Anjos e insetos, por Felipe A. P. L. Costa

Anjos e insetos

Por Felipe A. P. L. Costa

Por fim, fui obrigado a concluir que apenas a contemplação da Natureza

não é o suficiente para preencher o coração e a mente do ser humano.

– Henry Walter Bates (1979 [1863, v. 2, p. 186]).

[Apresentação] Em 1862, o naturalista inglês Henry Walter Bates publicou um artigo relacionando a coloração chamativa e o gosto desagradável de certas presas [1]. Embora o uso de um mesmo sinal visual por linhagens distintas já fosse conhecido – fenômeno referido hoje como mimetismo batesiano [ver artigo ‘Borboletas e matemática: Uma introdução à teoria do mimetismo’] –, era a primeira vez que a seleção natural podia ser evocada de modo tão claro e consistente. Este artigo, além de reunir informações raras ou mesmo inéditas, corrige alguns erros e mal-entendidos a respeito da vida de HWB [2].

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O primogênito dos quatro filhos de Henry e Sarah Bates, Henry Walter Bates nasceu em Leicester (Inglaterra), em 8/2/1825. Era ótimo aluno, mas teve de abandonar a escola precocemente: aos 12 anos, na condição de aprendiz, passou a frequentar a fábrica têxtil onde o pai trabalhava. O jovem Henry, no entanto, não parou de estudar e, mesmo depois de enfrentar jornadas diárias extenuantes (13 horas), ele ainda ía assistir aulas no Instituto de Mecânica, onde aprendeu grego, latim e francês, entre outras coisas. Lia em todos esses idiomas. No Brasil, anos depois, aprenderia também português e alemão.

Em 1844, quando conheceu Alfred Russel Wallace (1823-1913), logo que este chegou a Leicester, Bates já era um exímio colecionador de insetos (especialmente besouros), tendo publicado o seu primeiro artigo aos 18 anos (Bates 1843). Na época, Wallace tinha mais interesse por botânica; foi Bates quem despertou nele a paixão (duradoura) pela entomologia. Nenhum dos dois, porém, jamais teve uma educação formal em ciência, diferentemente de outros naturalistas da época.

Dois naturalistas na Amazônia

Em 26/4/1848, após meses de expectativa e preparação, Wallace e Bates embarcaram em Liverpool com destino ao Brasil. Os dois jovens naturalistas chegaram a Belém (Pará, na época) em 28/5/1848.

Nas palavras de Bates (1979, p. 11; grafia original):

Embarquei em Liverpool no dia 26 de abril de 1848 num pequeno navio mercante, em companhia do Sr. Wallace, e depois de uma rápida viagem desde o Canal da Irlanda até o equador chegamos no dia 26 de maio a Salinas. Trata-se de uma escala obrigatória para todas as embarcações que se destinam ao Pará, sendo o único porto que dá acesso à vasta região banhada pelo Rio Amazonas. Salinas é um pequeno povoado que teve sua origem numa missão jesuítica e fica situado alguns quilômetros a leste do Rio Pará. Nosso navio lançou âncoras em alto mar, a uma distância de nove quilômetros da costa, pois a pouca profundidade da água na foz do grande rio não permitia uma aproximação maior. Em seguida foi hasteado o sinal convencional pedindo um piloto. Foi com um profundo interesse que meu companheiro e eu – ambos ávidos para apreciar as belezas de um país tropical – contemplamos a terra onde pelo menos eu iria passar onze dos melhores anos de minha vida. Na direção do leste as terras nada apresentavam de notável, mostrando-se apenas levemente onduladas, com dunas de areia e árvores esparsas; para o oeste, porém, podíamos ver com a ajuda da luneta do capitão, e estendendo-se na direção da embocadura do rio, uma longa linha de vegetação elevando-se praticamente da água, formada por uma densa massa de altas árvores, que se iam repartindo em grupos e finalmente se transformavam em árvores isoladas à medida que se perdiam na distância. Nessa direção ficavam os limites da grande floresta primitiva, característica da região, que contém tantas maravilhas em seu seio e cobre a superfície do país numa extensão de três mil quilômetros, a partir daquele ponto até o sopé dos Andes.

