“Temos que enfrentar as assimetrias tecnológicas no mundo: 88% das patentes na área da saúde estão nas mãos de apenas dez países”, diz Carlos Gadelha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Não é preciso provar que a saúde gera progresso econômico para, então, considerar saúde como direito. Isso é ponto de partida

do CEE Fiocruz

“Temos que enfrentar as assimetrias tecnológicas no mundo: 88% das patentes na área da saúde estão nas mãos de apenas dez países”, diz Carlos Gadelha

por Andréa Vilhena e Eliane Bardanachvili

A importância de se tratar saúde, desenvolvimento e inovação de forma integrada, como um sistema; a definição de uma nova perspectiva para conectar as políticas social, industrial, científica, tecnológica e ambiental; e a necessidade de um olhar crítico sobre as assimetrias globais estiveram entre os pontos enfatizados pelo pesquisador Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), em palestra no Grupo de Discussão Política Latino-Americana de Ciência, Tecnologia e Inovação (La-Stip), que integra a Rede Latino-Americana para o Estudo de Sistemas de Aprendizagem, Inovação e Construção de Competências (Lalics). O grupo reúne, há cerca de três anos, pesquisadores da América Latina que estão estudando políticas de ciência e tecnologia e outras políticas públicas, com vistas a uma aproximação entre o mundo acadêmico e aqueles que atuam na formulação dessas políticas.

A iniciativa busca expandir a trajetória tradicionalmente percorrida pelos pesquisadores, que, como analisa a professora Carlota Perez, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, “estudam, voltam para a academia e escrevem artigos, em inglês, com pouca relação com os policy makers”.  Perez coordenou o evento, realizado em inglês, que teve como título Saúde como desenvolvimento: experiências para enfrentar a assimetria global (Health as developement: experience to face global asymetries).

Carlos Gadelha iniciou sua exposição conclamando os países do Norte a olhar para o Sul, para “observar as contribuições que temos dado em termos de teoria e prática políticas”. Ele citou nomes de pensadores como os economistas Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, o geógrafo Milton Santos, o médico, que se consagrou por seus estudos sobre a Geogafia da Fome Josué de Castro e os médicos sanitaristas Mário Magalhães e Sergio Arouca.

“Tenho uma lista longa. É importante saber o valor do que vimos pensando por um longo tempo e em como avançar, ter coragem de propor novas ideias, políticas, estratégias”, disse, lembrando que, na Fiocruz, teoria e prática não se separam, tendo diversos pesquisadores da instituição ocupado cargos na gestão pública, incluindo o de ministro da Saúde. “Os institutos acadêmicos desconectam o pensar do mudar o mundo. Temos que mudar essa perspectiva”.

Assista à integra do evento Saúde como desenvolvimento: experiências para enfrentar a assimetria global (em inglês)

Gadelha buscou apresentar um novo caminho para conectar as políticas social, industrial, científica e tecnológica e ambiental e avançar no estabelecimento de projetos de âmbito nacional e global. Para ele, a relação entre progresso econômico e progresso em inovação mostrou “sua face mais perversa com a pandemia de Covid-19”.

O pesquisador lembrou a solenidade do Oscar, realizada em 25/4/2021, para falar de contrastes. “Todos vacinados, limpos, saudáveis, enquanto ao lado da minha casa, ao lado da Fiocruz, as pessoas estavam morrendo. Isso não é um mundo sustentável”, disse, considerando que se está jogando fora a proposta da Agenda 2030 de não deixar ninguém para trás. “Estão deixando. Temos que discutir isso. O cenário do Oscar mostra os problemas estruturais que o mundo está encarando”.

Gadelha orientou sua exposição por cinco pontos-chaves, o primeiro deles afirmando a saúde como caminho para o desenvolvimento. “Saúde é parte dos direitos humanos e uma das áreas mais proeminentes para gerar renda e inovação”. O segundo ponto referiu-se à pandemia de Covid-19, que revelou as características sistêmicas, interconectadas da produção em saúde, envolvendo, ao mesmo tempo, produtos diagnósticos e farmacêuticos, vacinas, equipamentos de proteção individual e serviços, todos relacionados a promoção, prevenção e cuidado. “Mobilizamos todo um sistema, que precisa estar integrado”.

