A pandemia de Covid-19 e a ciência médica entre o crédito e o descrédito 1, por Adriana Ribeiro de Macedo

O especialista competente é cauteloso em sua área, tendo uma noção dos limites do seu conhecimento, mas, pode ser agressivo e arrogante na área alheia, como se nela fosse também especialista.

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A pandemia de Covid-19 e a ciência médica entre o crédito e o descrédito

Texto 1 – O crédito à ciência depende da confiança socialmente construída

por Adriana Ribeiro de Macedo

            Este texto compõe um conjunto de cinco que buscam contribuir para pensar as questões relacionadas ao crédito e ao descrédito da ciência, questões que ganharam relevo nos últimos dois anos. Este artigo introdutório parte da ideia de que a confiança na ciência, socialmente construída, está sendo abalada usando, paradoxalmente, a própria credibilidade social da figura do especialista nas redes sociais. O segundo aprofunda a reflexão sobre a figura do especialista, considerando questões relacionadas à sua formação instrumental e analisando o papel da expressão das “opiniões” de especialistas e cientistas para além de suas áreas de expertise na disseminação de fakenews. O terceiro trata do uso das informações por grupos sociais em rede e da relação desse uso com o descrédito da ciência. O quarto artigo aborda o tema da desconfiança, que cresce em meio às contradições entre as promessas do discurso científico hegemônico, especialmente o econômico, e a vida material.  O último artigo trata da necessidade de afastamento da lógica mercadológica e utilitarista e cita alguns deslocamentos caros a esse distanciamento. Destacamos que este conjunto de reflexões não corrobora o movimento anticiência embora busque refletir sobre ele.

Para a tecnocientista de perfil racional-procedimental Natalia Pasternak1, o movimento negacionista da ciência no Brasil, evidenciado na Pandemia de Covid-19, decorre da ausência do estudo adequado sobre método(s) científico(s) nas escolas – na formação médica inclusive, onde a falta de aprofundamento resulta na maior valorização da experiência clínica que do conhecimento científico. Esse conteúdo permitiria compreender que um certo grau de incerteza é inerente à ciência e que o rigor científico é central na minimização do erro e deve ser considerado na análise do mérito dos trabalhos. A qualidade dos estudos, mas também os limites do método e da extrapolação dos achados devem ser observados no confronto dos resultados dos estudos com as experiências de vida dos sujeitos e com as informações que circulam nos inúmeros grupos de pertença.

Embora esse ponto deva ser considerado, a questão é muito mais complexa, como buscamos pontuar neste conjunto de artigos. De fato, os sujeitos sociais não dominam o conhecimento técnico e/ou científico. No geral, os passos lógicos que levaram certos cientistas às descobertas de determinadas fórmulas, por exemplo, não são apresentados na escola, os estudantes são apenas treinados para aplicá-las. No mesmo sentido, estudamos a estrutura da célula e a importância do microscópio neste processo, mas não o longo percurso de acertos, erros e ajustes através do qual se chegou à compreensão de tal estrutura. Meyer Fortes2 apontou a dificuldade de achar um dentre nós que consiga explicar, em ricos detalhes, como se sabe que o sol não gira em torno da terra, a ponto de “provar de forma convincente a qualquer pessoa que não aceite tal afirmação”. Como, enquanto indivíduos, a maioria dos nós não percorreu os caminhos que levaram ao domínio deste conhecimento, recebendo as informações dos achados e suas explicações sob a forma de assertivas, várias lacunas nos impedem de cumprir com êxito essa árdua tarefa. Fortes, então, pontuou que a teoria heliocêntrica é resultado do acúmulo de descobertas anteriores socialmente aceitas e ensinadas por autoridades socialmente legitimadas.