Os dois se estabeleceram nas proximidades de Belém. Viajaram juntos alguns meses. A partir de junho de 1849, aparentemente após uma desavença, passaram a viajar separados. Wallace passou a explorar uma região mais ao norte: subiu o rio Negro, chegando até a freguesia de São Gabriel (atual São Gabriel da Cachoeira), no noroeste do Amazonas; adentrou em território venezuelano, onde permaneceu algum tempo; regressou e, seguindo o curso do rio Uaupés, fez o caminho de volta até Belém e de lá até a Inglaterra. Bates subiu o rio Amazonas, indo até Santarém; explorou o rio Tapajós; retomou o curso do Amazonas e subiu o Solimões, indo até a Vila de Ega (atual Tefé), onde ficou por vários anos; foi até a foz do rio Javari, no sudoeste do Amazonas, já na divisa com o Peru; fez então o percurso de volta até Belém.

Wallace permaneceu na Amazônia até 1852, enquanto Bates ficaria mais sete anos, indo embora (adoentado) apenas em 1859 [3]. Este último enviou à Inglaterra uma rica coleção de história natural, com milhares de exemplares, sobretudo ‘insetos’ (artrópodes em geral), além de ‘répteis’ (répteis e anfíbios), aves, mamíferos etc.

Uma suspeita e um erro histórico

A riqueza e a qualidade do material colecionado por Bates, boa parte dele coletado nos arredores de Tefé, o seu ‘quartel-general’ durante os quatro anos e meio que passou no Alto Amazonas, fez dele um coletor respeitado. Outro fator que contribuiu para o seu reconhecimento ainda em vida foi a publicação do livro Um naturalista no rio Amazonas, cuja 1ª edição apareceu em 1863 [4]. Além de oferecer um relato de suas experiências, a obra deixa transparecer o encantamento do autor pelos trópicos americanos, bem como a simpatia que ele passou a nutrir pelos habitantes da região, algo pouco comum entre os visitantes europeus daquela época.

Há quem argumente que a simpatia de Bates pelos nativos foi bem além da mera idealização. Na opinião de Anthony Crawforth, autor de uma biografia recente (Crawforth 2009), ele teve ao menos um relacionamento amoroso em terras brasileiras. Em favor do seu ponto de vista, o biógrafo evoca a impetuosidade própria da juventude, o tempo de permanência no país e certas passagens do livro do naturalista [5].

Na verdade, Crawforth vai além, defendendo a hipótese de que Bates teve uma filha brasileira, falecida precocemente, vítima de malária. Segundo o biógrafo, a pequena Oria (ver Bates 1979, p. 207-9) seria fruto do relacionamento de Bates com uma mulher da região de Tefé – uma índia da etnia Miranha. A suspeita de que ele se envolveu em algum relacionamento, sobretudo na região de Tefé, onde permaneceu por mais de quatro anos, é bastante razoável, mas tenho a impressão de que a questão da paternidade mereceria estudos adicionais.

Em Leicester, para onde voltou em 1859, Bates conheceu Sarah Ann Mason (1840-1897). Eles se casaram em 1863 – e não em 1861, como é dito habitualmente. A origem do erro é antiga: Edward Clodd (1840-1930), amigo da família e autor de uma primeira biografia do naturalista, antecipou deliberadamente o ano.

Segundo Clodd (1892, p. xxxvii; tradução livre):

Em janeiro de 1861, Bates se casou com uma jovem por quem manteve um lugar afetuoso em seu coração durante sua longa ausência – Srta. Sarah Ann Mason, de Leicester, com quem ele teve três filhos e duas filhas.

