A realidade é mais assustadora do que o sobrenatural em ‘O Que Ficou Para Trás’, por Wilson Ferreira

“O Que Ficou Para Trás” discute os problemas existenciais em torno dos refugiados na Europa e o ressentimento contra os estrangeiros como resultante da geopolítica global

A realidade é mais assustadora do que o sobrenatural em ‘O Que Ficou Para Trás’

por Wilson Ferreira

Dos filmes de ficção científica surgiu nos últimos anos o subgênero “alt.sci-fi” (plots tradicionais do gênero como pretexto para discutir temas existenciais e psicológicos). “O Que Ficou Para Trás” (“His House”, 2020 disponível na Netflix), ao lado do horror racial de “Corra!” (2017), ensaia da mesma maneira um novo subgênero, agora no gênero horror: o “alt.terror”, tradicionais plots do gênero como pano de fundo para temas existenciais e políticos. A partir do tema clássico da casa assombrada, “O Que Ficou Para Trás” discute os problemas existenciais em torno dos refugiados na Europa e o ressentimento contra os estrangeiros como resultante da geopolítica global que produz guerras híbridas em alvos políticos das grandes corporações petrolíferas – no caso, refugiados do Sudão do Sul. Um novo tipo de terror onde a realidade pode ser mais estranha e assustadora do que os elementos sobrenaturais.

O Que Ficou Para Trás (His House, 2020), estreia do diretor Remi Weekes em longas, definitivamente não é um filme de horror comum. Assim como nos últimos anos acompanhamos a ascensão do subgênero alt.sci-fino campo da ficção científica (filmes que usam os plots tradicionais do gênero como pretexto para discutir questões mais psicológicas ou existenciais), da mesma forma esse filme parece querer criar um, por assim dizer, “alt.terror”: tradicionais plots do horror (casa assombrada, sustos, horror físico etc.) como um pano de fundo para discutir temas existenciais e até mesmo políticos.

De início, O Que Ficou Para Trás se alinha ao tema da casa como o grande protagonista. Não só por ser assombrada, mas por ser metáfora ou projeção de tormentos interiores como remorso e culpa ou como autêntica representação dos labirintos da mente – entra na lista, ao lado de filmes como Relic (2020), I See You (2019), Mãe!(2017) e clássicos como O Iluminado de Kubrick e Repulsa ao Sexo de Polansky.

A segunda camada de O Que Ficou Para Trás é a representação do drama dos refugiados na Europa como o resultado de uma maquinação da nova organização da cadeia de produção mundial criada pela Globalização: a fuga de postos de trabalhos industriais e de serviços da Europa e EUA para o Oriente, criando o ressentimento e ódio aos estrangeiros – tão bem explorado pelas campanhas do Brexit, no Reino Unido, e de Donald Trump nos EUA. Além do fato de que a tragédia dos refugiados surgir do jogo geopolítico das revoluções por procuração (guerras híbridas) em países-chave aos interesses de grandes corporações, principalmente petrolíferas.

E na terceira camada, o horror proveniente das religiões animistas e tribais do Sudão do Sul que assombra os protagonistas. País alvo da geopolítica na África para a garantia das riquezas petrolíferas daquele país, mediante o açodamento de infindáveis guerras tribais.

Por isso, O Que Ficou Para Trás não é só um filme de fantasmas que habitam os novos moradores. Uma estória, já contada inúmeras vezes, com diversas variações. Mas aqui, o diretor Remi Weekes transforma esse conto arquetípico em um veículo para discutir outros temas: o drama dos refugiados na Europa, o ressentimento que os espera das pessoas que deveriam assisti-los, a busca de uma nova identidade num país estranho enquanto o remorso ainda prende o psiquismo no passado, o horror das guerras tribais na África, convenientes ao jogo geopolítico global.

A virtude do filme é mostrar que a realidade pode ser muito mais estranha e perturbadora do que qualquer elemento sobrenatural.

O Filme

O Que Ficou Para Trás abre com uma cena um tanto cômica. Bol Majur (Sope Dirisu) acorda de um pesadelo e encontra sua esposa Rial (Wunmi Mosaku) segurando sua cabeça. “O que você estava sonhando?”, pergunta. Bol conta uma mentirinha inocente para não revelar o verdadeiro conteúdo do sonho: “estava sonhando com o dia do nosso casamento”, responde meio sem convicção. “Isso explica todos os gritos”, ironiza Rial.

His House: Wunmi Mosaku as Rial Majur, Ṣọpẹ Dìrísù as Bol Majur. Cr. Aidan Monaghan/NETFLIX © 2020

Os Majurs são refugiados do Sudão do Sul, não só imerso em conflitos tribais, mas também dono de grandes jazidas de gás e petróleo na fronteira ao Norte com o Sudão, alvo da batalha geopolítica na região do Mar Vermelho. Logicamente envolvendo interesses das gigantes petrolíferas, de países ex-colonizadores da África.

A caminho da Inglaterra, eles escaparam de um trágico acidente de barco com o qual sonhou Bol: a filha, Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba), se afogou durante a travessia, trauma que repercutirá por toda a narrativa.

Os Majurs acordam num centro de triagem para refugiados, temerosos se serão expulsos de volta para a África. Mas recebem uma “liberdade condicional”: serão instalados em uma casa em uma região periférica de Londres sob rígidas condições, sempre monitorados por assistentes sociais para saberem se são merecedores da cidadania britânica.

“Seja um dos bons”, diz para eles o assistente Mark (Matt Smith, Doctor Who), que deixa escapar um sombrio espírito de ressentimento: constantemente Mark e seus ajudantes falam que a casa provisória dada aos Majurs é maior do que a deles próprios. Esse ressentimento (a semente que germina o ódio aos estrangeiros) é ainda mais patente quando sabemos que Smith tinha um bom emprego – foi demitido “porque os empregos estão sendo levados para fora do país”, restando a ele aquele emprego público frustrante.

A casa em questão está caindo aos pedaços, o papel de parede descolando, imunda, mau cheirosa e com sérios problemas de eletricidade.

Bol e Rial estão ansiosos em começar de novo para tornarem-se “os bons”. Porém, parece que trouxeram do seu país natal muito mais do que alguns objetos e recordações: clandestino, veio alguma entidade sobrenatural chamada “apeth” que se alimenta da culpa e remorsos, sussurrando feitiços a partir das paredes da casa em que habita a vítima.

Continue lendo no Cinegnose.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador