Ciência & Tecnologia

CNPq e a genealogia de um desmonte, por Denise Elias

do BrCidades

CNPq e a genealogia de um desmonte

Denise Elias

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é a principal agência de fomento à pesquisa científica do Brasil e desempenha papel primordial na formulação e na condução das políticas de ciência, tecnologia e inovação. Sua atuação é estruturante para o avanço das fronteiras do conhecimento e, assim, para o desenvolvimento e a soberania do país. Porém, tudo isto está em risco, dado o atual contexto político nacional e considerando os cortes no orçamento da instituição que comprometem a continuidade do papel que a mesma desempenha. Neste texto que o leitor tem em mãos, compartilharei as inquietações vividas como cientista e cidadã com o objetivo de alertar sobre riscos para nossa sociedade do desmonte do CNPq e da ciência brasileira.

Um pouco de história

O CNPq foi criado em 1951 e é a principal agência de fomento à pesquisa do país, desempenhando papel primordial na formulação e na condução das políticas de ciência, tecnologia e inovação, desde então. Sua principal atribuição é o fomento à pesquisa científica, tecnológica e à inovação, com foco no incentivo à formação de pesquisadores brasileiros e, assim, contribuindo para o avanço das fronteiras do conhecimento e da soberania nacional.

O CNPq concede bolsas para a formação de recursos humanos no campo da pesquisa científica e tecnológica, em universidades, institutos de pesquisa, centros tecnológicos e de formação profissional, tanto no Brasil como no exterior, em todas as áreas do conhecimento, da iniciação científica ao pós-doutorado. Sua atuação contribui para o desenvolvimento nacional e o reconhecimento pela comunidade científica internacional das instituições de pesquisa e dos pesquisadores brasileiros.

Em poucas décadas, o Brasil conseguiu melhorar bastante sua posição em alguns dos rankings de países que produzem ciência com qualidade no mundo. Isto se deve, em grande parte, às políticas de fomento à ciência e à tecnologia promovidas pelo CNPq e ao empenho de mais de 80 mil pesquisadores brasileiros de todas as áreas. São muitos os exemplos de como a ciência brasileira produz conhecimento e alavanca a economia, transformando conhecimento em riqueza.

Foi a ciência brasileira que descobriu o pré-sal, mesmo que agora ele esteja sendo entregue às petroleiras multinacionais – ou será que alguém ainda tem dúvidas que o massacre contra a Petrobras tinha esse objetivo? Foram as pesquisas do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) junto à Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) que transformaram o Brasil num dos mais importantes produtores de aeronaves do mundo, mesmo que agora tudo esteja sendo perdido para a Boeing, apenas para citar um entre tantos outros exemplos que poderiam ser dados.

Porém, não são somente as pesquisas em ciências exatas que se destacam, todas as áreas do conhecimento têm sua relevância. Apenas a título de exemplo, poderíamos dizer que os geógrafos brasileiros têm dado imensa contribuição para o estudo da empiricização do tempo no espaço, nas diferentes escalas geográficas; para a compreensão da formação socioespacial brasileira; para o estudo da economia política da urbanização e das cidades; e para a compreensão do aumento das desigualdades socioespaciais promovidas pela difusão do agronegócio globalizado.

Neste momento de uma pandemia que já ceifou mais de 600 mil vidas, a ciência brasileira vem dando inúmeras contribuições em tempo recorde em busca de soluções, seja com a criação de vacinas, ou em procedimentos de tratamento da doença, evidenciando toda sua importância e potencial.

2016: momento de inflexão

Tudo isto hoje está em risco, dado o atual contexto político nacional, no qual temos convivido com constantes cortes de verba, especialmente desde o golpe parlamentar na Presidenta Dilma Rousseff travestido de impeachment, em 2016, comprometendo a continuidade do papel que o CNPq desempenha há décadas de forma tão importante.