Como terceiro ponto, o pesquisador associou a garantia do acesso universal à existência de uma base de produção estruturada para atender as necessidades sociais, enquanto o quarto ponto referiu-se à “forte assimetria tecnológica” entre regiões, países, territórios e pessoas. “Temos que enfrentar as assimetrias tecnológicas no mundo”, conclamou Gadelha.

Países que produzem matérias-primas em geral são mais desiguais do que países que possuem capacidade científica e tecnológica

Conforme observou, as assimetrias entre os países que conseguem patentear inovações tecnológicas acompanham as assimetrias em relação ao índice de desenvolvimento humano. “Países que produzem matérias-primas em geral são mais desiguais do que países que possuem capacidade científica e tecnológica”, explicou Gadelha. Ele chamou a atenção ainda para o fato de 88% das patentes na área da saúde estarem concentrados nas mãos de apenas dez países.  Se não mudar a perspectiva global, a perspectiva nacional, a situação no futuro será ainda mais desafiadora. Por isso, o pesquisador ressaltou a importância de haver  “ mais variedade, mais competição, mais diversidade, mais países, mais empresas, mais pessoas participando desse processo”.

Como resultado, e entrando no quinto ponto, o pesquisador destacou a incompatibilidade existente entre as necessidades de saúde e a base de conhecimento e produção para fazer frente a elas. “Temos que interagir com as duas faces da mesma moeda: a da transformação política, social e ambiental e a da dinâmica da inovação econômica e industrial”, destacou o pesquisador, alertando: “Por favor, economistas, não separem os universos econômico e o da saúde. Isso está errado!”.

Não é preciso provar que a saúde gera progresso econômico para, então, considerar saúde como direito. Isso é ponto de partida

Gadelha destacou a “relação endógena” entre saúde e as três dimensões da sustentabilidade do desenvolvimento: social, econômica/de inovação e ambiental. A dimensão social, definiu, pauta-se pelo entendimento da saúde como direito e caminho para pensar um projeto de sociedade que enfatize a coletividade e o acesso universal. E ressaltou não ser preciso provar que a saúde gera progresso econômico para, então, considerar saúde como direito. “Isso, para mim, é ponto de partida!”.

Em relação à dimensão econômica e de inovação, a saúde é tomada como área estratégica na sociedade do conhecimento, com papel crescente nas relações internacionais e na geopolítica global. “Estamos no meio de uma enorme transformação tecnológica e a saúde assume a liderança nessas mudanças”, afirmou.

Por fim, Gadelha referiu-se à forte interação entre a perspectiva ambiental e a saúde. “Mais uma vez, é preciso considerar essas três dimensões do desenvolvimento de forma endógena. Não se pode evoluir em uma das dimensões sem evoluir nas demais”, alertou.

Não podemos separar indústria e serviços quando falamos de saúde. É como falar da indústria automobilística sem o carro

Gadelha abordou o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) – “um complexo gigantesco, no mundo e no Brasil” –, compreendendo quatro subsistemas: a indústria química e de biotecnologia, envolvendo farmacêuticas, ingredientes, vacinas, reagentes e produtos derivados do sangue; o subsistema mecânico, eletrônico e de materiais, envolvendo equipamentos, próteses e órteses e dispositivos para diagnósticos; e o subsistema de serviços, compreendendo a atenção primária, o atendimento em hospitais e clínicas e os serviços de diagnóstico, entre outros. “Não podemos separar indústria e serviços quando falamos de saúde. É como falar da indústria automobilística sem o carro”, comparou. “A área de serviços não apenas absorve tecnologia, como cria e promove inovação”. Gadelha cita, ainda, um quarto subsistema, “que é novo”, o da informação e da conectividade. “Todos esses subsistemas estão interligados”, enfatizou.

No contexto da pandemia de Covid-19, exemplificou o pesquisador, é preciso pensar em vacina, mas ao mesmo tempo, na atenção primária e na prevenção. E, no que diz respeito aos hospitais, é preciso, por exemplo, contar com equipamentos para diagnosticar os pulmões dos pacientes, tudo permeado pela comunicação e pela conectividade. “A nova vacina foi uma inovação”, lembrou. “Antes da Covid, a vacina mais rapidamente concebida [contra a caxumba] levou quatro anos para ficar pronta. A vacina contra Covid foi criada em menos de um ano. Usando big data, inteligência artificial etc.”.