Assim, especialistas fazem parte do grupo com credibilidade social para falar. As informações chegam à sociedade prontas, rasas, e essas são pontos de partida: nesse saber nós simplesmente acreditamos. Para Anthony Giddens3, a confiança nas instituições da modernidade é fundamental e envolve o que ele denomina sistemas peritos, “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social”. O autor não se refere apenas aos momentos de consulta a especialistas (advogados, arquitetos, médicos etc.), mas a todo instante, como, por exemplo, ao subir escadas sem medo de que desabem ou ao dirigir automóveis em estradas e passar por cruzamentos e semáforos, confiando que os riscos em relação a cada elemento estão minimizados. Os sistemas peritos são, para Giddens, um dos mecanismos de desencaixe, de “deslocamento” das relações sociais, permitindo a ausência no tempo e no espaço de relações pessoais de confiança. A confiança se dá sem a necessidade das pessoas se conhecerem, estarem presentes ou conviverem.

Dessa forma, os sistemas peritos são baseados em confiança, permitem relações entre “agentes amplamente separados no tempo e no espaço”, sem que haja domínio do conhecimento e dos processos envolvidos por parte de quem confia. Geralmente, há “um conhecimento indutivo fraco” acrescido da “experiência” de que tais sistemas geralmente funcionam e da existência de “forças reguladoras além e acima das associações profissionais” que protegem “os consumidores dos sistemas peritos” 3. Tais sistemas diminuem os níveis de preocupação e de atenção nas ações cotidianas e minimizam o esforço cognitivo. A automatização das ações assume um papel de economia energética dos corpos exauridos pelo trabalho excessivo e/ou pela vulnerabilidade social. Os especialistas têm a tarefa de facilitar a vida a cidadãos muito ocupados em trabalhar e sobreviver.

Se, por um lado, tanto a ciência quanto os especialistas, enquanto sistemas peritos, são dependentes da confiança que a sociedade neles deposita; por outro, as pessoas também confiam em seus grupos de pertença e especialmente em seus líderes. Os grupos influenciam as representações sociais dos sujeitos, logo, sua leitura de mundo. A divergência entre sistemas peritos e grupos de pertença, especialmente aqueles que agem como massa ao redor do líder, parece algo central para este debate. Postulados religiosos foram mobilizados na justificação de ações contrárias às recomendações sanitárias na pandemia4; em 2020, orientações nacionais e supranacionais de isolamento social e uso de máscaras foram mais desrespeitadas em redutos de eleitores de Bolsonaro5 e o corpo técnico-científico do Planalto se sentiu constrangido de seguir as normas sanitárias, colocando-se em risco contra a sua vontade6. Adicionalmente, neste mesmo ano, os próprios sistemas peritos não estiveram alinhados; o embate entre recomendações sanitárias de isolamento social e o presidente Jair Bolsonaro resultou na queda de dois ministros da saúde.

Outro ponto relevante é a centralidade do sistema perito relacionado à economia, acionado pela presidência da república e por setores interessados na normalização das atividades comerciais e de culto religioso. Esse sistema consiste numa das mais fortes crenças da sociedade contemporânea. A lógica econômica foi acionada também em eventos sanitários anteriores como a gripe espanhola7. Independente da classe social, essa lógica faz parte do cálculo dos sujeitos que já são forçados a submeter a vida à economia, por um lado, ou que têm sua vida protegida pelo poder econômico, por outro. A reprodução do sistema socioeconômico com suplício humano e sacrifício da natureza consiste no ritual da vida “civilizada”.

Ainda, a violência no ambiente familiar, o desemprego, a impossibilidade de isolamento8,9,10, a necessidade de reivindicação do direito à sobrevivência11, a busca pelo prazer ou pela diminuição do sofrimento – dado o contexto de divergência entre sistemas peritos e de ausência de políticas públicas efetivas na prevenção e no combate à pandemia e às suas consequências –  também se somaram às justificações na direção da exposição da vida ao risco e da não adesão às recomendações sanitárias no primeiro ano de pandemia, quando a vacinação ainda não estava no horizonte dos trabalhadores. Assim, mesmo os sujeitos lateralmente atingidos pelas informações fraudulentas circulantes nas massas reacionárias e aqueles refratários a elas fizeram e fazem cálculos de risco com base em suas experiências pessoais e nas informações vindas dos grupos e sistemas peritos em conflito.