O orçamento do CNPq está em queda brutal desde o ano do golpe. Isto se reflete na diminuição de editais, no não aumento do número e no valor das bolsas, apenas para citar os exemplos mais gritantes. Importante dizer que há anos o número de bolsas é muito inferior à demanda das áreas, especialmente considerando a velocidade do crescimento da pós-graduação nas duas últimas décadas.

Isto significa que a ciência e as universidades públicas brasileiras estão em risco, principalmente se considerarmos o panorama político atual, especialmente as ciências humanas, as sociais aplicadas, a educação e as artes que, de maneira geral, sempre sofrem mais com os cortes por serem consideradas não prioritárias para o desenvolvimento do país e, especialmente agora, com o novo grupo à frente do executivo federal que elegeu tais setores como as verdadeiras “bruxas modernas”.

Os retrocessos políticos que começaram em 2016 se agravam ainda mais com a posse do atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, que  tem promovido um processo de desmonte do sistema de financiamento da pesquisa no Brasil. O cenário atual é de grave crise e cortes de orçamento no CNPq. O último grande corte foi no início de outubro do presente ano quando, por interferência do ministro da Economia, Paulo Guedes, em uma só canetada cortou-se um percentual significativo das verbas do CNPq que comprometeu toda a base de sustentação da instituição e, consequentemente, do ensino superior público que ficou efetivamente ameaçado.

As políticas de fomento à educação, à ciência e à tecnologia refletem as escolhas políticas dos governos. Desta forma, dada a total falta de visão estratégica do atual, estamos efetivamente andando para trás e os avanços conseguidos pela área de CT&I vêm sendo desestabilizados dia após dia.

O cenário atual me leva a apresentar para os leitores uma hipótese preocupante: a de que, mais do que cortes de verba para a pesquisa científica, haveria quase um desmonte do CNPq. Quero dizer com isto que os cortes não afetam somente as bolsas, os financiamentos à pesquisa, mas todo o funcionamento da instituição, como se a mesma estivesse sendo aos poucos corroída por dentro.

Vivemos numa democracia rasurada. Outros neologismos, ou metáforas, poderiam ser utilizados para o caso do CNPq, mas creio que esta seja a que mais defina nossa situação, pois o CNPq não deixou de existir, porém, com suas ações e processos importantes sendo comprometidos, é como, se aos pouquinhos alguns dos principais pilares da instituição estivessem sendo corroídos. Acredito que estes pilares são sólidos, pois foram construídos ao longo dos últimos 70 anos, por isso creio que ainda esteja em tempo de parar esse processo corrosivo. Exatamente por isso, insisto na hipótese visando um debate sobre o tema capaz de mobilizar a sociedade como um todo, e não apenas a comunidade científica, em prol desta causa.

O futuro está em risco

Estamos vivenciando dois movimentos que vão em sentidos opostos: o número de cursos e alunos da graduação e da pós-graduação cresceu muito nas últimas duas décadas, porém a verba para financiamento da pesquisa está em queda abrupta. Não tenho dúvidas de que a graduação e a pós-graduação das universidades públicas serão rapidamente impactadas por todos esses processos.

Penso que todos já estamos sentindo na pele o que tudo isso significa no nosso cotidiano: encolhimento da pesquisa pura e da aplicada, da pesquisa em rede; diminuição da cooperação e da mobilidade acadêmica; redução dos convênios e acordos bilaterais; decréscimo da interdisciplinaridade; restringimento da desconcentração da produção do conhecimento; comprometimento da formação de recursos humanos na graduação e na pós-graduação; minoração das possibilidades de influenciar políticas públicas; e  emigração de cientistas – na contramão do que ocorria nos últimos quinze ou vinte anos.

Diante deste quadro, parece-me que o mais importante agora é olhar para frente, é pensar o futuro. Os desafios que sempre foram grandes estão ainda maiores.

