Anjos & insetos. VII. Demografia de organismos modulares, por Felipe A. P. L. Costa

Anjos & insetos. VII. Demografia de organismos modulares

Por Felipe A. P. L. Costa [1]

Autor de uma obra rica e influente, a ponto de ser considerado o criador da biologia populacional de plantas, John Harper foi um dos gigantes da ecologia ao longo da segunda metade do século 20.

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O mais velho dos dois filhos de John Hindley Harper e Harriet Mary Archer, John Lander Harper nasceu em Rugby, uma pequena cidade perto de Birminghan, no centro-sul da Inglaterra, em 27/5/1925. (Seu irmão caçula, Peter, nasceu em 1930.)

Oriundo de uma família rural, Harper se interessou por história natural ainda criança. Iniciou os estudos universitários na Universidade de Oxford, onde concluiu a graduação (1946) e a pós-graduação (1950). Em 1951, foi contratado pela universidade, lá permanecendo até 1959. Ainda em Oxford, conheceu a norueguesa Borgny Lerö, com quem se casou em 1954; o casal teve três filhos, Belinda, Claire e Jonathan.

Passou um ano (1959-1960) na Universidade da Califórnia (Davis). Em 1960, de volta à Grã-Bretanha, ingressou no Colégio Universitário da Gales do Norte (atual Universidade de Bangor), em Bangor, cidade costeira do País de Gales. Em 1967, os departamentos de Botânica e de Botânica Agrícola (o dele) se fundiram, dando origem à Escola de Biologia Vegetal (atual Escola de Ciências Biológicas), a qual se transformaria em uma referência internacional (sobretudo em ecologia), atraindo estudantes e pesquisadores de vários países [2]. Aposentou-se em 1982, mas continuou ligado à universidade.

Recebeu diversas honrarias e homenagens ao longo da vida. Uma das mais significativas talvez tenha sido quando colegas e ex-alunos organizaram um ‘livro de amigos’ (festschrift) dedicado a ele (White 1985). Em 1994, a Sociedade Ecológica Britânica (BES, na sigla em inglês) instituiu o Harper Prize, oferecido anualmente a um jovem pesquisador que tenha publicado na Journal of Ecology, a mais antiga (criada em 1913) e ainda hoje uma das mais prestigiosas revistas da área.

O legado de um gigante

Publicou livros, capítulos de livros e um sem-número de artigos. Vários artigos seus se transformaram em referências-chave (e.g., Harper 1964; Harper & White 1974; Harper et al. 1970) e ao menos um se converteu em um clássico – ‘A Darwinian approach to plant ecology’ (Harper 1967). Escrito para o seu discurso de posse como presidente da BES, este último explora os elos entre a demografia e o processo de seleção, mostrando como a ecologia e a evolução são campos interligados e interdependentes [3].

Dois dos seus livros são fabulosos, Population biology of plants (Harper 1977), um marco na história da ecologia, a respeito do qual tornaremos a falar mais adiante, e Ecology: Individuals, populations and communities (Oxford, Blackwell), um dos melhores manuais de ecologia já publicados, do qual ele foi um dos coautores em três edições (1986, 1990 e 1996) [4]. No prefácio da 4ª edição, Michael Begon (nascido em 1951) e Colin R. Townsend (nascido em 1949) escreveram o seguinte (Begon et al. 2007, p. vi; grafia original):

Muito sensatamente, John Harper decidiu que a aposentadoria e o papel de avô merecem, agora, maior atenção do que a co-autoria de um livro-texto. […] Não podemos prometer que assimilamos ou, para sermos francos, aceitamos todas as suas opiniões, mas, nesta 4ª edição, esperamos ter seguido os caminhos pelos quais ele nos conduziu.

Dos capítulos de livro escritos por Harper, caberia registrar ao menos dois: ‘The concept of population in modular organisms’ e ‘After description’ (Harper 1981, 1982). No primeiro, ele chama a atenção para as particularidades demográficas dos organismos modulares, os quais, diferentemente dos organismos unitários, exibem padrões de crescimento bastante flexíveis. As árvores, por exemplo, estão periodicamente perdendo e reconstruindo partes do seu corpo, de tal modo que, dependendo das taxas de produção e perda, indivíduos de uma mesma coorte podem diferir tremendamente em tamanho.

Demografia: um estudo de caso

O artigo ‘A Darwinian approach to plant ecology’ pode ser visto como uma prévia do programa que Harper desenvolveria detalhadamente em sua obra-prima, Population biology of plants, uma década mais tarde. Este último teve um impacto profundo e duradouro, inaugurando um novo capítulo na história da ecologia vegetal (e.g., Solbrig 1980; Silvertown 1982; Dirzo & Sarukhán 1984; ver Gurevitch et al. 2009). Os tradicionais trabalhos descritivos (e.g., Weaver & Clements 1938) passaram a conviver com um volume crescente de pesquisas voltadas para o estudo de populações específicas, com um viés fortemente quantitativo e experimental. Surgia a demografia vegetal.

