dada a gravidade de seus crimes. Permitir que ele morra, então, torna sua punição muito leve. Eu acho isso difícil de aceitar. A razão pela qual ele, provavelmente, nunca mais ser liberado é a proteção do público, não porque um destino pior que a morte seja uma punição proporcional.

Ainda assim, talvez os outros – especialmente as vítimas e suas famílias – têm interesse em que ele seja mantido vivo. Um dos motivos é que as vítimas e suas famílias têm satisfação em ver o seu sofrimento.

Sua morte vai reduzir esse prazer. Em alternativa, e eu acho mais plausível, as vítimas e suas famílias podem ter interesse em punir Van Den Bleeken, ao reconhecer a importância dos crimes que cometeu.

Esta poderia ser uma razão determinante para não deixá-lo morrer? Essa ideia parece mais atraente, mas eu não tenho certeza se é suficiente para negar-lhe o direito de morrer se seu destino será realmente pior que a morte, caso ele seja forçado a permanecer vivo.
 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. 1.    Se  o cara é

    1.    Se  o cara é inimputável, considerações relativas à retribuição/proporcionalidade não cabem. É a exceção que confirma a regra.
    2.    O desejo de vingança das famílias das vítimas (ou, se quiser, “da sociedade”), compreensível, é, digamos assim, duplamente irrelevante: em geral, porque não é nem nunca foi a medida da retribuição justa; no caso, porque, na impossibilidade de um senso de justiça/de um ponto de vista moral, não há retribuição justa (trata-se de um irresponsável/incapaz, ora bolas!).
    3.    A eutanásia satisfaz o fundamento possível da prisão (no caso, a segregação perpétua): incapacitar o criminoso.
    4.    A irresponsabilidade/incapacidade de operar a partir de um ponto de vista moral não implica incapacidade de sofrer.
    5.    Aliviar o sofrimento inútil de quem quer que seja é um mandamento moral.
    6.    Impedir este alívio, para satisfação de um falso “senso de justiça” por preguiça, sadismo ou simples estupidez, é pura crueldade.

    A questão é se o Estado garante ao sujeito a possibilidade de uma vida digna. Pelo visto, há dúvidas no caso específico. Dadas estas condições, a escolha do sujeito deve ser respeitada.

    O cúmulo da perversão é alguém se julgar no direito de torturar um inimputável. E de justificar esta conduta com o tanto de “prazer” que isto rende. Mill diria: prazer vagabundo, inocente. Sabe nada de utilitarismo!
     

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