Endossimbioses, por Felipe A. P. L. Costa

Evidências apontam para a presença de seres vivos há 4,1-4,2 bilhões de anos (Ga), menos de 500 milhões de anos após a formação do planeta

Endossimbioses

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

Descobertas geológicas recentes mudaram radicalmente a imagem que fazemos da Terra primitiva. O antigo cenário de uma superfície planetária coberta de lava e bombardeada por meteoritos deu lugar a uma paisagem mais amena, já com uma crosta solidificada e oceanos de água líquida. Evidências apontam para a presença de seres vivos há 4,1-4,2 bilhões de anos (Ga), menos de 500 milhões de anos após a formação do planeta (ver capítulo 6).

Durante os primeiros 1,5-2 Ga, a história da vida foi protagonizada exclusivamente por seres procarióticos. Nesse período, diferentes linhagens de bactérias e arqueias inventaram vários processos metabólicos, incluindo a fermentação, a respiração (anaeróbica e aeróbica) e a fotossíntese. As primeiras células eucarióticas podem ter surgido há 2,5 Ga (ou antes), embora ainda faltem evidências fósseis de um início tão remoto; nessa época, os procariotos já haviam se diferenciado em linhagens semelhantes às atuais.

Células procarióticas se caracterizam pelas dimensões reduzidas, com um diâmetro médio de 1-10 μm (1 μm – lê-se micrômetro – corresponde a 10–3 mm ou 0,001 mm), e pela presença de um único cromossomo circular imerso no citoplasma, e não no interior de um núcleo. Além de maiores (diâmetro: 10-100 μm), as células eucarióticas (ditas também mitóticas, pois são capazes de realizar mitose) contam com várias organelas especializadas (e.g., mitocôndrias e cloroplastos) e um núcleo individualizado, no interior do qual se encontram os cromossomos (em formato de bastonete).

Transferência horizontal de genes

Um pressuposto básico em torno do qual a genética mendeliana (ver cap. 7) foi erigida diz que a hereditariedade é um fenômeno vertical: os fatores hereditários (genes) são transmitidos apenas e tão somente de pais para filhos.

Nas últimas décadas, porém, surgiram evidências a favor de outro tipo de fenômeno: a transferência horizontal (ou lateral) de genes (THG). Enquanto a transferência vertical envolve tão somente gerações sucessivas da mesma linhagem, a THG envolve indivíduos não aparentados ou até de linhagens distintas.

Entre os procariotos, o processo é mediado por vírus ou plasmídeos. No caso dos eucariotos, porém, a thg decorre de endossimbiose (do grego, éndon-, no interior + symbíosis, viver junto; significando algo como viver aninhado no interior de outro ser).

Diz-se que há endossimbiose entre duas células quando uma delas passa a viver no interior de outra (hospedeira) – até então, aquela podia ser uma presa ou um endoparasita desta. Na hipótese de a célula engolfada escapar da digestão intracelular, ela pode não só continuar viva, mas se multiplicar e, em última análise, coevoluir com a célula hospedeira [1].

De acordo com a teoria da endossimbiose sequencial, formulada pela bióloga estadunidense Lynn Margulis (1938-2011), mitocôndrias e cloroplastos teriam surgido por endossimbiose.

Margulis não foi a primeira cientista a aventar uma hipótese de origem simbiótica para as organelas de células eucarióticas. Outros antes dela haviam vislumbrado essa possibilidade [2]. O que ela fez de inovador foi articular argumentos teóricos com evidências factuais bastante convincentes – e.g., evidências de que o ADN presente em mitocôndrias e cloroplastos é de origem bacteriana.

Endossimbiose sequencial

Em contraste com as demais organelas, mitocôndrias e cloroplastos têm o seu próprio material genético (ADN), além dos itens necessários à expressão gênica [3].

A mitocôndria é uma organela virtualmente universal entre as células eucarióticas [4]. É a sede da respiração aeróbica, processo por meio do qual as moléculas de glicose (ou outro substrato) são oxidadas, liberando a energia que é utilizada na síntese de trifosfato de adenosina (ATP, na sigla em inglês), a moeda energética que movimenta as vias metabólicas. São especialmente abundantes em tecidos com elevada demanda energética, como os músculos.

Cloroplastos são encontrados em eucariontes que fazem fotossíntese. Eles são ricos em clorofila, o pigmento responsável pela cor esverdeada dos organismos fotossintetizantes [5]. Variam em número, forma e tamanho, assim como ocorre com as mitocôndrias. São especialmente abundantes nas folhas das plantas.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra a possível rota da origem endossimbiótica dos eucariotos: a linhagem nucleada divergiu de arqueia (retângulo preto), adquirindo mais tarde o ancestral bacteriano da mitocôndria (retângulo cinza) e, em seguida, o ancestral do cloroplasto (retângulo branco).

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Ainda segundo Margulis, mitocôndrias derivaram de alfaproteobactérias, bactérias aeróbicas que teriam sido engolfadas por uma linhagem de células eucarióticas de metabolismo anaeróbico. Os cloroplastos, por sua vez, derivaram de cianobactérias fotossintetizantes. Estas teriam sido engolfadas por uma linhagem de células eucarióticas que já abrigavam mitocôndrias em seu interior, sendo então capazes de metabolizar o oxigênio. A história evolutiva dos eucariontes modernos que fazem fotossíntese teria tido ao menos dois episódios sucessivos de endossimbiose – o primeiro deu origem às células providas de mitocôndrias e o segundo, às células providas de mitocôndrias e cloroplastos.

Os casos referidos acima ilustram a chamada endossimbiose primária. Mas há casos mais complicados.

Na endossimbiose secundária, por exemplo, células de uma linhagem contendo endossimbiontes são elas próprias engolfadas por células de uma terceira linhagem. O cloroplasto presente no ramo ancestral que deu origem ao reino das plantas (e.g., embriófitas, algas verdes e vermelhas) seria o produto de um episódio de endossimbiose primária. Já os cloroplastos de certos protistas (e.g., euglenas e dimastigotos) seriam o resultado de uma endossimbiose secundária – i.e., os ancestrais desses protistas se fundiram com uma célula eucarionte contendo ela própria uma organela proveniente do engolfamento prévio de uma célula procarionte.

Em resumo, embora o quadro geral ainda tenha pontas soltas, parece seguro afirmar que a organização das células eucarióticas, abrigando em seu interior um consórcio de organelas interdependentes, é em boa medida o resultado de uma história evolutiva que envolve diferentes linhagens de ancestrais procarióticos.

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Notas

[*] Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), assim como 27 artigos anteriores – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Em 1878, o botânico alemão Heinrich Anton de Bary (1831-1888) cunhou o termo simbiose (lat. viver junto). O conceito, no entanto, retrocede ao botânico suíço Simon Schwendener (1829-1919), que descobriu que os liquens são consórcios de dois (ou três, como se descobriu recentemente) organismos.

[2] O botânico alemão Andreas Franz Wilhelm Schimper (1856-1901) costuma ser citado como o inventor da teoria endossimbiótica. Mas a primazia coube ao biólogo russo Konstantin Mereschkowsky (1855-1921), o primeiro a falar da origem endossimbiótica de cloroplastos e mitocôndrias.

[3] O tamanho do genoma retido por mitocôndrias e cloroplastos varia bastante.

[4] Alguns eucariotos têm hidrogenossomos, versão degenerada e anaeróbica da mitocôndria, ou mitossomos (e.g. Entamoeba).

[5] Clorofilas são verdes porque absorvem mais as bandas azul e vermelha do espectro solar, refletindo a verde.

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Redação

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