Ocupe Estelita, por Isi de Paula

Enviado por Alfeu

Em 2012, acontecia o primeiro Ocupe Estelita. De fora do terreno, chamava atenção para as comunidades vulneráveis do entorno do Cais. (Foto: Direitos Urbanos/Divulgação)

da Agência PLANO – Portal Latino-Americano de Notícias

Ocupe Estelita

Dois anos do movimento que tenta devolver a cidade aos seus moradores

por Isi de Paula

Fotos: Marcelo Soares e Chico Ludemir

Quando disse ao taxista que me dirigia ao Estelita, ele foi cuidadoso. “Vai sozinha? Você sabe que aquela área é meio esquisita, não é?”, advertiu. “Esquisito” é o termo que usamos na linguagem recifense para nos referirmos a locais ermos, onde a arquitetura não favorece a circulação de pessoas e, com a falta de movimento humano, o que se experiencia é uma sensação de insegurança. O termo faz parte da vida diária de todo morador da cidade cujas áreas, para nós, podem muito bem ser divididas entre duas categorias: “seguras” e “inseguras”. Ou seja, “movimentadas” e “esquisitas”. É desta categoria que faz parte o local para onde direcionei aquele taxista. Mas o tranquilizei: “Hoje vai ter Ocupe Estelita, vai estar movimentado”. Era o último sábado, dia 21, e o evento marcava o aniversário de dois anos desde a primeira ocupação que consolidou um dos movimentos sociais mais relevantes já criados no Recife.

A esta altura do imbróglio, é difícil escrever um texto que dê conta de todas as nuances que o permeiam. Vale começar dizendo que não se trata de uma área qualquer: o Cais José Estelita abriga parte importante da memória do Recife em seu terreno de mais de 100 mil metros quadrados, onde, no século passado, funcionavam armazéns de açúcar e a Estrada de Ferro do Recife, segunda ferrovia do Brasil. Vale também salientar o quanto a localização é privilegiada, no centro antigo da cidade e com bela vista para a bacia do Pina. Outrora de propriedade da União, em 2008 o terreno foi adquirido, por meio de um leilão fraudulento, por um consórcio formado por quatro grandes construtoras da cidade, sendo a principal a Moura Dubeux. O Consórcio Novo Recife, como foi batizado, pretendia demolir as históricas construções do cais para erguer no lugar doze torres de até 30 andares. O projeto de luxo seria levado adiante sem que as construtoras tivessem realizado estudos de impacto obrigatórios para a área, e sem que a população da cidade tivesse sido consultada.Marcelo Soares

Em Junho de 2014, já ocupando o terreno ininterruptamente, o movimento colocou mais de 10 mil pessoas no local. (Foto: Marcelo Soares)

Marcelo Soares

Campos de vegetação do antigo terreno da Refesa ocupados em meados de junho de 2014. (Foto: Marcelo Soares)

Chico Ludemir 

A desocupação aconteceu também em junho de 2014. A decisão judicial foi considerada “eivada de vícios” pelo Ministério Público de Pernambuco. (Foto: Chico Ludemir)

Apesar das várias irregularidades, na madrugada do dia 21 de maio de 2014 os galpões do cais foram tomados de assalto por retroescavadeiras. A construção iniciaria naquele momento, não fosse o acaso de dois integrantes do Ocupe Estelita terem passado por ali e, imediatamente divulgando o caso nas redes sociais, conseguido mobilizar um grupo de manifestantes que montou acampamento no local. Ali nascia o movimento que tem conseguido, desde então, evitar que imensos arranha­céus roubem da cidade uma de suas melhores paisagens. Não tem sido uma tarefa fácil, uma vez que as construtoras, doadoras nas campanhas eleitorais, têm contado com o apoio de um governo municipal que não hesita em se utilizar de subterfúgios para evitar a participação da sociedade civil nas decisões sobre o projeto, e assim facilitar sua execução. Mas, ao menos por enquanto, oconsórcio está impedido de derrubar qualquer tijolo do cais até que se resolvam os cinco processos aos quais responde na Justiça. A sombra do Novo Recife permanece ali, contudo, marcando território na presença de seguranças que vigiam o local 24 horas por dia.

Com o cais fechado e vigiado, o Ocupe Estelita realizou o evento comemorativo na praça Abelardo Rijo, logo ao lado do cais e que, apesar de ser espaço público, vive permanentemente vazia, esquisita. Observei enquanto chegavam cada vez mais pessoas, de todas as idades e classes sociais, e começaram a ocupar aqueles arredores que normalmente só testemunham algum movimento quando se pratica ali tráfico de drogas, prostituição, violência. Vi adolescentes, celulares na mão, irem fazer selfies na ponte e em frente aos armazéns. Aos poucos foram chegando também trabalhadores, vendedores de cerveja e cachaça que sentavam com suas caixas de isopor ao lado de barraquinhas meio gourmet, onde jovens de classe média vendiam cupcakes e petiscos veganos. Ao ruído das conversas se misturou o som de música que alguém lembrou de tocar, e até mesmo moradores de rua se sentiram à vontade para se aproximar, sentar à sombra das árvores e participar daquele momento de comunhão. Eu testemunhava a transformação de uma área “esquisita” em uma área “movimentada”, uma transformação não só física, mas psicológica: estando em grupo, a cidade já não nos assustava, e já não nos assustavam pessoas que poderiam parecer suspeitas caso qualquer um de nós que participávamos do ato estivéssemos ali sozinhos.

