Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A Serpente do Paraíso rouba a cena no filme “Noé”

No livro bíblico do Gênesis, a história da arca de Noé tem apenas três páginas. Conhecendo o senso hollywoodiano de espetáculo e a inclinação de Darren Aronofsky em explorar complexas simbologias místicas e esotéricas, era de se esperar que o filme “Noé” (Noah, 2014) não fosse um thriller bíblico nos moldes de “Os Dez Mandamentos”. Pelo contrário, Aronofsky subverte o famoso personagem bíblico através de uma releitura gnóstica e cabalística. O diretor não só abandonou a Bíblia como transformou a Serpente do Jardim do Éden no personagem principal, trazendo para as telas a antiga versão gnóstica do mito do Paraíso, sob uma embalagem atual política e ecologicamente correta.

Quem conhece a obra do cineasta Darren Aronofsky, sabe que se pode esperar de seus filmes profundos simbolismos místicos e esotéricos. Foi assim em filmes como Pi (um thriller cabalístico onde um gênio matemático procura uma constante numérica universal), Cisne Negro (fábula gnóstica sobre a exploração da luz interior humana por um demiurgo representado pelas exigências mercadológicas de uma companhia de balé) e Fonte da Vida (uma jornada de elevação espiritual através de complexos simbolismos gnósticos e alquímicos).

  Com o filme Noé (Noah, 2014) não poderia ser diferente. Porém, desta vez Aronofsky saiu do campo dos dramas seculares traduzidos por simbolismos para entrar em uma narrativa bíblica fazendo uma releitura paradoxalmente sem referência à Bíblia: Aronofsky fez uma subversão flagrantemente gnóstica e cabalística do famoso personagem bíblico.

Em termos mais diretos, enquanto os líderes cristãos fizeram um grande esforço para endossar uma versão cinematográfica de um herói bíblico (“pelo menos Hollywood está fazendo algo pela Bíblia…”, muitos elogiavam) Aronofsky não só abandonou a Bíblia como transformou a serpente do Paraíso como o personagem principal (a palavra “Deus” nem é citada, substituída pelo ambíguo termo “Criador”) e Noé como literalmente o portador da semente da serpente. Para os gnósticos ela não seria a responsável pelo pecado e danação, mas, ao contrário, a portadora da Verdade e da Luz.

A questão do filme Noé é que esta subversão gnóstica foi encoberta por uma embalagem política e ecologicamente correta como, por exemplo, na aparente divisão entre os bons (um Noé vegetariano, querendo salvar a inocência dos animais da maldade humana) e os maus (o carnívoro rei Tubal-Caim e seus asseclas que acreditam que tudo o que existe no planeta é para o homem dominar e explorar numa economia extrativista).

Sem falar na forma como durante o filme Noé, de visionário e profeta, vai aos poucos se transformando em um louco homicida quando abandona a namorada do filho Ham à morte e quase mata duas crianças recém-nascidas a bordo da arca com a ideia fixa (supostamente ordenada pelo “Criador”) de que a espécie humana deveria ser eliminada da face da Terra para garantir a “inocência” das espécies vivas.

Curiosamente a ideia de Noé se assemelha a de grupos atuais que unem fundamentalismo ecológico com o religioso como a chamada “Igreja da Eutanásia” nos EUA cujo lema é “salve o planeta, mate-se”: suicídio, aborto, canibalismo e sodomia seriam as únicas formas de salvar o planeta do desastre ecológico ao evitar a procriação da raça humana, considerada o verdadeiro parasita da Terra.

A subversão de Aronofsky

Mas voltemos à subversão simbólica de Aronofsky. A primeira cena que chama a atenção em Noé é a representação de Adão e Eva como dois anjos luminescentes. Aqui o filme inicia a mistura entre gnosticismo e cabala (essencialmente uma forma judaica do gnosticismo). Compare o Éden mostrado no filme com esses trechos, o primeiro do livro Contra as Heresias de Irineu de Lyon onde cita uma descrição feita no século II por uma seita gnóstica e o gnosticismo judaico de Adolphe Franck do século XIX:

“Adão e Eva foram criados a partir da luz, eram luminosos, por assim dizer, corpos espirituais, tal como foram criados. Mas quando chegaram aqui, os corpos se tornaram escuros, gordos e ociosos” (Irineu de Leon, Contra as Heresias, I, 30, 9).

“Quando nosso pai Adão habitou o Jardim do Éden, ele estava vestido, como todos estão no céu , com uma roupa feita de luz superior. Quando ele foi expulso do Jardim do Éden e foi obrigado a submeter-se às necessidades deste mundo , o que aconteceu ? Deus, as Escrituras nos dizem , fez para Adão e sua esposa túnicas de pele e os vestiu; mas antes disso eles tinham túnicas de luz, da maior luz usada no Éden …” (Adolphe Franck, The Kabbalah, p.208).

