Seremos governados por Leis ou por líderes?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O que possibilita a paz social e permite ao Brasil ter sucesso no combater a pandemia não é união dos brasileiros em torno de um líder e sim a união nacional em torno dos princípios constitucionais

Seremos governados por Leis ou por líderes?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No dia 09 de agosto de 2020 o general Santos Cruz publicou o seguinte Twitter:

TRISTE DIA DOS PAIS

O Brasil chora mais de 100.000 mortos. Quantos órfãos, quantas famílias mutiladas? A dor maior é saber que parte dessas perdas poderia ter sido evitada se houvesse liderança para a união de todos pela vida dos brasileiros. Até quando?

https://twitter.com/GenSantosCruz/status/1292565022665846784

Santos Cruz não se notabilizou quando foi nomeado por Bolsonaro e sim quando deixou o governo atirando contra o desperdício de dinheiro público e a ausência de combate à corrupção. O general chamou Olavo de Carvalho de vigarista profissional, disse que o Exército não marcha com o Bolsonaro e criticou a “gangue digital” que o ameaçou pela internet.

É impossível deixar de notar as manifestações desse militar. Ele tem prestado um grande serviço ao país ao ajudar a desmascarar os farsantes que assaltaram o poder e que tem feito tudo que podem para construir uma ditadura indesejada pelo povo e pelo comando do Exército. Como militar bem informado, Santos Cruz provavelmente sabe que será o primeiro a “andar na prancha” se o capitão amalucado conseguir realizar seu desejo de se tornar um ditador.

Todavia, desta vez não posso deixar de notar um problema na mensagem do general. Ele disse que “… parte dessas perdas poderia ter sido evitada se houvesse liderança para a união de todos pela vida dos brasileiros.”

As nações podem ser divididas em dois grandes grupos: aquelas que são governadas por homens (a Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, a Hungria de Viktor Mihály Orbán, etc…) e; aquelas em que as Leis são encarregadas de governar (a França de Macron, a Alemanha de Merkel, Portugal de Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, etc…). O Brasil almeja ser um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da Constituição Cidadã). Portanto, nosso país escolheu ser governado por Leis e não por homens.

Santos Cruz tem feito críticas severas a Jair Bolsonaro. Todavia, ao mencionar a necessidade de nosso país ser governado por uma “…liderança para a união de todos pela vida dos brasileiros” ele demonstrou compartilhar parcialmente a ideologia que orienta o imaginário autoritário que produziu 100 mil vítimas.

A Constituição Cidadã garante o direito à vida (art. 5º, caput) e obriga o Estado a prestar assistência médica gratuita aos cidadãos sem qualquer distinção (art. 196). Esses são os princípios legais que devem governar nosso país independentemente de quem for empossado na presidência ou em qualquer outro cargo público eletivo.

O que possibilita a paz social e permite ao Brasil ter sucesso no combater a pandemia não é união dos brasileiros em torno de um líder e sim a união nacional em torno dos princípios constitucionais que foram promulgados em 1988. Nós não precisamos ser governados por homens e sim por Leis.

Respeitar a Lei ao governar não deve ser encarado como uma concessão. Essa é a maior obrigação de qualquer governante brasileiro. O líder político que foi empossado num cargo eletivo (qualquer que seja o partido dele) não deve usar o poder para colocar seus projetos pessoais acima da Lei. A liberdade de ação dele é limitada pela Lei. Qualquer abuso cometido por um líder político, seja ele civil ou militar, popular ou não, deve ser objeto de investigação e punição na forma da legislação.

Respeito estatal à garantia de igualdade perante a Lei. Obediência incondicional ao princípio da legalidade e da impessoalidade quando da prática de atos governamentais. Devoção sincera e não apenas aparente àquilo que está escrito na Constituição Cidadã. Essas são as três coisas que o Brasil precisa nesse momento.

