Ser mulher: uma constante movimentação para não cansar enquanto não há descanso, por Matê da Luz

Ser mulher: uma constante movimentação para não cansar enquanto não há descanso

por Matê da Luz 

E quando o mundo lá fora parece que espreme, reprime e dilacera o que a gente carrega aqui dentro? Em psicologia, este talvez seja o contexto ideal pra formação ou inflamação de um quadro depressivo. Individualmente, e isso depende muito da fase da vida em que a gente anda, os caminhos podem ser de sabedoria ou de opressão.

Na opressão a gente se espreme, reprime e dilacera mesmo, sentindo todas as dores que este mundo apresenta. Sangram corpo, alma, pensamentos. Sangram as oportunidades escorrendo pelas mãos naquele futuro que não vai chegar. Sangram os pulsos, vez ou outra literalmente – e ai da gente que não aguentou.

Aguentar. Mas que cargas d’água é aguentar?

Procurei em alguns dicionários, confesso, sou fissurada em palavra explicada, contada e sentida. Sabe onde encontrei a melhor explicação? Na prática rotineira da assimilação constante, que é uma dessas que explica que a gente assimila de bate pronto o que já sabe e, caso deseje assimilar mais um pouquinho, vai ter que expandir, mesmo que seja um tiquinho por dia, um passinho de cada vez, num tatibitate irritante praqueles que têm pressa. Eu não tenho mais, não. Eu cansei e, vejam só, encontro descanso no diálogo interno entre a eu que assimilou e a eu que deseja expandir, em algo mais ou menos assim: “oi, nossa, por que será que isso tá doendo assim, hein?, hum, sei lá, deve ser pra me chamar atenção, o corpo não é tonto, né, ele manda sinais enquanto tem capacidade de viver, senão ele não estava nem aí, estava e logo morrendo e então deve ser isso, tem alguma coisa incomodando e só vou conseguir enxergar o que é se decidir mudar de perspectiva, mas calma aí, só um pouco, vai devagar porque isso tudo já está doendo demais e ai, ai, ai, tá machucando mais ao invés de melhorar, querida, talvez este não seja o melhor caminho, enfim, toma seu tempo, não há pressa, a gente acaba se acostumando até mesmo com o que não é bom, pronto, respira, respira, está mais confortável agora?”, e, alívio, as coisas se encaixam e eu acabo esquecendo todo esse processo e acabo chamando a vida de milagre.

Até que na semana passada, minha filha, aquela que alguns que me lêem com mais frequência já conhecem – ah, que pretensão gostosa, desculpa, não pude evitar, hoje não – bem, essa filha desce a rua da casa da avó todas as noites após voltar da faculdade de metrô e tem reclamado constantemente do assédio dos lixeiros no caminho, aquela coisa irritantemente básica com a qual a enorme maioria das mulheres está acostumada, sim, fique pasmo, é assim mesmo, a gente se acostuma com tudo, até com o que é muito ruim, lembra?, e então ela chama o que estes lixeiros fazem de terrorismo, porque é muito próximo disso mesmo quando três homens num carro enorme que tem uma ferramenta de esmagar detritos resolve mexer com uma mulher sozinha de noite numa rua pacata. Não é possível que eles não saibam que estão botando o maior medo do mundo nela, isso simplesmente não é possível.

Daí que ela conta isso e minha maior vontade é arrumar a mala e colocar a vida numa caixa que já não me cabe mais só pra tentar dar alguma proteção, que é aquilo que certamente vai acabar me fazendo voltar pra São Paulo só pra descer a rua do metrô com ela e, “oi, oi, aqui é a sua consciência falando, isso não é proteção nem amor, isso é paranoia e controle e não vai fazer bem nem pra você e nem pra ela e então, é agora, vamos lá, vamos aprender uma forma nova de lidar com isso”. Respiro, ainda não aliviada. Respiro, confesso, dentro de um saco de pão.

Ufa.

A iluminação chega e me recordo dos motivos de começar a escrever tudo aquilo ali em cima, aquilo sobre expandir só um pouquinho e é quando converso com ela e explico que enquanto o mundo não tem jeito, a gente pode aprender a expandir. Enquanto um homem não muda seu comportamento em prol do bem-estar de uma mulher, conhecida ou desconhecida, a gente vai angariando pontos na extensão dos nossos saberes e, muito especialmente, vai caminhando na direção contrária do que se espera e nos transformamos naquelas pessoas que se empoderam perante a crise e se fortalecem com sabedoria. Não sejamos as vítimas que eles esperam que a gente seja, sejamos as mulheres inteligentes, aquelas que realmente mudam o caminho pra não ser pega enquanto o mundo não proporciona uma estrada segura. Sejamos aquelas que, mesmo cansadas, reprimidas, esmagadas, encontram espaço interno pra dar conta do que há e do que vem por aí – e que estes sejam melhores dias, porque é exaustivo ser/estar saudável, psicológica e individualmente, no mundo como ele é hoje. 

Mariana A. Nassif

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