Por que ‘síntese evolutiva’ é um rótulo mais apropriado que ‘neodarwinismo’?, por Felipe Costa

No âmbito do darwinismo, o abandono das leis lamarckistas – uma fase repleta de polêmicas – assinalaria o advento de um novo período histórico.

O que é darwinismo. XXVIII. Por que ‘síntese evolutiva’ é um rótulo mais apropriado que ‘neodarwinismo’?

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

Em fins do século 19, enquanto a questão da idade da Terra parecia bem encaminhada (ver aqui), o darwinismo ainda brigava para sanar a sua maior deficiência interna: a falta de uma teoria subsidiária que explicasse (1) a hereditariedade e (2) a manutenção da variabilidade populacional [1].

A transmissão hereditária é uma preocupação antiga dos seres humanos [2]. Como tema científico, no entanto, o assunto permaneceu envolto em dúvidas e mistérios até o fim do século 19.

Na época de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913), por exemplo, uma explicação muito difundida dizia que os fatores (genes, no jargão atual) transportados pelos gametas (ambos ou só o masculino, a depender do autor) se misturariam após a fecundação. Razão pela qual o fenótipo da prole seria algo intermediário ao dos dois genitores.

Fosse assim, no entanto, em poucas gerações teríamos apenas e tão somente populações homogêneas [3]. A expectativa não batia com as observações – os naturalistas continuavam a documentar a presença de variabilidade intrapopulacional. Os adeptos da herança por mistura tiveram de evocar explicações complementares. O próprio Darwin supunha que muitas novas variantes eram produzidas a cada geração, compensando assim as perdas resultantes da mistura.

A falta de uma teoria hereditária mais consistente ajuda a explicar também porque Darwin permaneceu adepto do ideário lamarckista até o fim da vida. Em uma passagem famosa, o naturalista britânico (Darwin 1859, p. 11; tradução livre) escreveu:

“O notável desenvolvido hereditário dos úberes em vacas e cabras, em regiões onde elas habitualmente são ordenhadas, em comparação ao estado desses órgãos em outras regiões, é outro exemplo do efeito do uso. Não se pode citar um único animal doméstico que, em alguma região, não tenha as orelhas caídas; e o ponto de vista sugerido por alguns autores, de que a queda se deva ao desuso dos músculos da orelha, em razão de os animais não serem frequentemente alertados para o perigo, parece provável.”

Foi só no final do século 19 que a influência dessas ideias começou a perder fôlego. No âmbito do darwinismo, o abandono das leis lamarckistas – uma fase repleta de polêmicas – assinalaria o advento de um novo período histórico.

A teoria do plasma germinativo.

August Weismann (1834-1914) – já referido anteriormente – foi um personagem central do chamado neodarwinismo.

Em 1892, ainda sem conhecer a obra de Gregor Mendel (1822-1884), ele publicou a sua teoria do plasma germinativo [4]. Segundo Weismann, o corpo humano – ou o de qualquer outro animal – abriga dois tipos de células, as somáticas e as germinativas (= gametas). As primeiras formam os órgãos vegetativos (pulmões, cérebro etc.), enquanto as últimas são usadas para fins reprodutivos.

Os caracteres hereditários são transmitidos apenas e tão somente pelos gametas. As demais células do nosso corpo não participam desse processo e, portanto, elas não constituem um elo entre as gerações.

Foi uma revolução. A partir da qual, a ideia de herança dos caracteres adquiridos perdeu força e popularidade.

Mas houve quem protestasse. Mais ou menos na mesma época, George John Romanes (1848-1894) cunhou o termo wallacismo. A expressão nada tinha de elogiosa, sendo usada para estigmatizar as posições de Wallace que destoavam do darwinismo original. Ele passou a falar também em weismannismo, neodarwinismo e ultradarwinismo [5].

Aos olhos de Romanes, autores como Wallace e Weismann estariam a divulgar concepções antidarwinistas. O primeiro, por conta do seu panselecionismo. (A posição de Wallace, dando ênfase exagerada ao papel da seleção, havia sido criticada pelo próprio Darwin.) O segundo, por causa de suas restrições aos resquícios lamarckistas que ainda estavam aninhados no interior do darwinismo. (Como o leitor deve ter notado, as leis lamarckistas – ver cap. 5 – e a teoria do plasma germinativo são incompatíveis entre si.)

Com o tempo, porém, a situação mudou e a conotação desdenhosa foi deixada de lado. A expressão neodarwinismo passou a ser usada em outros contextos, com um significado positivo. Hoje em dia, o termo é comumente usado em alusão à versão corrente da teoria evolutiva, uma bem-sucedida combinação entre o darwinismo primordial e o mendelismo, como veremos no cap. 8. Trata-se, a rigor, de um rótulo inadequado – o melhor, neste caso, seria falar em síntese evolutiva, não em neodarwinismo.

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Notas.

[*] O presente artigo, assim como outros 27 publicados neste GGN (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), foi extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Dito de outra maneira: Por que os filhos se parecem com os pais, mas não são idênticos a eles?)

[2] O controle humano sobre a genética de plantas e animais caracterizou a chamada revolução neolítica (ou r. agrícola).

[3] Quando misturamos 1 L de tinta vermelha e 1 L de branca, obtemos 2 L de rosa. Ocorre que as cores originais são perdidas, pois não é possível extrair 1 L de tinta vermelha e 1 L de tinta branca dos 2 L de rosa.

[4] Publicado em alemão, o livro logo ganhou uma versão em inglês: The germ-plasm: A theory of heredity (Scribner’s Sons, 1893). Desconheço a existência de versão em português.

[5] O termo neodarwinismo (ing., Neo-Darwinism) apareceu (pela primeira vez?) em Unconscious memory (1880), livro do escritor inglês Samuel Butler (1835-1902).

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Referência citada.

Darwin, CR. 1859. On the origin of species. Londres, J Murray.

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Redação

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