Recife: descaramento é ferramenta do “planejamento” urbano

Foto: Leonardo Cisneiros I Cais José Estelita

RECIFE: A institucionalização do descaramento como ferramenta de “planejamento” urbano

Por Leonardo Cisneiros I Direitos Urbanos I Recife I Professor de filosofia da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco)

Confira após este texto o Relatório/Voto de Vistas sobre o Plano Urbanístico para o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga

Cheguei há pouco da reunião do Conselho da Cidade do Recife sobre o Plano Urbanístico para o Cais José Estelita, Cabanga e Cais de Santa Rita, cuja discussão vem (toda errada!) desde o começo do ano. Como já falado aqui diversas vezes, o processo de elaboração e discussão desse plano foi uma ilustração paradigmática, exemplar, daquelas para virar tese de doutorado (certamente serão feitas!), da maneira INDECENTE como o planejamento dessa cidade tem sido conduzido por essa gestão.

Se cobrávamos desde 2012 a elaboração de um Plano Urbanístico para a definição do futuro do Estelita, é porque cobrávamos, como continuamos cobrando, a submissão do interesse dos empreendendores privados, fragmentário, de curto prazo, voltado a tirar do solo urbano o máximo de mais-valia o mais rápido possível, ao interesse público, de longo prazo, pensado a partir de uma visão global de que cidade nós queremos, pensando na sustentabilidade das formas de ocupação do espaço urbano, na sua integração com a cidade de quase quinhentos anos e na inclusão de sua população.

O que a Prefeitura apresentou foi a completa inversão e perversão do planejamento urbano: construiu a parte formal do que seria uma visão do todo, a minuta de lei para um plano urbanístico, tomando como a primeira de todas as premissas o dado de dois grandes empreendimentos privados na área do plano (um já conhecido, o Projeto Novo Recife, e outro no Cabanga, ainda não formalizado) e construindo um simulacro de visão de cidade ao redor deles.

Ela não foi capaz de apresentar um único estudo técnico dos que foram solicitados por vários conselheiros. Apresentou uma sequência de slides que mostrariam o resultado desses estudos, mas escondeu a metodologia, os dados, as próprias questões levantadas. Vai abrir espaço para cinco mil vagas de carro só no Estelita com a desculpa oficial de que o transporte público no Recife é ruim, mas sem ter apresentado mesmo um diagnóstico simples do grau de saturação das vias na área. Deixou de fora do plano áreas que têm características semelhantes às da área do plano, mas que já estão sendo adquiridas por empreendores privados. E tantas outras irregularidades de procedimento que já foram apontadas no parecer lido na reunião e publicado aqui.

Mas para coroar esse processo de institucionalização da desfaçatez, na reunião de hoje, após apresentadas as impugnações pela conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, por mim, pela conselheira do Cendhec, o secretário Antonio Alexandre disse que esses votos-vista não diziam respeito ao conteúdo do plano, portanto não seriam colocados em votação e seria dada sequência à votação do plano mais alguns destaques cosméticos apresentados pela Prefeitura. O conselheiro Tomás Lapa, do MDU, disse que não compactuava com o que considerou uma pantomima ( Emoticon heart ) e retirou-se da reunião. Após a insistência do secretário, respondendo a várias questões de ordem, em não votar os votos-vista e votar diretamente o plano original, sem sequer um relatório ou parecer, retiramo-nos da reunião eu, a representante do Cendhec (Cynara), o representante do IAB (Márcio), o representante da Diaconia (Joselito). A votação seguiu, com o protesto da representante do CAU que permaneceu, e a Prefeitura aprovou o plano por vinte votos a favor e uma abstenção. É bem provável que não tenha atingido o quorum para deliberação porque novos conselheiros foram empossados recentemente e, com 43 ou 44 conselheiros, este quorum seria de 22 ou 23 votantes, respectivamente. Mas esta nem é a pior das irregularidades. Tem coisa nesse processo para pedir a improbidade de Geraldo Julio, se ele não for revertido e esse plano for aprovado na Câmara.

