Ben-Hur e o novo equívoco de Pôncio Pilatos, por Fábio de Oliveira Ribeiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A nova versão de Ben-Hur não me agradou muito. Várias situações dramáticas foram modificadas para que a história ganhasse um final politicamente correto: a superação do ódio entre o protagonista judeu e seu adversário romano. Mas esta não é o único ponto fraco do filme.

Qualquer pessoa que tenha visto a versão da década de 1950 ficará decepcionado com o ator escolhido para protagonista. Jack Huston não tem a mesma presença cênica que Charlton Heston. O mesmo pode ser dito do ator escolhido para interpretar Messala. O rosto e o porte físico de Stephen Boyd se incorporaram de tal forma ao antagonista de Judá Ben-Hur que é impossível não rir da escolha feita pelos produtores do filme de 2016.

O filme em exibição tem algumas virtudes. Ele incorporou elementos tradicionais das versões mais antigas. O hipódromo é grandioso, os peixes continuam registrando as voltas da corrida e a disputa entre os condutores de bigas não deixa a desejar https://www.youtube.com/watch?v=Q36qxgswIWE. Todavia, as duas melhores versões anteriores da disputa épica entre Judá Ben-Hur e Messala (1925 e 1959) continuam sendo impressionantes se levarmos em consideração que no passado os recursos de computação gráfica não existiam https://www.youtube.com/watch?v=frE9rXnaHpE e https://www.youtube.com/watch?v=2nO2DPqO6Bg.

Uma frase dita pelo personagem Pôncio Pilatos chamou muito minha atenção. Ao final da corrida, apesar de ter perdido a aposta e de ter visto seu protegido derrotado e humilhado, o governador romano da Judeia diz que ficou satisfeito com o resultado. Desafiado pelo africano que possibilitou a Judá Ben-Hur correr, Pilatos aponta para a plateia em frenesi e afirma que agora todos querem sangue e que, portanto, são romanos.

A sede de sangue nunca foi um privilégio dos romanos. Na antiguidade todos os povos viviam em guerra. Os gregos e troianos se mataram durante vários anos (Ilíada), atenienses e espartanos se despedaçaram num conflito sanguinário (Guerra do Peloponeso) antes de verem suas cidades conquistadas pelas falanges de sarissas do rei caolho da Macedônia e os cartagineses de Aníbal massacraram totalmente três exércitos romanos antes de serem expulsos da península italiana.

Os judeus também foram um povo sanguinário. Citarei aqui apenas alguns episódios das antiguidades judaicas registrados pelo historiador Flávio Josefo:

“Depois de ter dado estas ordens, mandou o exército avançar para a cidade. Fizeram-lhe a volta por sete vezes, os sacrificadores à frente, com a Arca, ao som das trompas, como nos diss precedentes, para animar os soldados, e ao sétimo dia as muralhas caíram sozinhas. Fato tão prodigioso espantou de tal modo os habitantes que, tendo perdido completamente a coragem, os hebreus entraram de todos os lados, sem encontrar resistência alguma. Fêz-se assim horrível matança, não tendo sido poupadas nem as mulheres nem as crianças. Puseram fogo na cidade [Jericó] e reduziram a cinzas tôdas as casas dos campos.” (História dos Hebreus, Flávio Josefo, volume segundo, tradução padre Vicente Pedroso, Editora das Américas, São Paulo, 1959, p. 51/53)

“Como os cananeus eram então muito poderosos, a morte de Josué fê-los esperar poder vencer os israelitas e êles reuniram para êsse fim, um grande exército perto da cidade de Bezec, sob o comando do Rei Adonibezec, isto é, Senhor dos Bezecenianos: pois Adônis em hebreu significa Senhor. As tribos de Judá e de Simeão combateram-nos tão valentemente, que mataram mais de dez mil deles e puseram todos os outros em fuga; prendendo Adonibezec, cortaram-lhe os pés e as mãos e nisto se viu um efeito da justa vingança de Deus.”  (História dos Hebreus, Flávio Josefo, volume segundo, tradução padre Vicente Pedroso, Editora das Américas, São Paulo, 1959, p. 77)

“Atacaram a cidade de Hebron, tomaram-na de assalto e mataram-lhe também todos os habitantes, dentre os quais estavam alguns da raça dos gigantes.” (História dos Hebreus, Flávio Josefo, volume segundo, tradução padre Vicente Pedroso, Editora das Américas, São Paulo, 1959, p. 79)