Bons ou ruins, os líderes políticos são temporários. O fato de eles competirem entre si não é um problema. A democracia é fortalecida pela disputa política. A única coisa que realmente mina o regime republicano é a crença de que o país deve ser governado por líderes e não pelos princípios constitucionais.

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Parabéns. Enfim alguém falando o que deve ser dito. Nossa evolução como nação necessariamente passa pelo entendimento disso. Precisamos passar da fase dos salvadores da pátria, dos mitos , do patriarcado para a fase da lei e da participação horizontal. Caciques de esquerda fazem tanto mal quanto os caciques de direita. As pessoas tem habilidades e vocações diferentes, algum tipo de coordenação vai sempre existir, mas a liderança cega e inquestionável é incompatível com os novos tempos

  2. O seu texto toca em uma questão interessante: o “governo das leis” e o dos “homens”, ou melhor dizendo, da contradição entre o contratualismo e o organicismo nas relações socias.

    Porém, falta um caráter mais geral à análise. Por que nos países capitalistas mais avançados existem regimes democráticos estáveis (Estados Unidos, França, Inglaterra, etc.) e nos países atrasados essa estabilidade é impossível? A resposta não é muito difícil, a causa é o próprio atraso. Como as contradições internas de um desenvolvimento capitalista avançado conjugado com arcaísmos históricos nunca são resolvidas, a consequência é um regime político em perpétua crise. A rigor, o Brasil, olhando pelo arco dos médios períodos históricos, está em crise desde a década de 1920. Por isso, toda vez que as contradições internas se acirram, voltamos às mesmas questões: a industrialização, o latifúndio hegemonizando a economia e atrasando o país, eleições nada democráticas, o autoritarismo no regime político, etc.

    Portanto, o dado fundamental da crise brasileira é a incapacidade de superar o atraso de formas herdadas de um regime escravista latifundiário e de, com isso, proceder com um desenvolvimento capitalista completo do país. E um dado é importante: a construção de estados capitalistas avançados na Europa e América do Norte só foi possível devido à imensa acumulação de riquezas através do imperialismo: o controle do mercado de capitais, das moedas mundiais, eliminação de empresas concorrentes, derrubada de governos que contrariassem os interesses econômicos desses países, inigualável força bélica, tudo isso impulsionado por imensos monopólios financeiros (bancários-industriais).

    Ou seja, a “democracia” e o “constitucionalismo” admirado nos países centrais do capitalismo mundial tem um preço: o nosso próprio atraso nacional. Por isso, é ingenuidade pensar que “eles deram certo” e “nós demos errado” por qualquer motivo que seja, porque tudo se trata de condições objetivas que criam essa situação. Na medida em que os países periféricos enfrentam o imperialismo dos países centrais, a estabilidade política dos próprios países centrais vai para o vinagre. Vejam o caso da Venezuela, país tão pobre e periférico, como incomoda os países mais poderosos do mundo. Não tenhamos essas ilusões de que o que rege as relações entre os homens são os contratos, porque na hora H, tudo é luta política.

    E luta política é liderança, sim. Mas também (e principalmente) é programa, estratégia, organização. Se queremos um novo estado social no Brasil, precisamos virar a mesa. Nos marcos da atual situação, estamos presos em um “loop” desde 1920. Um contrato é a normatização das relações sociais. Mas as relações sociais são orgânicas, condicionada pelo estado das forças produtivas da sociedade, não são alteráveis com firma em cartório, precisam de uma mudança na base material da sociedade para mudarem. Portanto, a única saída da crise brasileira, a única forma de sairmos desse infernal “loop” de crises, é com uma luta política revolucionária, que vire a mesa do atual regime, assim como se tentou na década de 1920, com a revolta do forte de Copacabana de 1922, a insurreição de São Paulo de 1924, a Coluna Prestes 1924-1927, a Revolução de 1930… Temos que sair dos limites intelectuais e políticos que nos aprisionam nessa estrutura de crise.

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