Por fim, por um lado, Marshall Sahlins12 nos ajuda a pensar como os mitos podem ser ressignificados pelos grupos sociais em interação, reatualizando as narrativas nos eventos, gerando novos significados e colocando a estrutura social em movimento. Com essa perspectiva, na contemporaneidade, buscamos refletir como os trabalhos e as falas dos especialistas estão sendo usados para, paradoxalmente, fortalecer certo movimento anticiência. A legitimidade da figura do especialista e do cientista e a crença no seu esclarecimento estão sendo mobilizadas para gerar o seu contrário, a descrença nesses sistemas peritos. Por outro lado, no presente contexto pandêmico, a ideia tocquevilliana da divisão do poder13 pode ajudar a pensar a diminuição do monopólio da informação como envolvida na crise de legitimidade de certos sistemas peritos em meio à disputa de grupos com capital ou com financiamento suficiente para fabricar e divulgar massivamente suas narrativas.

A concentração do poder através dos meios de comunicação de massa no século XX, em especial do rádio e da televisão, se modifica no século XXI com o advento das redes sociais na virada de século, facilitando a articulação de grupos e a circulação de informações outras que não as veiculadas pelos canais tradicionais. A partir dessa ampliação do alcance de produtores de conteúdo, buscamos pensar o movimento anticiência considerando aqueles casos onde há o enfretamento ao saber científico, a disputa discursiva e o uso do status do “especialista” para legitimar narrativas que desacreditam as medidas sanitárias de controle e combate à Pandemia de Covid-19 no interior dos grupos. Desconsideramos, assim, a base da pirâmide argumentativa de Graham, na qual estão a desqualificação do locutor (ad hominem e xingamentos) e a crítica ao tom da mensagem.

A especialização permite um aumento significativo do conhecimento de um indivíduo em determinada área, que o destaca em relação ao conhecimento médio e permite a ele errar menos em questões relativas à sua área de expertise. Todavia, no especialista, a ignorância do que desconhece coexiste com o saber adquirido e aquela pode não ser sabida. O especialista competente é cauteloso em sua área, tendo uma noção dos limites do seu conhecimento, mas, pode ser agressivo e arrogante na área alheia, como se nela fosse também especialista. A ignorância, insuflada pelo know-how da contraparte numa sociedade racional-procedimental, pode soar como conhecimento. O especialista pode generalizar seu saber, aplicando-o sem cuidado às áreas do conhecimento que não domina. Pode ainda menosprezar o conhecimento de especialistas de outras áreas, especialmente das ciências socialmente desvalorizadas, sentindo-se confortável para fazer afirmações absurdas sem constrangimento. Na pandemia, as falas dos especialistas têm sido usadas para paradoxalmente fortalecer o movimento anticiência, ou seja, a crença está sendo usada contra a crença, certos trabalhos científicos contra a ciência e profissionais de saúde contra a saúde pública. O peso do argumento de autoridade que o título do especialista que extrapola sua especialização aufere pode ser capaz de convencer ou, ao menos, servir ao receptor da mensagem, se predisposto ao discurso. A confusão informacional pelo uso da legitimidade social do especialista e da crença no seu esclarecimento gera o seu contrário, a descrença e a deslegitimação.

