A invenção do sufixo de luxo

Publicado na revista Língua 104, edição de outubro de 2014

Por Edgard Murano

Nos últimos anos o comércio das cidades brasileiras foi tomado por uma onda de estabelecimentos, a maioria bares e restaurantes, que em comum têm os nomes terminados em -aria ou -eria — peixarias, leiterias, queijarias, novelarias, torterias, e por aí vai. Na esteira do fenômeno da gourmetização, com sua terminologia sofisticada e estrangeira, a moda desses sufixos espalhou-se como faísca em rastilho de pólvora, gerando dezenas de derivações inusitadas, como uma improvável Picanharia, Nhoqueria, Omeleteria, Sakeria, Risoteria, além de serviços e produtos de outros segmentos, como Chinelaria, Cabelaria (que tal “salão”?), Esmalteria, Selaria e, pasmem, até uma Videogameria.

Filólogos e etimologistas também se deram conta da incidência desse tipo de derivação no comércio brasileiro. O professor Mário Eduardo Viaro é um deles, colaborador de Língua e um dos maiores pesquisadores do país na área de etimologia.

— O que posso dizer é que tenho percebido também essa tendência de formações criadas por derivação em -aria/-eria. Ela é antiga e significa um local especializado na venda ou na confecção daquilo que é apresentado como radical.

Mais do que enfatizar uma especialização — uma expertise — tanta criatividade no uso desses sufixos pode ser reflexo de uma nova gama de serviços disponíveis no mercado. Só o setor de alimentação, em 2013, cresceu numa razão três vezes maior que a do PIB nacional, e o ramo de “comidas rápidas” é considerado o mais promissor em termos de crescimento. Em alguns casos, porém, o marketing implícito nesses nomes consiste mais em dar uma nova roupagem a serviços tradicionais que precisam ser vendidos como “diferenciados” (outro termo da moda, uma espécie de eufemismo para serviços e produtos “de qualidade” oferecidos à classe média).

Vale lembrar que, segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal (SAE), houve uma considerável mobilidade social nos últimos anos: de 2004 a 2010, 32 milhões de pessoas ascenderam à classe média (A, B e C) e 19,3 milhões saíram da pobreza, o que não deixa de ser um forte apelo ao consumo: novos consumidores, novos produtos, novas estratégias de marketing…

PicMonkey Collage 2Influência francesa

O curioso é que muitos desses nomes sempre existiram como substantivos comuns, geralmente acompanhados de um nome próprio, como por exemplo a peixaria “Bom Retiro” ou a tapeçaria “Dois Irmãos”. O que se vê agora são termos derivados alçados à condição de substantivos próprios, dispensando um nome mais específico para acompanhá-los. Basta agora que se diga aQueijaria ou Peixaria — com artigo definido e inicial maiúscula — para sabermos de onde se trata, sem que seja preciso perguntar qual delas.

Nem mesmo a tradicional “padaria” (ou “panificadora”) ficou imune à necessidade de diferenciação exigida pelo mercado, virando “Paneria” nas mãos de uma rede paulistana de panificação. Antes, porém, já tínhamos as boulangeries, sinônimo francês das padarias artesanais de luxo. Vale ressaltar que a variação -eria do sufixo é atribuída à língua francesa (librairie, joallerie, carrocerie), idioma de grande influência no período medieval de acordo com a professora Valéria Gil Condé em seu artigo “A produtividade do sufixo -eria na língua portuguesa do Brasil” [www.usp.br/gmhp/publ/conA1.pdf].

Segundo Valéria, o a tônico palatalizou-se em e no francês, resultando em -erie e, a partir daí, disseminando-se para outras línguas. Seria, aliás, essa palatalização a principal diferença entre o francês (librairie) e o provençal (librariá) — e no caso desse termo em específico, Valéria nota que -erie, originado de -aria, foi grafado -airie para se aproximar do latim. O francês, como se sabe, sempre foi uma língua “franca” em matéria de luxo, principalmente no Brasil.

Não deixa de ser interessante, sob essa ótica, a inovação do brasileiríssimo “cabelaria”, quando o mais usual seria seu sinônimo “cabeleireiro(a)”, o que pode indicar uma tendência do termo de seguir sua equivalente peluquería — derivação exótica para nós, mas corrente em espanhol. Um exotismo que não deixa de ser desejável, diga-se de passagem, em se tratando do marketing de um salão de beleza, sinalizando um certo grau de porosidade entre as línguas.

Leia o artigo na íntegra…

 

Edgard Murano é jornalista e mestrando em Filologia e Língua Portuguesa na FFLCH-USP http://edgardm.wordpress.com

Redação

17 Comentários

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  1. Possuir

    O artigo me deu a chave para entender a razão de terem as mídias jogado fora o verbo “ter”, colocando em seu lugar o verbo “possuir”.  

    Vejamos: ter algo, todo mundo tinha, seja o que fosse. Mas, “possuir” era coisa para muito poucos, tanto que em Minas quando alguém era miliardário se dizia que este era um sujeito de posses.

