Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A gnose selvagem no filme “Dente Canino”

Nas últimas décadas adaptações da Alegoria da Caverna de Platão  têm sido recorrentes em diversos filmes, nos mais diversos gêneros e narrativas. O filme grego “Dente Canino” (Kynodontas, 2009) é mais uma adaptação dessa alegoria, dessa vez numa surpreendente mistura do filme “A Vila” de Shyamalan com “Dogville” de Lars von Trier: para tentar manter a inocência dos filhos em um mundo corrompido, um pai os mantém isolados do exterior dentro de uma propriedade rural cercada por altos muros – a TV só mostra vídeos caseiros e a linguagem e sexualidade são manipulados e controlados a um nível patológico levando o conceito de educação doméstica para um extremo bizarro. “Dente Canino” mostra como a Alegoria da Caverna pode ser real, assim como as possibilidades de escaparmos por meio de uma gnose selvagem. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

“SOCRATES: Olhai! Seres humanos vivem em uma caverna subterrânea e têm a boca aberta em direção à luz. Esses homens estão aí desde a infância, e têm suas pernas e pescoços acorrentados para que eles não possam se mover e só consigam ver a frente deles, sendo impedido pelas cadeias de virar suas cabeças. Acima e atrás deles há uma fogueira acesa, e entre o fogo e os prisioneiros há um caminho elevado; e você verá diante deles um muro baixo construído ao longo do caminho como fosse uma tela onde sombras projetadas pelo fogo mostram homens passado ao longo da parede transportando todos os tipos de vasos, e estátuas e figuras de animais feitas de madeira e pedra e vários materiais. Alguns deles estão falando, outros em silêncio.

Glauco: Você me mostrou uma imagem estranha, com estranhos prisioneiros.

SÓCRATES: Assim como nós mesmos … (Platão, A República, Livro VII)

Esse diálogo metafórico sobre a Alegoria da Caverna escrito por Platão no século IV A.C. tornou-se não apenas uma imagem sobre a condição humana perante o mundo como na Filosofia e no Hermetismo, como também tornou-se um argumento recorrente na cinematografia contemporânea. Dos clássicos filmes gnósticos como Dark City, Matrix e Show de Truman a versões que se estendem a outros gêneros como A Vila (2004) de Shyamalan  ou a animação Uma Aventura Lego (2014).

Eleito o melhor filme na mostra “Um Certo Olhar” do Festival de Cannes de 2009, Dente Canino (Kynodontas, 2009) do diretor grego Yorgos Lanthimos é mais um filme que revisita a alegoria platônica. Muitos críticos apontam que Dente Canino é o resultado de uma mistura entre o terror que mantém os habitantes presos em um lugarejo no filme A Vila e a atmosfera sadomasoquista de Dogville de Lars von Trier – assista ao filme abaixo com opção de legendas em português.

Mas a novidade nessa revisita à Alegoria da Caverna está na mudança de foco: embora Lanthimos detalhe as formas como a ilusão pode ser criada para manter os prisioneiros acorrentados numa caverna metafórica (no filme uma confortável propriedade rural), Dente Canino concentra-se no próprio simbolismo do título – no dente canino humano está a memória de que ainda continuamos selvagens e carnívoros, embora sejamos tratados como bebedores de leite.

Lanthimos propõe um simbolismo duro e violento para mostrar que não só fora mas também dentro de cada um dos prisioneiros da caverna existe uma fogueira acesa que pode ser a fonte da energia que liberte a todos.

O Filme

Um pai e uma mãe criam seus três filhos (duas garotas e um jovem com idades entre o final da adolescência e os vinte anos) em uma propriedade rural isolada  onde há um grande gramado e uma piscina, sem eles terem qualquer conhecimento do mundo exterior. A propriedade é cercada por um muro cujo protão está sempre trancado e o pai é o único a sair de casa para trazer alimentos que têm metodicamente seus rótulos retirados para não terem nenhuma identificação externa.

A mãe parece ser também prisioneira por opção e nunca discorda dos bizarros métodos de educação caseira dos filhos.

Os jovens passam o dia disputando estranhos jogos como, por exemplo, quem acorda primeiro depois de ter sido anestesiado. Aprendem novas palavras com definições incorretas – “mar” significa uma poltrona ou “auto-estrada” que dizer “vento forte”.

A única pessoa de fora que todos conhecem é Christina, uma prostituta que o pai traz semanalmente para satisfazer os impulsos sexuais do filho. Ela acabará revelando fatos do mundo exterior que perturbará a harmonia artificial daquela família.

 O pai acredita que o confinamento dos filhos é a única maneira de preservar a suas inocências diante de um mundo corrompido: na TV só assistem aos filmes caseiros que a família faz. E na vitrola Frank Sinatra é apresentado como sendo o avô dos meninos e a letra da música Fly Me To The Moon é traduzida para o grego com uma letra que supostamente enalteceria os valores familiares e o amor que todos os pais e filhos devem ter entre si.

Leite e cães

O filme faz um simbólico contraste entre uma dieta familiar à base de leite (sempre assistimos aos personagens com um copo de leite) e a forma como o pai adestra os filhos como fossem uma experiência comportamental dos cães do Pavlov (psicólogo russo que descobriu o condicionamento das reações fisiológicas) – enquanto ele adestra os filhos, um cão da família está sendo também adestrado em um escola para cães.

Bebedores de leite, porém ainda com uma essência selvagem – o pai fala que os filhos somente poderão sair de casa no dia que um dos dentes caninos cair, ou seja, deixar de ser selvagem e “ascender” ao conformismo. Ou “inocência”, como prefere pensar o pai.

O leitor observará que a narrativa do filme é dividida em duas partes bem distintas: primeiro, a descrição dos processos de manutenção da ilusão que mantém toda aquela família prisioneira na “caverna”.

O controle da mídia (são exibidos somente conteúdos caseiros dirigidos pelo pai), o controle tecnológico (toda a tecnologia é propositalmente retrô com um telefone de disco, toca-discos e aparelho de TV com tubo catódico com um aparelho de vídeo VHS) e a manutenção do medo e do terror como forma de manter a união familiar – um pobre gato que inadvertidamente aparece no jardim é morto pelo filho aterrorizado. Aproveitando-se disso, o pai elege o animal como o perigo externo que espreita a todos.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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