Estamos pedindo às pessoas para mudarem suas lentes, para verem que a saúde representa uma oportunidade de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que é um compromisso ético, em uma sociedade que gera emprego e inovação

Gadelha destacou que o Brasil tem o maior sistema universal do mundo – “talvez muitos de vocês não saibam disso” –, mobilizando 9% do PIB e gerando 18 milhões de empregos diretos e indiretos. “Saúde não é apenas gasto. Estamos pedindo às pessoas para mudarem suas lentes, para verem que a saúde representa uma oportunidade de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que é um compromisso ético, em uma sociedade que gera emprego e inovação”.

Para Gadelha, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde é o meio de campo do sistema de inovação nacional, o “espaço translacional entre pesquisa, desenvolvimento e vida”, conforme destacou. “Se não temos esses músculos, o conhecimento que adquirimos não se transforma em desenvolvimento econômico e social”, considerou. “Não peçam à América Latina para apenas comprar produtos. Sem o complexo da saúde, sem a indústria, sem o serviço básico, não se transforma o conhecimento”.

Os desenvolvedores de softwares são geralmente brancos, de países de alta renda. Falham em reconhecer diferenças culturais, diferenças sociais, para que se desenvolvam produtos de saúde

De modo a chamar atenção para “o risco que corremos”, no que diz respeito a iniquidades e assimetrias, o pesquisador apresentou a imagem de um sabonete já manuseado, sujo, tendo ao lado uma bonita embalagem de sabonete líquido sobre uma pia limpa, observando que buscadores como o Google não identificam a primeira imagem como sendo um sabonete. “Talvez porque os desenvolvedores de softwares são geralmente brancos, de países de alta renda. Falham em reconhecer diferenças culturais, diferenças sociais, para que se desenvolvam produtos de saúde – o sabonete é um produto de saúde; é essencial contra a Covid!”, analisa Gadelha, assinalando que os softwares de reconhecimento não somente contribuem para que se perpetuem as iniquidades sociais, como acentuam a distância entre países.

A crise sanitária provocada pela pandemia escancarou essas assimetrias, deixando claras as diferenças de capacidade produtiva e de acesso às vacinas entre os países. No Brasil, se não tivéssemos a Fundação Oswaldo Cruz e o Butantan teríamos uma catástrofe ainda maior do que a que estamos enfrentando”, disse Gadelha.  

Ele ressaltou a importância das plataformas tecnológicas da Fiocruz e do Instituto Butantan, desenvolvidas ao longo de mais de dez anos de trabalho em pesquisa, com apoio de contratos públicos para estímulo à inovação tecnológica, que atendessem o sistema de saúde brasileiro.  ”A produção de vacina para Covid na Fiocruz está sendo feita nessa plataforma. Sem ela, a Fiocruz não poderia produzir a vacina para enfrentar a pandemia. O mesmo aconteceu com o Butantan”, explicou o pesquisador.

Segundo Gadelha, a saúde reproduz as assimetrias estruturais da sociedade, “se há uma desigualdade patente (profunda) na sociedade, isso aparece na saúde, se há uma desigualdade de renda, ela aparece no acesso à saúde, se há desigualdade de produção na indústria, isso aparece, muito claramente, na saúde”.

No entanto, a saúde não pode ser considerada uma restrição ao desenvolvimento, sublinhou. “Ao contrário, ela representa uma possibilidade de alavancá-lo. Para isso, precisamos de uma mudança estrutural na sua base social, econômica, produtiva e de inovação”. Nesse sentido, inspirados em autores como Celso Furtado, um dos mais destacados pensadores latino-americanos do desenvolvimento, e em Sergio Arouca, “que concebeu o maior sistema de saúde do mundo”, Gadelha e um grupo de 35 pesquisadores vêm analisando os vários aspectos da saúde, como produção, inovação, conhecimento, direitos sociais, meio ambiente e cidadania. 

Os resultados  dessas análises foram reunidos e publicados, em março de 2021, na última última edição dos Cadernos do Desenvolvimento, publicação acadêmica semestral do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. O número especial, intitulado Desenvolvimento, saúde e mudança estrutural: O Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19, representa a primeira etapa do projeto Desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – Ceis 4.0, fruto de uma rede de pesquisa criada pela Fiocruz, em colaboração com instituições na área de economia política, com destaque para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal Fluminense (UFF).

Acesse a edição do Cadernos de Desenvolvimento com o tema Desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Lourdes Nassif

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