    Portanto, nestes tempos de desenfreado marketing, nada mais natural do que popularizar o “possuir”, dando às massas a impressão de que estão podendo – para, então, terem uma boa alavancagem para desabar  no maravilhoso despenhadeiro do consumismo.

     

  2. Ora ora…parece mesmo que

    Ora ora…parece mesmo que estão se “especializando” em fazer uma grande “pu*ria” com o Português. ahahahahahah

    1. ganhou o dia

      e a palavra tambem parece ter tons afrancesados pois termina com “aria”.

      mas me desculpe o autor do texto, mas selaria é um termo bem antigo, não é novidade.

  3. Se fosse só o “aria”…

    Se fosse só o “aria” que fosse sufixo usado pra marketing tudo bem. Afinal, temos a boa a e velha pastelaria, a padaria, etc…

    O que me dá no saco é o uso indiscriminado do “gourmet”. Já tem gente vendendo “brigadeiro gourmet” e até “agua mineral gourmet”. No caso da água, na minha cabeça, há uma fraude cientificamente comprovada, já que a água é por definição uma substância sem cor, sem cheiro e sem gosto!

    E agora surgiu a moda das “butiques”, de carne, de frios e de peixe. Sujeito abre um estabelecimento luxuoso afrescalhado, caríssimo, pra vender a mesma carne e peixe que você compra no supermercado por 1/5 do preço…

    1. Água, essa, sem cor, cheiro

      Água, essa, sem cor, cheiro ou sabor…é água destilada…. as águas minerais realmente tem cada uma o seu sabor…

      Frescura? Pode ser…mas tem empresas bilionárias comprando as águas brasileiras…

      E não me venham com explicações do tipo…é concessão apenas… eu estou falando que é só prestar atenção nos rótulos das nossas principais águas…pra ver o que está ocorrendo…

      Quando eu era criança e tinha ‘dor de barriga’… minha mãe me dava uma água que vinha lá de perto da terra do Nassif… era muito bom….

  4. Não entendi muito bem o

    Não entendi muito bem o raciocínio. Por que o uso do sufixo “ria” (com ou sem a vogal de ligação “a” ou “e”) teria se tornado um sufixo de luxo?

    Como diz o próprio autor do texto, tal sufixo sempre signicou o lugar de produção de algo (acrescento também que pode significar a prática de algo – romaria, brucharia, putaria, montaria etc etc).

    Onde estaRIA (aqui, o “ria” é morfema de desinência verbal) o caráter elitista de uma olaria, peixaria, padaria, sorveteria, corregedoria, procuradoria, defensoria, sapataria, bilheteria….

    Se há cada vez mais creperias, picanherias, nhoquerias, iorguterias, o caráter elitista (se é que há) estaria no radical, não no sufixo. Em não no radical em si, mas pelo fato de tais estabelecimentos se destinarem ao comércio de produtos direcionados a parcelas mais abastadas da população.

    E o fato de tal sufixo ser proveniente do francês não tira o valor de seu uso corrente. As línguas são assim – elas se conversam. 

  5. Já no final dos anos 60, eu e

    Já no final dos anos 60, eu e colegas da faculdade chamávamos de discarias as tradicionais lojas de discos.

    Será que fomos nós os introdutores do moda atual?

     

    1.  
      Alguns anos depois, as

       

      Alguns anos depois, as lanchonetes saíam de moda e em seu lugar entravam as “fast foods”; ou para os mais chiques, as “fast fooderias”.

       

  6. O pior nem é isso…

    Reparem que além do “aria” nos exemplos das fotos vê-se outra mania do comércio “de elite” do Brazil (com Z ). É o uso constante de termos em inglês. Isso valia um estudo. Psicológico: para entender porque uma pessoa acha que vai vender mais colocando no Sale ao invés de liquidação. E também por conta da criatividade que se propõe a traduzir uma ideia que o cara teve em protuguês para o Inglês e ele escreve alguma frase absurda ( Emotional food ???) como se estivesse arrasando mas no fundo só revela o seu total desconhecimento da língua inglêsa!

    Típico bruguesinho zona sul! Típico coxinha! Típico eleitor burro de Aécio que se acha o máximo!

  7. Modismos bobos

    Ondas de modismos que sempre quiseram criar uma sensação ao consumidor que coisas relacionadas com o mundo de fora são melhores que as brasileiras. Desde crianças, logo de voltar de Disneyworld, toda essa massa consumidora convive com uma parte do seu cérebro em Miami. ou Europa

    Nomes de prédios residenciais em Frances, grifes de roupa, liquidação SALE 100% OFF (que coisa baranga!), perfumes “PERSUEI-XÔOOO”, e outras estupidezes.

    O dia que acabar essa alienação de crianças brasileiras e tiremos o Pato Donald do seu lado direito do cérebro, começaremos a olhar com maior interesse o bom que é o Brasil.

  8. De novo isso? Foi postado ontem. E é de uma bobeira…

    Os sufixos -aria e -eria sao super tradicionais, e a extensao do léxico usando sufixos existentes é algo banal. E conservadorismo linguístico é apenas mais uma faceta de conservadorismo, ponto. As línguas variam e mudam, todas elas e a todo tempo. Nao há nada de especial no que o texto diz.  

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