O universo do filme é essencialmente gnóstico no confronto entre o mundo superior, espiritual e luminoso e o mundo terrestre inferior, com anjos decaídos cuja luz foi confinada na carne material ou na lava endurecida como os intrigantes personagens dos “Vigilantes”, espécies de transformers gnósticos.

Para entender o importante papel que os Vigilantes e os nossos pais luminescentes vão desempenhar para a entrada em cena da Serpente do Éden como o fio condutor de Noé, temos que entender como o Gnosticismo interpreta o mito do Paraíso.

A interpretação gnóstica do Éden

Para o Evangelho Apócrifo de João o Paraíso foi uma construção deliberada pelo Demiurgo. Criou um jardim aparentemente cheio de belezas e delícias e colocaram Adão no meio dele como um prisioneiro. Isso foi uma resposta contra o espírito de Sophia que entrara no corpo do falso homem criado pelo Demiurgo (uma cópia imperfeita de Anthropos, o arquétipo do homem celestial) e deu a ele a verdadeira humanidade e vida. Colocou-se em pé e passou a caminhar circundado por uma luz não terrestre.

Em represália o Demiurgo o prendeu no Paraíso, seduzido pelos aparentes prazeres do jardim terrestre. Na verdade, os frutos eram amargos e a sua beleza perversão. Também colocou uma árvore no centro desse jardim, contendo a vida dele, e proibiu de comer o seu fruto: disse a Adão que a árvore havia surgido das trevas e seu fruto seria venenoso. Dessa forma, impediram Adão de conhecer a Verdade.

Mais uma vez Sophia veio em socorro do homem. Em colaboração com os poderes mais altos da Plenitude, enviou para Adão um auxiliar, uma mulher conhecida por Eva. Na verdade, essa “mulher” seria uma forma espiritual (em forma de serpente) que penetrou em Adão e se manteve escondida sem que os Arcontes percebessem sua presença. Dessa forma, instruiu Adão a comer o fruto da árvore proibida.

A continuação dessa narrativa do gênesis é bem diferente do relato canônico bíblico. Descoberta, Eva é “criada a partir da costela de Adão” (na verdade ela foi retirada de dentro de Adão pelos raivosos arcontes quando descobriram que foram enganados) para ser aprisionada e violentada pelos regentes. Desse ato surgem os filhos Caim e Abel. Ao descobrir o que se sucedera, Adão gera um filho com o nome de Seth com inclinação para o espírito, tornando-se, ao longo da história, o símbolo para aqueles que buscam a Gnose.

A Serpente rouba a cena

Nitidamente em Noé os Vigilantes lembram os aeons (vemos a chegada deles no planeta como anjos luminosos) que vêm secretamente ajudar o homem. No filme explica-se que ao serem descobertos pelo “Criador”, são castigados e suas luzes confinadas em um corpo de lava escura endurecida, correspondendo à releitura gnóstica do mito do Paraíso.

Aqui encontramos uma nova fusão com a cabala. Vemos como os Vigilantes são redimidos (retornam aos céus como um feixe de luz no final da missão de auxiliar Noé a construir a arca). O curioso é que seus nomes (Semyaza, Magog e Rameel) correspondem aos nomes dos demônios da tradição judaica. Na cabala, nada é absolutamente ruim, nem mesmo o mais maligno dos arcanjos ou a pior das feras – chegará um momento em que recuperará a sua natureza angelical.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

8 Comentários

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  1. Não é

    se pelo menos tanta masturbação simbólica desse em um bom filme que é o objetivo final….

    O Filme é um porre e se precisou de tanta e tediosa rede simbólica é mais do mesmo diretor. Enredado em uma exagerada metodologia de manipulação simbólica, carregada, enfadonha, óbvia e falsamente obscura para dar alguma sensação intelectual ou erudita se converte num rodapé de academia com as letrinhas miudas ocupando meia página.

    Acaba em entretenimento de péssima dramaturgia e curiosamente ….insustentável.

  2. Não gostei.

    Deveria ter visto o Capitão América, dizem que é muito bom. A questão não é a visão religiosa, fui vêr esperando um filme épico e era um filme mais ou menos. Tipo comum de tudo.

  3. filme ruim

    Interesante saber das motivações gnósticas do filme, mas mesmo assim continua sendo um filme ruim. Não gaste seu dinheiro e tempo.

  4. O filme é bom, bateu recordes

    O filme é bom, bateu recordes de bilheteria e independente do criacionismo fantástico do diretor do filme, a religião cristã ganhou com isso na teoria do bem ou mal mas falem de mim.

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