A motivação para isso seria encobrir o fato, mesmo após a morte de Bates, de que o primeiro filho deles – uma menina, Alice (1862-1891) – foi concebido e nasceu antes do casamento [6]. Além de Alice, o casal teve outros quatro filhos, Sarah (1863-1929), Charles Henry (1865-1901), Darwin (1867-1938) e Herbert Spencer (1871-1958). Em 1864, Bates arranjou um emprego na Royal Geographical Society, em Londres, onde trabalharia durante 28 anos.

Em fevereiro de 1892, vítima de problemas respiratórios, Henry Bates contraiu uma gripe. Não conseguiu se recuperar. Faleceu em casa, em Londres, em 16/2, poucos dias após completar 67 anos.

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Notas

[1] O artigo foi muito bem-recebido – Charles Darwin (1809-1882), por exemplo, escreveu: “[É] um dos mais notáveis & admiráveis artigos que eu já li em minha vida”. O trabalho de Bates é citado já na 4ª edição (1866; e nas duas edições seguintes) de On the origin of species, de Darwin.

[2] O título deste artigo faz alusão ao filme ‘Angels & insects’ (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande ‘Morpho eugenia’ (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).

[3] Quando Wallace e Bates chegaram ao país, a Amazônia brasileira correspondia a uma única unidade política, a província do Grão-Pará. (A província do Amazonas foi criada em 1850.) Em 1849, o irmão caçula de ARW, Herbert Edward, veio ao Brasil, acompanhando o naturalista Richard Spruce (1817-1893). Vítima de febre amarela, Herbert faleceu em Belém, dois anos depois. Sobre a presença simultânea de Wallace, Bates e Spruce em terras brasileiras, ver Hemming (2015).

[4] Uma primeira versão brasileira, em tradução de Cândido de Melo Leitão, apareceu em 1944; uma segunda, em tradução de Regina Regis Junqueira, em 1979. Diferentemente da primeira, a segunda carece dos dois prefácios da edição original (o da 1ª [1863] e o da 2ª ed. [1864]) e de um texto de apresentação assinado por Darwin. Sobre as versões brasileiras, ver Rodrigues (2011).

[5] Crawforth observa que a ilustração da p. 293 de Bates (1979), com o naturalista ao fundo, conversando com uma índia nua, enquanto em primeiro plano aparecem índios e índias participando de uma festa de casamento, seria uma evidência em favor de sua interpretação. Segundo ele, os índios não estariam tão tranquilos se não soubessem que o naturalista já era ‘casado’.

[6] Eis o relato que Anthony Crawforth me enviou em mensagem de correio eletrônico (em 3/8/2015; tradução livre):

Bates teve uma filha (Alice) com Sarah Ann Mason (que era analfabeta), a criança nasceu em 2/2/1862 […]. Não consta o pai na certidão de nascimento e, portanto, quando Sarah deu à luz uma filha ilegítima, não podia contar sequer com a ajuda da família ou dos amigos. Nessas circunstâncias, a mãe frequentemente era forçada a ir embora, desprezada pela família e pelos amigos, mudando-se para um lugar onde não fosse conhecida. HWB, entretanto, fez o que era certo, mudando-se para Londres com Sarah e se casando com ela, em 15/1/1863 […].

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Referências citadas

+ Bates, HW. 1843. Note on coleopterous insects frequenting damp places. The Zoologist 1: 114-5.

+ ——. 1862. Contributions to an insect fauna of the Amazon valley. Transactions of the Linnean Society of London 23: 495-566.

+ ——. 1979 [1863]. Um naturalista no rio Amazonas. BH, Itatiaia & Edusp.

+ Crawforth, A. 2009. The butterfly hunter: The life of Henry Walter Bates. Buckingham, University of Buckingham Press.

+ Hemming, J. 2015. Naturalists in paradise: Wallace, Bates and Spruce in the Amazon. Londres, Tames.

+ Rodrigues, CC. 2011. As traduções de Bates: dois naturalistas no rio Amazonas. Trabalhos em Linguística Aplicada 50: 281-300.

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[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações adicionais a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

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