Como em outras áreas, tal como na Previdência, não se trata de falta de recursos, mas de escolhas e vontade política. Talvez, como tudo vem demonstrando, também seja falta de visão estratégica e de conhecimento de como fazer. Porém, não se enganem: o propósito de todos os ataques ao ensino e à pesquisa públicos é, sem sombra de dúvida, o projeto do atual governo de acabar com as universidades públicas no país. Sem elas, não há nenhuma chance de que em algum dia seja diminuída nossa histórica desigualdade socioespacial.

É hora de repensar as estratégias de ação para o futuro – um futuro que já começa após a leitura desta oração – e lutar para que o financiamento à educação e à pesquisa científica seja público e parte de uma política de Estado que não possa sofrer intervenções radicais a cada novo governo, como acontece agora, pois isso coloca em risco a sobrevivência de todo o sistema de ensino e pesquisa públicos, construído ao longo de décadas.

Nenhuma sociedade se constrói sem conhecimento, sem educação, sem ciência e sem pesquisa, pois esses são pilares estruturais do desenvolvimento econômico e social. Somo-me aos que defendem que gastos com ensino e pesquisa, ciência e tecnologia não constituem despesa, mas investimento. Um pensamento muito diferente dos que costumam ter os que estão à frente das áreas econômicas que, por mais que sejam absurdos, continuam sendo reverberados pelo nosso atual ministro da Educação, que considera que “universidade não é para todos”.

Uma rápida pesquisa sobre o tema mostrará que são inúmeros os países que investiram suas maiores somas nestes setores exatamente nos momentos de piores crises econômicas, e não o contrário. Isto porque as despesas em educação, ciência e tecnologia ampla rapidamente se replicam, direta e indiretamente, na dinamização da economia, além de se constituírem no sustentáculo de todo país por gerações.

Neste momento, precisamos pensar em algumas frentes de atuação visando reverter o quadro vigente. São várias as vozes que têm afirmado que é importante que a sociedade melhor compreenda o que significam as universidades públicas e a pesquisa científica para o país. Enquanto isto não ocorrer, será difícil ter o apoio da sociedade como um todo, pois esta tende a continuar acreditando nas fake news que têm se replicado pelas redes sociais, muitas delas, inclusive, a partir do próprio grupo de apoio do atual governo federal.

Uma coisa é certa: é hora de nos reinventarmos. Devemos entender que estamos terminando uma fase, um momento da política, da história, da economia, da pesquisa e uma nova está começando, mesmo que não tenhamos certeza de qual contorno terá. Mas isso dependerá muito da nossa força de reivindicação. Temos que lutar para defender a universidade pública, a pesquisa e a ciência brasileiras. Precisamos estabelecer nossas estratégias de ação, pois sem elas não chegaremos a lugar algum.

Entendo que a metodologia científica serve para qualquer coisa na vida. Assim, como numa pesquisa científica, está na hora de construirmos nosso projeto para enfrentar a nova realidade: precisamos estabelecer nossos objetivos e quais serão os procedimentos necessários para atingi-los. Este deve ser um projeto em rede que una a todos nós, com todas as áreas do conhecimento de mãos dadas com toda a sociedade brasileira.

O papel dos sindicatos, das entidades e das associações profissionais devem também ser primordial neste contexto. Só assim teremos alguma chance de deter os retrocessos do presente e desatar os nós que são entraves para avançarmos na construção da emancipação social e da democracia que estão bastante ameaçadas.

Caso contrário, direitos conquistados depois de décadas de luta pela sociedade continuarão sendo moeda de troca no balcão de negócios dos governos, com o incremento da reestruturação produtiva, do ultraneoliberalismo, sob o comando do capital financeiro, com o acirramento das desigualdades socioespaciais, dos conflitos e da fome, no campo e nas cidades.

É o futuro que está em jogo.

Denise Elias é Geógrafa, Doutora em Geografia Humana pela USP, professora do Programa de Pós-graduação em Geografia da UECE e Pesquisadora do CNPq. Foi representante de área em CA do CNPq e é colaboradora da Rede BrCidades.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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