Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“A Classe Dominante”: o mais estranho filme de Peter O’Toole

O Deus do Velho Testamento (o “messias elétrico”) faz um duelo surreal com o Deus do Novo Testamento; um sádico psiquiatra alemão faz experiências com “ratos esquizofrênicos”; uma família de aristocratas trama a internação de um conde esquizofrênico para conseguirem ficar com o seu título e fortuna. Com a recente morte aos 81 anos do grande ator inglês Peter O’Toole, não poderíamos deixar de reverenciar o filme mais estranho da sua carreira: “A Classe Dominante” (The Ruling Class, 1972). Uma comédia de humor negro repleta de ultraje moral e religioso que após ser restaurada e relançada em DVD, teve recuperados os 20 minutos cortados no lançamento comercial da época. Um filme profético ao mostrar que mesmo após todos os movimentos libertários da época, a aristocracia não morreu: persiste através de uma classe dominante que opta por um deus vingativo e intolerante.

Peter O’Toole para sempre será lembrado pelo filme Lawrence das Arábias. Mas temos também que pagar tributo ao mais estranho filme da sua carreira: A Classe Dominante (The Ruling Class, 1972) que desde o seu lançamento passou a ser seguido por um grupo restrito de fãs como um filme cult. Ainda mais que a versão para o lançamento nos EUA teve uma redução de 20 minutos para tornar o filme mais rentável, poupando ao público daquele país de algumas cenas bizarras e de extremo humor negro que chega, algumas vezes, as raias da violência e ultraje religioso. Pois o filme foi restaurado no relançamento em DVD pela  The Criterion Collection em 2001 e retornou às suas quase duas horas e meia da duração original.

Embora o filme seja um mix de sátira, farsa, musical, drama shakespeariano e muito humor negro, a narrativa é uma descida sombria na loucura, caos e simbolismos religiosos nas tramas envolvendo cobiça e poder no seio de uma elite aristocrática apodrecida, mas que tenta manter sua fleugma e pompa: um conde esquizofrênico, um bispo anglicano sem fé, um sádico psiquiatra alemão, um mordomo comunista que vive em um constante estado de embriaguez, e toda uma galeria de personagens inesquecíveis.

O filme conta a história de Jack (Peter O’Toole) o 14o Conde de Gurney. Ele herda o título depois do ao mesmo tempo engraçado e chocante prólogo do filme, em que o seu patriótico pai, após voltar para casa vindo de uma reunião na St. George Society, enforca-se acidentalmente em um ritual fetichista sexual privado em seu quarto. Jack chega tarde demais para o funeral, mas a sua aparição causa espanto e estardalhaço: Jack chega confiante para buscar seu título porque ele é nada mais do que Jesus Cristo e o próprio Deus. Pelo menos é isso que Jack acredita e anuncia para todos, vestindo roupas excêntricas (ora de monge, ora de dândi) e colocando uma enorme cruz na parede do saguão da mansão. Jack sobe na cruz e ali “descansa” todas as noites, simulando para os olhares atônitos de todos a imagem do Cristo crucificado.

O desempenho de O’Toole no papel é propositalmente teatral e exagerado, porém com o toque inglês: um ator americano certamente tentaria performar Jesus com os maneirismos emprestados dos pregadores da TV. Mas O’Toole interpreta um Jesus com muito improviso, narcisismo e boas maneiras – ele foi indicado ao Oscar de melhor ator naquele ano por esse filme, porém Marlon Brando levou a estatueta com O Poderoso Chefão.

A família está chocada com o esquizofrênico Jack e arma uma artimanha para afastá-lo do título e da fortuna: fazê-lo casar, ter um filho e, depois, mandar Jack para um hospício, enquanto a família se tornaria o tutor do novo 14o Conde, colocando a mão nas propriedades e dinheiro. Mas, o que principalmente incomoda a família é que Jack quer levar as ideias de Jesus às últimas consequências: para ele, todos devem viver somente do amor e esquecer as propriedades e títulos porque todos os homens são iguais… A família passa a considerá-lo uma ameaça bolchevique no meio da aristocracia inglesa.

O deus gnóstico de Jack

E por que Jack acha que é Deus? Ele descreve sua impagável epifania: “Porque toda vez em que rezava para Ele, eu percebia que estava falando comigo mesmo. Logo, eu sou Deus!” Jack fala isso fazendo referências ao papa do LSD, o psiquiatra Thimoty Leary e recomendando a todos que se amem e façam sexo. Esse é o núcleo profundamente gnóstico e libertário no Jesus/Deus imaginado por Jack: Deus está dentro de nós mesmos.

Ao longo da descida na loucura e caos, percebemos que o problema não é a insanidade de Jack – na verdade, todos ao redor daquela família aristocrática não batem bem! O problema é qual Deus ele imagina que é: o Deus do Novo Testamento trazido por Jesus, capaz de amar, perdoar e ter compaixão. Ao contrário, o Deus adorado por todos ao redor (a começar pelo apoplético e inseguro bispo que participa da conspiração urdida pela família) é o do Velho Testamento: o Jeová, duro, intolerante e vingativo.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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