O que é darwinismo. XXIX. Do catastrofismo de Cuvier ao lamarckismo de Darwin, por Felipe A. P. L. Costa

Para início de conversa, a teoria lamarckiana está assentada sobre bases exclusivamente materiais – a exemplo, aliás, do que ocorreria depois com o darwinismo.

O que é darwinismo. XXIX. Do catastrofismo de Cuvier ao lamarckismo de Darwin.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

Quando as ideias de Darwin e Wallace vieram a público, em meados do século 19, o fato da evolução (i.e., a noção de que diferentes formas de vida, agora extintas, povoaram a Terra no passado) já era admitido por muita gente. As explicações dadas é que não eram muito boas.

Um dos primeiros a olhar para os organismos de uma perspectiva histórica foi o naturalista francês Georges-Louis Leclerc (1707-1788) – o conde de Buffon. Outro pioneiro foi Erasmus Darwin (1731-1802), médico inglês e avô paterno de Darwin. O naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), autor de Quadros da natureza (1808), talvez tenha sido o primeiro a falar das implicações evolutivas das interações ecológicas [1].

Mas foi o naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), autor de Philosophie zoologique (G Baillière, 1809), quem criou a primeira teoria evolutiva moderna [2]. De acordo com ele, as espécies viventes seriam versões aperfeiçoadas de espécies preexistentes, cada uma delas tendo surgido espontânea e separadamente. Tal ponto de vista contrastava fortemente com as opiniões vigentes na época.

O catastrofismo.

Rival de Lamarck, o naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), pioneiro em campos como paleontologia e anatomia comparada, foi um dos primeiros a inferir que os restos fósseis são vestígios deixados por organismos que não mais existem. Suas ideias sobre a extinção de espécies foram acomodadas em uma teoria mais ampla, referida hoje como catastrofismo. De acordo com tal teoria, a história da vida seria pontuada por uma sucessão de catástrofes, cada uma delas responsável pelo desaparecimento de muitas espécies [3].

Segundo Cuvier, os fósseis seriam testemunhas dessas ondas periódicas de extinção em massa, a mais recente delas tendo sido provocada pelo dilúvio bíblico, conforme se lê no livro do Gênesis (7: 21-23) [4]:

21Toda a carne que se movia sobre a terra foi consumida: as aves, os animais, as feras, e todos os répteis que andam de rastos sobre a terra, e todos os homens. 22Tudo o que respira e tem vida sobre a terra, tudo morreu. 23E foram exterminados todos os seres (vivos) que havia sobre a terra, desde o homem até as bestas, tanto os répteis como as aves do céu, tudo foi exterminado da terra; ficou somente Noé, e os que estavam com ele na arca.”

Para os adeptos do catastrofismo, as vagas deixadas pelas espécies extintas seriam ocupadas por linhagens preexistentes ou por espécies novas, estas últimas geradas tanto por meio de processos naturais (e.g., geração espontânea) como pela intervenção divina.

O catastrofismo, portanto, não é uma narrativa naturalista nem tampouco evolucionista. E Lamarck não era partidário do catastrofismo.

O lamarckismo.

Para início de conversa, a teoria lamarckiana está assentada sobre bases exclusivamente materiais – a exemplo, aliás, do que ocorreria depois com o darwinismo. Para Lamarck, a evolução seria impulsionada por uma força interior inerente a todos os seres vivos. Graças a essa força, as formas de vida mais simples e inferiores tenderiam a progredir sempre em direção a formas mais complexas.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo mostra o contraste entre (1) evolução lamarckiana e (2) e. darwiniana. No modelo 1, as linhagens mudam ao longo do tempo (a-dA-D), mas de modo independente, não em razão de algum processo genealógico. No modelo 2, as linhagens viventes (A-D) são ditas aparentadas, pois derivam de um ancestral comum (a); o processo é genealógico. (Nos dois gráficos, subentende-se a presença de um eixo vertical, a representar a variação fenotípica.)

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Aos olhos do lamarckismo, a exteriorização dessa força interior se daria por meio de dois processos, apresentados por ele na forma de leis – a lei do uso e desuso e a l. da transmissão dos caracteres adquiridos.

Nas palavras de Lamarck (apud Hardin 1967, p. 98-9; adaptado):

Primeira lei. Em cada animal, que não passou o limite de seu desenvolvimento, o uso mais frequente e contínuo de qualquer órgão gradualmente fortifica, desenvolve e aumenta esse órgão, dando-lhe força proporcional ao tempo em que foi usado; assim como o desuso permanente de qualquer órgão imperceptivelmente o enfraquece e deteriora, diminuindo, progressivamente, a sua capacidade funcional até que, finalmente, desaparece.

Segunda lei. Todas as aquisições ou perdas feitas pela natureza nos indivíduos, através da influência do ambiente em que sua raça foi colocada durante longo tempo, e, portanto, através da influência do uso predominante ou do desuso permanente de qualquer órgão, são preservadas pela reprodução nos novos indivíduos que surgem, contanto que as modificações adquiridas sejam comuns aos dois sexos ou, pelo menos, aos indivíduos que produzem as crias.”

Embora fizesse críticas ao lamarckismo, Darwin reteve em seus escritos algumas ideias contidas na obra de Lamarck, como as leis acima [5]. O mistério da hereditariedade só seria esclarecido a partir de 1900, com a redescoberta da obra do monge e naturalista austríaco Gregor Mendel (1822-1884) [6]. A despeito de alguns pontos de contato, o modelo de Lamarck e o de Darwin e Wallace são bem diferentes (ver a figura que acompanha este artigo). Falaremos mais sobre isso no cap. 7.

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Notas.

[*] O presente artigo, assim como outros 28 publicados neste GGN (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui , aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), foi extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Sobre a vida e obra de Humboldt, ver Wulf (2016).

[2] Sobre a obra de Lamarck, ver Burkhardt (2013); em português, Martins (2008).

[3] Para comentários sobre Cuvier, ver Gould (1991) e Zimmer (1999).

[4] Bíblia sagrada (editora Paulinas, 1965), em tradução de Matos Soares.

[5] Darwin chegou a burilar um modelo – uma versão moderna de pangênese, ideia defendida pelo filósofo grego Hipócrates (c. 460 – c. 377 aC) – visando explicar a transmissão dos caracteres adquiridos. Incentivou o jovem naturalista inglês de origem canadense George J. Romanes (1848-1894) a testar o modelo, mas isso nunca ocorreu – ver Martins (2006).

[6] Ou austro-húngaro; na época, a sua cidade natal, Brünn (hoje Brno, Tchéquia), integrava o Império Austro-Húngaro (Henig 2001).

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Referências citadas.

+ Burkhardt, RW, Jr. 2013. Lamarck, evolution, and the inheritance of acquired characters. Genetics 194: 793-805.

+ Gould, SJ. 1991 [1987]. Seta do tempo, ciclo do tempo. SP, Companhia das Letras.

+ Henig, RM. 2001 [2000]. O monge no jardim. RJ, Rocco.

+ Martins, LACP. 2008. Lamarck e a evolução orgânica: as relações entre o vivo e o não-vivo. Ciência & Ambiente 36: 11-21.

+ Martins, RA. 2006. George John Romanes e a teoria da seleção fisiológica. Episteme 11: 197-208.

+ Wulf, A. 2016 [2015]. A invenção da natureza. SP, Crítica.

+ Zimmer, C. 1999 [1998]. À beira d’água. RJ, Jorge Zahar.

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Redação

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