A descoberta de Bergman, por Walnice Nogueira Galvão

A descoberta de Bergman

por Walnice Nogueira Galvão

O centenário do grande cineasta sueco Ingmar Bergman, transcorrido no dia 14 de julho, não passou despercebido entre nós. Mas não tanto quanto em seu país, que  decretou 2018 o “Ano Bergman”, com festividades de janeiro a dezembro.

Mas não podemos nos queixar. Tivemos um festival de seus principais filmes no Cinesesc, que repercutiu no Cine Caixa Belas Artes. Num total de dez, foram selecionados os seguintes: Mônica e o DesejoO Sétimo SeloAtravés de um EspelhoLuz de InvernoMorangos Silvestres, O SilêncioPersona, Gritos e SussurrosSonata de OutonoFanny e Alexander. É uma boa seleção, e bem representativa do total da obra. É claro que o fã pode se sentir traído porque, como costuma acontecer, ficou de fora o título que ele mais preza. Ou então, ao contrário, traz um que ele renega. Mas, neste caso, seria exceção: os principais filmes estão mesmo aí.  E uma benesse a mais é que alguns deles estão passando na televisão mesmo depois do prazo de encerramento. É só ficar atento.

Na televisão, no dia do centenário o Telecine Cult forneceu uma maratona de longas, a que chamou “Especial Ingmar Bergman”. O Canal Curta! exibiu “Ingmar Bergman – Atrás da máscara”, documentário de Manuelle Blanc. Enquanto isso, esperamos a chegada de “Bergman – 100 anos”, muito aguardado documentário de Jane Magnusson, lançado no festival de Cannes deste ano.

É interessante remontar aos primórdios, porque algo de singular coube a este cineasta no plano das descobertas. Além de singular, muito instrutivo para uma reflexão sobre colonialismo. A propósito, é bom lembrar a posição de dependência cultural (acoplada às outras) que sempre vivemos com relação às metrópoles europeia e norte-americana. Os grandes sucessos são construídos lá e só depois aportam por aqui. Inclusive no que diz respeito aos nativos do continente. Sirva de exemplo uma figura exponencial como o escritor Jorge Luis Borges, que primeiro ficou famoso na França para só depois ser reconhecido em seu próprio país, a Argentina. Mas isso é corriqueiro, como se sabe.

Menos comum é que ocorra o inverso, isto é, o caso de uma figura nativa daquelas bandas, ou seja, dos países da Europa ou dos Estados Unidos, que primeiro fique famoso por aqui para só depois ser reconhecido por lá. E é o caso invulgar de Ingmar Bergman.

Ele começou por ser premiado no então prestigioso festival internacional de Punta del Este, no Uruguai, com Juventude, em 1952. E não só premiado. Um dos mais influentes semanários culturais latino-americanos da época, com sede em Montevidéu, era Marcha, com seu plantel de competentes e eruditos críticos de cinema. Assim, Bergman, que era ou ignorado ou incompreendido em seu próprio país e no resto do mundo, recebeu naquelas paragens os primeiros estudos sérios. E, mais extraordinário ainda, seria uruguaio o primeiro livro publicado a seu respeito, em 1964: Ingmar Bergman – Un dramaturgo cinematográfico. A repercussão atingiria os vizinhos Argentina e Brasil, onde Bergman se tornaria precocemente estimado. No primeiro festival argentino, o de Mar del Plata, criado em 1954, seria exibidoJuventude, e no de 1959 o prêmio maior iria para Morangos silvestres.

Mas toda essa movimentação levaria seus filmes a serem desde o início exibidos fora dos festivais, e em salas propriamente comerciais. Logo de saída, o cineasta atingiria um público mais amplo nesses países da América Latina do que no resto do mundo.

Todavia, só por curiosidade dê uma olhada na lista de galardões do cineasta, aliás premiadíssimo, tal como a registra a Wikipédia. Ali não se encontra um só de seus prêmios latinoamericanos: parece até que só os ganhou nos Estados Unidos e na Europa! É muita ignorância, é muita injustiça. E depois que eles o “descobriram”, perseveraram em passar sob silêncio o fato de que, na realidade, foi descoberto muito longe dali. Ou seja, sua inovadora e até chocante obra, de uma qualidade excepcional, só em remotas latitudes se depararia com o frescor de outros olhos para apreciá-la. Até que o estranhamento conferido pela transgressão dos padrões habituais fosse cedendo o passo ao reconhecido… É o que costuma acontecer com as vanguardas.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

2 Comentários

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  1. Bergman – 100 Anos

    Oi, Gostei muito de seu texto. Não sabia que Bergman tinha sido “descoberto” primeiro no Uruguai.

    Sobre o documentário Bergman – 100 Anos, teve pré-estreia em vários cinemas justo no dia 14 de julho, e estreou na quinta-feira seguinte, dia 19/07. Portanto, há 1 mês. E é bom correr para assisti-lo no em tela grande porque está em poucas salas.

    Abraços,

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