Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A autoabdicação humana no filme “Cam”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Se em “A Rede”, de 1995, o tema do roubo da identidade de bancos de dados era tratado dentro do gênero thriller policial, no filme “Cam” (2018) torna-se agora um evento entre o fantástico e o sobrenatural. Por que o tema da invasão de privacidade sofreu uma guinada de gênero tão radical? Uma jovem que faz “lives” de pornografia softcore, cujo sonho é chegar ao Top 50 de um website erótico, vê uma réplica exata de si mesma roubar sua identidade virtual, substituindo-a. Sem controle do seu “doppelgänger”, sofre as consequências na vida familiar. Porém, seu duplo parece ser mais destemido do que o original, a tal ponto que os limites entre o real e o virtual desaparecem. Se no passado ver o seu duplo no espelho e na fotografia despertava assombro e medo, hoje na cultura das “selfies” e webcams das “lives” em redes sociais o duplo gera inveja e aspiração por uma vida dinâmica, alegre, sem culpas e preocupações. Abdicamos de toda humanidade pela representação algorítmica de nós mesmos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Em 1995 era lançado o filme A Rede (The Net), quando a Internet e a tecnologia informática estavam dando os primeiros passos na digitalização do nosso cotidiano. Sandra Bullock era Angela Bennet, especialista em redes de informática, cuja identidade era apagada e roubada por criminosos cibernéticos numa trama política. 

Nos bancos de dados aparece uma nova identidade: ela ganha novo nome e uma longa ficha corrida como ladra, prostituta e viciada. Como provar sua verdadeira identidade se, como profissional de computadores, sempre foi reclusa e trabalhando remotamente da sua casa com poucos contatos no mundo analógico?

 Eram épocas em que um thriller tecnológico como A Rede mostrava que apesar de toda virtualidade informática, ainda existia um mundo mais importante: nossas vidas analógicas, nossas identidades reais que podiam, de uma hora para outra, ser hackeadas.

Vinte e três anos depois, estamos na Web 2.0 e nossas relações cotidianas estão totalmente mediadas pelas redes sociais, smartphones e uma infinidade de aplicativos. E os principais gêneros fílmicos que mais efetivamente figuram nossos medos e os males da sociedade tecnológica são o horror e a ficção científica – e a série Black Mirror está aí para comprovar. 

Em vinte e três anos, essa passagem do gênero thriller policial de ação para o terror e ficção cientifica mostra como a tecnologia se tornam invasiva, borrando as diferenças entre o real e o virtual, o analógico e o digital. Se lá em 1995 a perda da identidade era uma questão policial, na atualidade pode ser tornar um evento sobrenatural ou fantástico – perder a identidade on-line pode ser aterrorizante, porque ela parece ser mais concreta e desejável do que a identidade do mundo real.

 

 

A Rede versus Cam

Comparar o filme A Rede, de pouco mais de duas décadas atrás, com Cam (2018), de Daniel Goldhaber (disponível na plataforma de streaming Netflix) revela o nosso atual zeitgeist tecnológico – a nossa obsessão pelas nossas personas on-line chega a tal ponto que a vida virtual se apresenta mais vibrante do que a vida cotidiana. Há um sentido definitivo que estamos perdendo algo para as máquinas que estão diante de nossos olhos e de nossas mãos.

O filme Cam se desdobra no mundo do sexo on-line, da pornografia softcore no qual jovens expõe seus corpos marcados por códigos transgressivos, cheios de peircing, tatuagens, descolorações e depilações. Mulheres que são desumanizadas em uma plataforma de performances ao vivo com interações em tempo real em chats que permite o anonimato de ambos os lados da transação (quanto melhor o show, mais “moedas” são recebidas pela stripper). Experiências interativas cujos impactos no comportamento humano ainda não foram totalmente dimensionados.

Principalmente porque por trás das interfaces dessas plataformas estão algoritmos, agora organizados como nova forma de inteligência artificial, que “aprende” sobre nossos hábitos, escolhas e atitudes, assim como a Bia, de um banco brasileiro, Siri ou Cortana. 

 

 

E se de tanto aprenderem conosco, de repente se transformem em nosso doppelgänger? Um duplo que pretende nos substituir simplesmente porque é mais eficiente do que nós, ainda presos às nossas identidades ancoradas no psiquismo e na realidade.

Cam vai explorar esse tema, justamente no campo mais invasivo da privacidade: o corpo e o sexo.

O Filme

 O filme abre com Alice (Madeline Brewer de Handmaid’s Tale) no meio de uma transmissão ao vivo como Lola. Ela tenta chegar ao ranking Top 50 de um website pornô, juntamente com seus fãs que num chat a provocam. Em breves flashs de nudez, Lola beira os tabus. Alguns fãs chegam a pagá-la por comportamentos mais específicos, enquanto em chats mais privados alguns fanáticos sugerem comportamentos mais extremos que podem chegar a sangue e suicídio.

Lola mostra-se esperta, enquanto provoca outras garotas concorrentes que estão on-line naquele momento. Tudo parece não ter limites e que algo pode dar errado a qualquer momento.

O roteiro foi escrito por Isa Mazzei e tem um componente autobiográfico: foi inspirado nos tempos em que ela própria foi uma garota de webcam em sites pornográficos. A narrativa é hábil, porque aborda o tema do sexo online não tanto pela questão da nudez. A web pornô está principalmente na iluminação, roupas, fetiches, ângulos de câmera e movimentos.

Com uma narrativa bem detalhista, Cam vai descrevendo esse universo de um verdadeiro peep show virtual. Até que um evento muito sinistro acontece: Numa manhã Alice acorda, para descobrir que alguém parecido exatamente com ela a substituiu. E está ao vivo naquele momento.

De início, acredita que houve algum problema técnico no website, que está colocando no ar antigos shows como fossem ao vivo. Até descobrir que seu e-mail e senha se tornaram inválidos e que perdeu totalmente o controle sobre a persona Lola. E o pior: seu doppelgänger não tem quaisquer limites morais ou éticos – facilmente consegue chegar ao Top 50, enquanto Alice vê sua vida real familiar se desmoronar quando descobrem o seu verdadeiro trabalho.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

1 Comentário

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  1. Hollywood elite + walnut sauce

    Teofagia. Entre numerosos comentários em escrita para mim indecifrável a um vídeo em assuntos de geopolítica havia um em inglês, curto e inesquecível. Alguém avisava que em determinado cargueiro haveria um container com ‘transubstantiation cannibalism served’.

    [video:https://youtu.be/um5yzha8EUw%5D

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