O conselho foi criado como uma forma de reestruturar desde a base o sistema de participação popular na gestão urbana do Recife, mas hoje se encontra reproduzindo as mesmas práticas antidemocráticas de planejamento urbano que ajudaram a levar Recife ao caos urbano atual. As discussões têm sido uma mera encenação destinada a validar decisões já tomadas pelo Poder Público, muitas vezes em entendimento com os empreendedores, em explícita subordinação dos interesses do capital imobiliário. Neste caso em particular, do plano do Estelita, a decisão desmoralizada deste Conselho esvaziado pela sociedade civil, atesta a tese de que todo o processo de negociação e redesenho do projeto Novo Recife foi uma grande pantomima, tese que se reforça pela aprovação no plano de um artigo que dá ao empreendedor um botão de implosão do processo e o permite construir o projeto original. E a aprovação hoje desse plano servirá de desculpa ao Prefeito para dizer que o processo de negociação estaria encerrado e até liberar as licenças que havia suspendido, inclusive as de demolição!

Mas há no episódio de hoje algo ainda mais grave e preocupante: na agenda da política urbana para 2015 está a revisão integral da Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1996, da Lei de Parcelamento, a revisão parcial do Plano Diretor, a revisão da lei dos IEPs, dentre outras regulamentações importantes. São essas leis que no que têm de bom e no que têm de ruim, principalmente no que têm de ruim, definem a nossa cidade como está hoje. E essas novas leis definirão a cidade talvez por anos ou mesmo décadas. E para essa discussão, a associação das empreiteiras já apresentou suas propostas na época da eleição de Geraldo Julio: fim da lei dos doze bairros e liberação de Brasília Teimosa para a especulação imobiliária. É nesse conselho que discutiremos isso? É nesse conselho desmoralizado pela própria Prefeitura que o futuro da cidade será decidido? A Batalha pelo Estelita sempre foi um símbolo por todas as lutas por esta cidade, mas agora tornou-se, mais do que nunca, uma luta pela democracia, pela participação, pela voz dos cidadãos no rumo da cidade.

 

VOTO-VISTA SOBRE O PLANO URBANÍSTICO DO ESTELITA
 

Relatório/Voto de Vistas sobre o Plano Urbanístico para o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga

Leonardo Cisneiros – Grupo Direitos Urbanos

1. A condução do processo de discussão do plano e, na verdade, de todo o processo de instalação do Conselho tem mostrado a completa incapacidade técnica do Secretário Antonio Alexandre para lidar com a participação popular. O princípio da Gestão Democrática das Cidades, albergado na Constituição Federal (art.29, XII) e no Estatuto da Cidade, requer uma PARTILHA de responsabilidades, a criação de um espaço de decisão COMPARTILHADA. No entanto, o que vemos é a contínua imposição por parte da Prefeitura de decisões tomadas em outras instâncias, definindo na força do voto em bloco o que deveria ser definido pela força do melhor argumento. O problema é que a Prefeitura não tem o melhor argumento. É continuamente contestada e refutada tanto por entidades técnicas como o CAU e o IAB quanto por ONGs e movimentos sociais. Suas decisões não se sustentam num debate público de ideias e por várias vezes os próprios técnicos da Prefeitura concordam com os argumentos da sociedade civil durante a discussão, mas acabam obrigados a votar de forma alinhada ao Secretário.

O Conselho da Cidade tinha a missão de renovar os espaços de participação popular na cidade do Recife, desgastada, dentre outros casos, pela conhecida e documentada história de submissão do Conselho de Desenvolvimento Urbano a interesses privados, história esta, inclusive, muito bem estudada por uma das técnicas que são forçadas aqui a votar de acordo com o Secretário. No entanto, desde o caso do PLE 25/2013, em que a Prefeitura insistiu em manter o CDU como um Conselho separado do ConCidade, contra a resolução da Conferência da Cidade e a despeito dos vários protestos de várias entidades da sociedade civil, vemos que a história da participação nessa cidade não está sendo diferente. Este Conselho, sob a condução do secretário Antônio Alexandre, reproduz as práticas que DESMORALIZARAM os espaços de participação popular nesta cidade.

