Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O Delírio Digital de Nicolelis

 

A entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo” concedida pelo internacionalmente prestigiado neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis é um flagrante exemplo das principais características da retórica do “delírio digital” que justifica a agenda tecnocientífica atual: o mix de messianismo, exterminismo e transcendentalismo para racionalizar os esforços das neurociências e ciências cognitivas em virtualizar a consciência.


Definitivamente, a pesquisa científica brasileira se alinha à agenda tecnocientífica desse início de século. Miguel Nicolelis, um dos pesquisadores brasileiros de maior prestígio mundial foi, no ano passado, nomeado membro da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, na qual já foi membro Galileu Galilei e tendo como um dos seus atuais membros o físico inglês Stephen Hawking.


Nicolelis é diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (Rio Grande do Norte). Pioneiro nos estudos sobre a interface cérebro-máquina, suas descobertas apareceram na lista das dez tecnologias que devem mudar o mundo, divulgada em 2001 pelo MIT (Massachusets Institute of Technologie) e em 2009 foi o primeiro brasileiro a merecer uma capa da revista Science.


A entrevista concedida por Nicolelis a Alexandre Gonçalves do jornal “O Estado de São Paulo” (para lê-la clique aqui), pode ser considerada extremamente didática. Primeiro, porque, em poucas palavras, consegue resumir a utopia tecnognóstica que orienta a agenda científica das últimas décadas. E, segundo, por ser um ótimo exemplo da retórica dessa utopia que denomino como “delírio digital”: um misto de messianismo, exterminismo e transcendentalismo.


Delírio Digital


Lendo a entrevista, não saia da minha cabeça a lembrança daquele slogan que marcou os primeiros textos messiânicos dos anos 90 sobre as transformações que a tecnologia digital e a Internet trariam para o mundo: “Adapt or You´re Toast”, adapte-se ou você está frito!


O discurso de Nicolelis é dominado por expressões como “novidade explosiva”, “corpo deixar de ser o fator limitante”, “eficácia”, “evolução”, “o que definimos como ser mudará drasticamente”, “seleção natural rápida”, “criamos um sexto sentido”, “a evolução humana vai se acelerar”.


O tom emergencial da retórica de Nocolelis sobre a inevitabilidade evolutiva humana determinada pelos avanços científicos tem um tom evidentemente exterminista: tudo o que é passado é um fator limitante (corpo, linguagem etc.). Deve ser superado num processo de seleção natural acelerado, dessa vez não mais comandado por genes ou processos biológicos, mas, agora, pela vontade do cérebro.


O elemento messiânico da sua retórica revela o elemento místico por trás da racionalidade científica: as ferramentas científicas deixam de ser meras extensões ou potencializadoras das ações do corpo humano. 


Mais do que isso, as ferramentas (exoesqueletos, nanotecnologias, neuroengenharia) transformarão a própria noção de “ser”. Uauuu! O que séculos de filosofia buscaram, agora, de uma só vez, será tudo resolvido e revelado: o problema é a linguagem, estúpido! Como Nicolelis afirma, corpo e linguagem serão eliminados para uma conexão direta entre o cérebro e as máquinas.


Para além dos óbvios problemas filosóficos dessa afirmação (mais abaixo trataremos disso), o messianismo é evidente: descobertas tecnocientíficas levadas a cabo por uma elite do conhecimento anunciam transformações radicais no próprio ser humano. Os dois lados da equação (elite e ser humano) são tomados num sentido abstrato, sem determinação histórica ou política (“ser humano” quem, cara pálida?). Se pesquisadores como o francês Paul Virilio e o canadense Arthur Kroker já demostraram que toda agenda científica ou tecnológica atende, em primeiro lugar, a interesses táticos e bélicos (as aplicações militares do “exoesqueleto” é um exemplo explícito) para, mais tarde, seus subprodutos serem comercializados para a população civil, temos motivos suficientes para desconfiarmos dessa retórica messiânica.


Do exterminismo e messianismo a retórica do “delírio digital” converge para o transcendentalismo. É a revelação do seu conteúdo místico ou tecnognóstico: a necessidade de abandonarmos os nossos corpos. É a concepção do “Pós-humano”, um novo ser que não necessitaria mais do corpo ou da linguagem. A tecnologia criaria um atalho para o espírito transcender como pura “vontade”.


Como Nicolelis afirma:

“criamos um sexto sentido. Vai ser uma novidade explosiva, mas não posso dar mais detalhes, pois o artigo ainda não foi publicado. A internet como conhecemos vai desaparecer. Teremos uma verdadeira rede cerebral. A comunicação não será mediada pela linguagem, que deixará de ser o principal canal de comunicação. Para entender isso, basta pensar que toda linguagem é um comportamento motor – como mexer o braço. Esse comportamento motor também poderá ser decodificado e transmitido. Grandes empresas – como Google, Intel, Microsoft – já tem suas divisões de interface cérebro-máquina.”

Dentro da concepção exterminista, corpo e linguagem são problemáticos. Finitude, existência e limitação definem o corpo; e diferenças de idiomas, incompreensão, entrelinhas e conotações são atributos da linguagem. Tudo isso atrapalham as potencialidades da vontade pura. São “ruídos” que atrapalham a livre manifestação. A vontade é inequívoca, reta. Transcende a torre de babel da linguagem e a falibilidade da carne.

 

Para Nicolelis a Neuroengenharia libertará o homem 
não só do corpo mas da torre de babel da linguagem. 

 


O elemento transcendentalista é evidente na retórica do delírio digital: se Deus puniu o homem com a pluralidade de idiomas (como narra o episódio bíblico da Torre de Babel) para condená-lo à prisão do espírito na incomunicabilidade da linguagem, agora a neuroengenharia vai trazer a solução através do atalho tecnocientífico. Exterminando corpo e linguagem, o potencial do espírito (a Vontade) se libertará.


É claro que esses elementos retóricos do delírio digital são encobertos pelas aplicações médicas imediatas: pesquisas em torno do Mal de Parkinson e os benefícios do exoesqueleto para pessoas com paralisia física. 


A divulgação midiática desses resultados confere uma imagem utilitária e altruísta à neuroengenharia e ciências cognitivas. De certa forma, laicizam (encobre os propósitos místicos ou transcendentalistas) e popularizam uma tecnociência conduzida por uma nova elite (a “classe virtual”, como chama Arthur Krooker).

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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