Demografia é um tipo de contabilidade. Em populações de organismos unitários (e.g., a maioria das espécies animais), a unidade a ser contabilizada é o indivíduo. No caso de populações de plantas – ou outros organismos modulares (e.g., esponjas, corais, gorgônias) –, cujo corpo é constituído de partes (módulos) que se repetem indefinidamente [5], dois níveis de organização podem ser contabilizados: os próprios indivíduos e os módulos que integram o corpo de cada indivíduo. Nesses casos, mesmo quando o número de indivíduos permanece inalterado, o número de módulos (e.g., folhas) dentro dos indivíduos pode variar tremendamente.

Veja o exemplo do braço-de-preguiça (Solanum cernuum), árvore de pequeno porte (2-6 m), nativa do sudeste de Minas Gerais. Entre janeiro de 1984 e junho de 1985, a demografia foliar de S. cernuum foi investigada (Costa 1991). Os indivíduos monitorados estavam crescendo em uma unidade de conservação existente em Juiz de Fora [6], município cujo clima se caracteriza por um verão quente e chuvoso (máximos de temperatura em fevereiro e de pluviosidade em janeiro) e um inverno frio e seco (mínimos de temperatura e pluviosidade em julho).

Sazonalidade climática e padrões demográficos

O estudo revelou uma notável flutuação no tamanho da população de folhas (= soma das folhas das plantas monitoradas), decorrente de variações nas taxas de produção e perda desses módulos. Ambas as taxas foram igualmente afetadas pela sazonalidade climática, aumentando nos meses chuvosos e diminuindo nos secos. Assim, o tamanho da população de folhas foi mínimo no inverno de 1984, mas se recuperou e atingiu um novo máximo no verão de 1985. Ao longo dos 18 meses de trabalho de campo, houve ainda uma significativa mudança na estrutura etária da população de folhas.

No inverno de 1984, por exemplo, o percentual de folhas ‘recém-nascidas’ (< 1 mês de idade) foi mínimo (3,5%, em julho), em virtude da queda na produção, mas aumentou no final dessa estação (28%, em setembro), tornando-se predominante no final da primavera (32%, em dezembro), quando a produção voltou a subir. Já o percentual de folhas ‘velhas’ (5 meses de idade ou mais) atingiu seu máximo no inverno (mais de 50%, em agosto), caindo com a chegada das chuvas até atingir o mínimo, na primeira metade do verão de 1985 (13%, em janeiro).

As mudanças na estrutura etária da população de folhas tiveram dois efeitos importantes. O primeiro foi que a idade média das folhas flutuou ao longo do tempo, desde um máximo de 149 dias, em agosto de 1984, a um mínimo de 83, em fevereiro de 1985. O segundo foi ainda mais intrigante, indicando que a longevidade foliar não variou de modo aleatório. A duração dos módulos de uma planta tende a refletir a sua história de vida (e.g., Chabot & Hicks 1982), mas também as circunstâncias a que os indivíduos estão submetidos (e.g., Bazzaz & Harper 1977).

No caso do braço-de-preguiça, os resultados indicam que as coortes nascidas no verão viveram mais do que as outras – no cômputo final, a hierarquia foi: verão > outono > primavera > inverno. Uma possível explicação seria a seguinte: as coortes nascidas no verão (sobretudo as de fevereiro e março) foram retidas por mais tempo, atravessando o outono e parte do inverno, quando as circunstâncias (externas e internas) não favoreciam a produção foliar. Com o fim da seca (setembro) e, sobretudo, com a chegada da estação chuvosa (verão), as taxas de produção e perda voltaram a subir, fazendo com que as folhas nascidas no inverno e na primavera durassem relativamente menos, pois logo foram substituídas pelas coortes nascidas ao longo do verão de 1985.

A despeito das informações valiosas que se pode obter (e.g., em termos de autoecologia ou no âmbito do exame de interações com outros organismos), ainda são raros entre nós os exemplos de estudos envolvendo a demografia foliar de espécies nativas (e.g., Santos 2000). Transcorridos 40 anos desde a publicação de Population biology of plants, não seria exagero dizer (parafraseando Harper) que a nossa compreensão da biologia de plantas tropicais ainda carece de estudos demográficos.

Coda

Nos últimos anos, Harper enfrentou graves problemas de saúde – um enfisema e, mais recentemente, uma leucemia –, mas continuou ativo e atualizado. Quando faleceu, em 22/3/2009, aos 83 anos, estava escrevendo suas memórias.

John Harper faleceu em casa, em Exeter, para onde ele e a esposa haviam se mudado em 1997. Deixou viúva, os três filhos e sete netos, além de uma grande legião de amigos e admiradores.

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Notas

[1] O título deste artigo – os seis anteriores estão aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui – faz alusão ao filme Angels & insects (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande Morpho eugenia (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).