2. O caso da discussão do Plano Urbanístico para o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga é uma amostra emblemática dessa postura anti-democrática e contrária às recomendações técnicas. Desde o começo foi alertado de que era necessária uma discussão técnica sobre o plano urbanístico e não sobre a minuta de projeto de lei que dele decorre, com a apresentação rigorosa dos diversos estudos exigíveis, com sabatina dos técnicos, com quantas audiências públicas fossem necessárias para estabelecer um debate real com a população e o esclarecimento de suas dúvidas. Mas a metodologia que foi insistentemente reafirmada por entidades técnicas, com competência para serem reconhecidas como peritas na questão do planejamento urbano, foi rejeitada pela Prefeitura, num voto em bloco, sem maiores explicações.

a) Os estudos prévios necessários e solicitados não foram apresentados, em direta violação das diretivas do Estatuto da Cidade sobre participação popular.

b) A apresentação técnica do plano, na Câmara Técnica de Planejamento Urbano, além de não ter sido conduzida pelo TÉCNICO responsável pelo plano, violando o que havia sido definido na reunião anterior, terminou sem o esclarecimento de todas as dúvidas levantadas e sem levar a cabo a discussão técnica decidida em plenária.

c) A remissão de diversos pontos a uma futura revisão da LUOS mostrou que a ordem dos fatores no planejamento foi invertida para dar urgência à elaboração de uma lei que favorece os empreendedores privados em detrimento da regulamentação já tardia de diversos instrumentos cruciais para domar o caos urbano da cidade do Recife e que, até hoje, não saíram do papel.

d) A audiência pública sobre o plano foi realizada em data destinada a inibir a ampla participação da população, sem debate por parte da Prefeitura, e todas as suas contribuições receberam uma resposta protocolar que manteve o plano tal como estava, sem incorporar qualquer proposta substancial. Foi uma audiência só para cumprir formalidades, sem que demandas praticamente unanimes tenham sido incorporadas.

e) Por fim, a minuta do projeto de lei foi posta em votação sem a elaboração de um relatório pela Câmara Tecnica correspondente, como requer o Regimento do Conselho da Cidade e as práticas mais elementares do Direito Administrativo.

Ficou patente assim que todo esse processo desavergonhadamente irregular se destinou somente a validar projetos imobiliários na área do plano sem qualquer preocupação com um real planejamento da cidade a partir do interesse público, das demandas da sociedade para aquela região e da capacidade do tecido urbano de absorver a sobrecarga urbanística proposta para a área.

3. Assim, não cabe adentrar na análise substancial de um plano que, se estivesse realmente aberto às propostas da população, poderia ser drasticamente diferente e melhor do que o apresentado. O processo está eivado de irregularidades, que o comprometem seriamente, e deve ser reiniciado ab ovo, com a apresentação ou realização dos diversos estudos técnicos necessário, discussão na Câmara Técnica, audiência pública etc. Por essas razões, voto pela REJEIÇÃO DA MINUTA APRESENTADA E O REINÍCIO DO PROCESSO.

Recife, 19 de março de 2015

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Leonardo Cisneiros

 

 

 

Redação

1 Comentário

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  1. A luta de vocês em Recife é

    A luta de vocês em Recife é em tudo semelhante à luta travada em Belo Horizonte contra o projeto Nova BH, concebido pela Odebrecht e pela Andrade-Gutierrez e posto em marcha acelerada pela Prefeitura de Belo Horizonte, comandada também por um membro do PSB (surpresa!), com o auxílio de tucanos (Custódio Matos, ex-prefeito de Juiz de Fora).

     

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