A partir do acima exposto, a questão não pode ser resumida ao desconhecimento sobre ciência ou à negação da ciência. Envolve, outrossim, um processo de abalo da confiança da sociedade em certos sistemas peritos, na ciência inclusive, confiança socialmente construída ao longo dos últimos séculos. Tal abalo, por sua vez, não poderia ocorrer sem as contradições da própria ciência que se pratica, sem a colaboração de “especialistas” e sem certa reconfiguração do poder na área da comunicação. Neste primeiro artigo, destacamos que a legitimidade da ciência é baseada mais na confiança que no conhecimento. No próximo, tendo como base a categoria de sistemas peritos de Giddens3 e a ideia de divisão do poder em Tocqueville13, o processo de descrédito da ciência será pensado considerando a relação entre a perda do monopólio da informação, o uso da crença na figura do especialista, a confiança nos grupos de pertença e a valorização das experiências individuais contra a ciência. Abordaremos especialmente a questão do papel que o especialista tem desempenhado nesse processo de desinformação e de falseamento da realidade.

1PASTERNAK, Natália. Roda Viva, 29 jun. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o7Gu4sMXTFo. Acesso em 19 ago. 2020.

2FORTES, Meyer. Mind. In: The institutions of primitive society. Oxford: Basil Blackwell, 1954.

3GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade; tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

4BLOIS, Caio. ‘Deus me protege’: bairro do RJ onde Bolsonaro teve mais voto ignora corona. Uol, 01 abr. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/01/deus-me-protege-bairro-do-rj-onde-bolsonaro-teve-mais-voto-ignora-corona.htm. Acesso em 19 ago. 2020.

5SCHMITT, Gustavo. Desrespeito ao isolamento social é maior em áreas onde bolsonaro tem mais apoio, diz estudo. Época, 25 abr.  2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/desrespeito-ao-isolamento-social-maior-em-areas-onde-bolsonaro-tem-mais-apoio-diz-estudo-24391966. Acesso em 19 ago. 2020.

6JUCÁ, Beatriz. “Máscara ideológica” e outras contradições de um Ministério da Saúde militarizado. El País, 13 jul. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-13/mascara-ideologica-e-outras-contradicoes-de-um-ministerio-da-saude-militarizado.html#?sma=newsletter_brasil_diaria20200714. Acesso em 19 ago. 2020.

7GOULARD, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 1, 2005.

8BARBOSA, Wilmar do Valle. Tempos pós-modernos. In: LOYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

9GOES, Emanuelle Freitas; RAMOS, Dandara de Oliveira, FERREIRA, Andrea Jacqueline Fortes. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020, e00278110.

10NAVARRO, Joel Hirtz do Nascimento, CICILIOTTI, Mayara, SIQUEIRA, Luziane de Assis Ruela, ANDRADE, Maria Angélica Carvalho. Necropolítica da pandemia pela covid-19 no brasil: quem pode morrer? Quem está morrendo? Quem já nasceu para ser deixado morrer? Health Sciences, [Preprint], 2020.

11LIMA, Ludmila Moreira. Não estamos todos no mesmo barco. Dilemas, Reflexões na Pandemia, p. 1-9, 2020.

12SAHLINS, Marshall. Capitão James Cook; ou o Deus Agonizante. In: Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. Sahlins analisa as dinâmicas sociais a partir da chegada do capitão Cook no Hawaí e da crença local no deus Lono.

13Alexis de Tocqueville julgava inevitável o fim da sociedade estamental, pois as concessões feitas levaram a um caminho sem retorno: as terras divididas dividiram também o poder. A terra dada a quem não pertencia à nobreza e as leis que diminuíam o poder do primogênito ao abrir o direito de herança aos demais irmãos fragilizaram o sistema. Honrarias distribuídas para além da nobreza, o ingresso de plebeus no clero e o comércio abriram novas formas de chegar ao poder, levando ao caminho sem retorno da “igualdade de condições”, da democracia. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Adriana Ribeiro de Macedo cursou Ciências Sociais na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), é Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Extensão e Pesquisa Social (LIEPS/IFRJ) e do Núcleo de Estudos do Movimento Humano (NEMOH/UFRJ), é especialista em Biomecânica, Mestre e Doutora em Engenharia Biomédica (COPPE/UFRJ).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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