[2] Outros cientistas renomados trabalharam em Bangor, incluindo: (i) entre 1949 e 1976, P. [Paul] W. [Westmacott] Richards (1908-1995), autor do clássico The tropical rain forest (CUP, 1952) e criador do ‘diagrama de perfil’, muito usado em fitossociologia (ver Felfili et al. 2011); (ii) entre 1952 e 1982, P. [Peter] Greig-Smith (1922-2003), autor de Quantitative plant ecology (1983, 3ª ed., Blackwell; a 1ª ed. é de 1957); e (iii) entre 1952 e 1968, A. [Anthony] D. [David] Bradshaw (1926-2008), autor de uma obra rica e influente – trabalhos seus sobre a tolerância de plantas a metais pesados (e.g., Bradshaw & McNeilly 1985) são um marco na história da biologia evolutiva – e um pioneiro da ecologia da restauração.

[3] As primeiras frases já dão o tom geral do artigo (Harper 1967, p. 247; tradução livre):

A teoria da evolução por seleção natural é uma teoria ecológica – assentada sobre observações ecológicas quiçá pelo maior de todos os ecólogos. Ela foi adotada e criada pela ciência da genética e os ecólogos, sendo uma gente mais modesta, tendem a esquecer o ilustre parentesco dela.

Muitos concordam com a famosa frase de Theodozius Dobzhansky (1900-1975), “Nada em biologia faz sentido, exceto à luz da evolução”, mas nem todos já se deram conta de que “Muito pouca coisa em evolução faz sentido, exceto à luz da ecologia”, como dizia Harper (ver Begon et al. 2007).

[4] Na 4ª edição, refletindo a mudança que houve na participação de Harper, a ordem dos autores, que era Begon, Harper e Townsend, passou a ser Begon, Townsend e Harper.

[5] O termo francês articule, proposto pela botânica Marie-Françoise ‘Fanchion’ Prévost (1941-2013) em alusão à unidade básica de construção do corpo vegetal, foi traduzido para o inglês como module (ver Harper & White 1974), e assim passou a ser usado.

[6] Trabalho conduzido na Reserva Biológica Municipal do Poço D’Anta, um fragmento florestal com 277 ha de área legal, na zona urbana do município. Os resultados citados se referem a duas subamostras de plantas crescendo em dois tipos de hábitats, interior de floresta e clareira, e foram obtidos no contexto de um estudo sobre o uso do braço-de-preguiça como planta hospedeira das larvas de uma borboleta (ver Costa 1991).

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Referências citadas

+ Bazzaz, FA & Harper, JL. 1977. Demographic analysis of the growth of Linum usitatissimum. New Phytologist 78: 193-208.

+ Begon, M; Townsend, CR & Harper, JL. 2007. Ecologia: De indivíduos a ecossistemas, 4ª ed. P Alegre, Artmed.

+ Bradshaw, AD & McNeilly, T. 1985 [1981]. Evolución y contaminación. Barcelona, Omega.

+ Chabot, BF & Hicks, DJ. 1982. The ecology of leaf life spans. Annual Review of Ecology and Systematics 13: 229-59.

+ Costa, FAPL. 1991. Sobre a utilização de Solanum cernuum Vell. (Solanaceae) como planta hospedeira por Hypothyris ninonia daeta (Bdv., 1836) (Lepidoptera: Nymphalidae: Ithomiinae). Tese de Mestrado. Campinas, Unicamp.

+ Dirzo, R & Sarukhán, J, eds. 1984. Perspectives on plant population ecology. Sunderland, Sinauer.

+ Felfili, JM & mais 4, orgs. 2011. Fitossociologia no Brasil: Métodos e estudos de casos, v. 1. Viçosa, Editora da UFV.

+ Gurevitch, J; Scheiner, SM & Fox, GA. 2009. Ecologia vegetal, 2ª ed. P Alegre, Artmed.

+ Harper, JL. 1964. The individual in the population. Journal of Ecology 52 (Suppl.): 149-58.

+ ——. 1967. A Darwinian approach to plant ecology. Journal of Ecology 55: 247-70.

+ ——. 1977. Population biology of plants. Londres, Academic.

+ ——. 1981. The concept of population in modular organisms. In: May, RM, ed. Theoretical ecology: Principles and applications, 2nd ed. Oxford, Blackwell.

+ ——. 1982. After description. In: Newman, EI, ed. The plant community as a working mechanism. Oxford, Blackwell.

+ —— & White, J. 1974. The demography of plants. Annual Review of Ecology and Systematics 5: 419-63.

+ ——; Lovell, PH & Moore, KG. 1970. The shapes and sizes of seeds. Annual Review of Ecology and Systematics 1: 327-56.

+ Santos, FAM. 2000. Growth and leaf demography of two Cecropia species. Revista Brasileira de Botânica 23: 133-41.

+ Silvertown, J. 1982. Introduction to plant population ecology. Londres, Longman.

+ Solbrig, OT, ed. 1980. Demography and evolution in plant populations. Oxford, Blackwell.

+ Weaver, JE & Clements, FE. 1938. Plant ecology, 2nd ed. NY, McGraw.

+ White, J, ed. 1985. Studies of plant demography: A festschrift for John L. Harper. Londres, Academic.

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[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

Redação

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