Marcelo Soares 

Depois da desocupação em junho de 2014, o movimento resistiu acampado do lado de fora do terreno. (Foto: Marcelo Soares)

Marcelo Soares 

Maio de 2015. Ao mesmo tempo que o legislativo do Recife aprovava o Plano Urbanístico da área, favorecendo as construtoras – e o Prefeito Geraldo Julio sancionava-o ausente do Recife para evitar resistências jurídicas – os ativistas não desistiam. (Foto: Marcelo Soares)

Esse é o tipo de experiência que passa longe da compreensão dos especuladores imobiliários, que pretendem instaurar na cidade a arquitetura do medo: em vez de combater a segregação social, tornam-­na ainda maior ao construir luxuosos fortes para se proteger do desconforto que ela causa. Em 2008, o projeto original do Novo Recife foi protocolado na Prefeitura apenas um mês antes de entrar em vigência o atual Plano Diretor da cidade, que prevê normas de construção mais rigorosas que o anterior. Isso permitiu que fossem ignoradas, na época, diversas falhas arquitetônicas e urbanísticas que o consórcio vem tentando contornar após a grande pressão popular liderada pelo movimento Ocupe Estelita. Por exemplo, não foi prevista no projeto original a inclusão de habitações populares para realocar as comunidades pobres que seriam expulsas da área para que ela recebesse o público de classe alta. Além disso, a altura das torres não só destoa drasticamente da paisagem histórica do centro da cidade como também lhe rouba a ventilação que vem do Rio Capibaribe. Há ainda o problema da grande quantidade de carros que o empreendimento atrairiam para o tráfego local, já bastante problemático.

São provas de que, na arquitetura do medo, o que se prioriza é o imóvel e o automóvel em detrimento do cidadão. Educar a população da cidade acerca desse fenômeno, e mobilizá­la contra ele, tem sido o grande mérito do Ocupe Estelita, tanto quanto as conquistas judiciais. “Um marco em nosso movimento foi o momento pós ­ocupação de maio de 2015, quando conseguimos uma grande mobilização popular. Fizemos uma série de atos que terminaram em ocupações em frente ao shopping RioMar, em frente à casa do prefeito Geraldo Júlio e na sede da Moura Dubeux”, relata Fernanda Dantas, uma das integrantes do Ocupe. Segundo ela, durante esses protestos o número de participantes chegou a cerca 5 mil. “Também conseguimos uma grande mobilização através de nossas redes sociais. Mas o principal espaço de diálogo ainda são nossas assembleias abertas, onde discutimos e tomamos decisões em grupo”, explica.

Marcelo Soares 

Manifestantes do Ocupe Estelita saem em protesto contra o Projeto Novo Recife em maio de 2015. (Foto: Marcelo Soares)

Nesses dois anos de trajetória, contando com crescente apoio popular, o próprio movimento transcendeu. O que começou como mais um movimento de ocupação, no embalo dos #Ocupes e #Occupies ocorrendo em todo o Brasil e no mundo, passou a ser ponto de convergência para toda discussão urbanística do Recife, e mesmo de além da capital. “Fizemos, por exemplo, o Ocupe Campo Cidade, em parceria com o MTST e povo indígena “Xukuru”, lembra Fernanda Dantas. “Isso nos mostrou que, tanto no campo quanto na cidade, estamos todos na mesma luta por espaço, porque o capital imobiliário quer chegar a esses lugares também”. Já a comemoração dos dois anos de ocupação contou com a presença do coletivo Marcha das Vadias, que aproveitou o evento para fazer pintura de cartazes e camisetas, de um grupo de direitos LGBT que montou uma tenda de debates e palestras, entre outros movimentos. “O que nos une o fato de estarmos lutando por direitos. Qualquer que seja o movimento, o que buscamos são condições de vida melhores, principalmente para as mulheres”, opina Patrícia Naia, integrante do Marcha.

Com o cair da noite, a praça foi ficando ainda mais movimentada. Ocupantes chegavam de carro, ônibus e bicicleta, aumentando o fluxo humano entre pistas, estacionamentos e pontos de parada. Com o fim das atividades programadas para o dia, crescia o clima de festa e se fazia a alegria dos ocupantes e dos vendedores, que também iam se tornando cada vez mais numerosos. Era minha hora de partir e, nesse momento, já me sentia encorajada a voltar para casa usando transporte público. Não sem a constante sensação de insegurança que já está impregnada no espírito de qualquer pessoa que tenha vivido por algum tempo o Recife e seus esquisitos. Mas com a esperança que o movimento Ocupe Estelita e seus dois anos de luta são capazes de inspirar, de que um dia a cidade será para todos.

Marcelo Soares 

Em outubro de 2015, após a Polícia Federal afirmar que o leilão do terreno foi ilegal, um juiz do TRF 5º proibiu a Prefeitura de continuar o processo de aprovação do Projeto Novo Recife. A população foi para a rua, mas a decisão foi cassada por um desembargador do mesmo tribunal. (Foto: Marcelo Soares)

http://agenciaplano.com/por/noticias.php?cod_noticia=148

 

Redação

1 Comentário

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  1.  Mais que “NOSSA”, a cidade é

     Mais que “NOSSA”, a cidade é “DE TODOS”. A diferença no uso dos termos pode até ser sutil, passar despercebida,  mas a escolha das palavras tem significado.  Sim…. claro, a cidade também é “MINHA”. Portanto, posso dizer que é “NOSSA”. Mas prefiro pensar que  acima de tudo, acima dos desejos e interesses de grupos,  ( inclusive do MEU GRUPO) a cidade é “DE TODOS”!  Por esta razão não me permito “ocupar a cidade”, ou parte dela. Não ouso me apossar do que é de todos…..

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