“A tribo de Efraim, depois de ter sitiado durante muito tempo a cidade de Bethel, sem poder tomá-la, não deixou de insistir nessa emprêsa. Um dos habitantes que para lá levava víveres, caiu por acaso em suas mãos; prometeram-lhes com juramento salvá-lo e à sua família, se êle os introduzisse na cidade. Êle deixou-se convencer e, por meio dêle, apoderaram-se da mesma. Mantiveram-lhe a palavra dada e mataram todos os outros.(História dos Hebreus, Flávio Josefo, volume segundo, tradução padre Vicente Pedroso, Editora das Américas, São Paulo, 1959, p. 80)

Estes fragmentos, que representam apenas uma pequena parte das matanças atribuídas aos judeus pelo seu maior historiador antigo, demonstram a absoluta falta de veracidade da frase dita pelo personagem Pôncio Pilatos na nova produção de Ben-Hur. Como todos os outros povos antigos (romanos, gregos, troianos, macedônios e cartagineses para não citar outros), os judeus também eram sedentos de sangue. Sede que, aliás, eles parecem ter preservado a julgar pela extrema violência empregada pelos soldados de Israel contra civis palestinos indefesos (incluindo velhos, mulheres e crianças).

O verdadeiro Pôncio Pilatos parece ter cometido um equívoco ao lavar as mãos durante o processo que resultou na condenação de Jesus. Seu duplo cinematográfico cometeu outro em 2016: ele considerou os judeus um povo incapaz de sentir sede de sangue.

Fábio de Oliveira Ribeiro

7 Comentários

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  1. Olha, nem sei se algum dia

    Olha, nem sei se algum dia vou perder meu tempo assistindo um remake turbinado por efeitos especiais, sem sal, sem graça e conteúdo, cheios de besteiras típicas deste começo de século XXI. Até porque sou um fã incondicional da obra-prima de 1959, filme que, como outras obras-primas, pra mim é simplesmente inigualável e imelhorável..

  2. sede de sangue

    Em vez de uma análise cinematográfica entre as duas versões ou/e  umaanálise mais profunda de aspectos históricos, o artigo acima se alonga sobre uma frase proferida pelo pesonagem de Pilatos na nova versão de Ben-Hur para expor demoradamente a tese que o povo judeu gosta de sangue. No final, o articulista reme o leitor ao que ocorre hoje em Israel. no Oriente Médio. Então, tá. A sede de sangue falou mais alto.

  3. Li um texto que a melhor cena

    Li um texto que a melhor cena do cinema mundial até hoje, é a famosa corrida de bigas do antigo Ben-Hur.

    A cena levou vários meses para ser gravada, e a que mais matou figurante até hoje.

    O ator Charlton Heston foi brilhante naquela cena.

    O Charlton Heston ainda vive ? Alguém sabe informar ? 

  4. Artigo-crítica demolidor

    Fábio de Oliveira Ribeiro nos surpreende  a cada dia, com os conhecimentos, literários, históricos e de artes. Este artigo-crônica é melhor do que muitos escritos pelos que se dizem ‘críticos especializados de cinema’ ou ‘historiadores’. Parabéns ao autor.

  5. Alguns detalhes que não podem passar despercebidos…

    Concordo com muito do que foi dito a respeito dessa nova película. Mas o novo final não me desagradou tanto assim.

    Mas há mais, pois nesta refilmagem há grandes falhas de configuração histórica:

    1. A locação utilizada para simular Jerusalém é equivocada – não havia (como ainda não há) grandes depressões ou abismos, muito menos ocupações humanas de despenhadeiro (cito somente a Geena, precipício fora das muralhas da antiga cidade, onde Judas teria se suicidado – mas que era desocupado).

    2. O vestuário e o costume judaico de então foram retratados de forma imprecisa e até deliberadamente suavizada, quase num tom helenizado – estes eram muitíssimo mais sóbrios e austeros, similar aos atuais judeus ortodoxos (que derivaram de saduceus e fariseus). Vestimenta colorida demais, mulheres expostas demais (mesmo a judia laica saía com sua cabeleira muito bem coberta, e somente acompanhada) e uma nobreza rica que era muito mais presente pelo monopólio da religião e do comércio derivado desta junto ao Templo do que de uma relação comercial de produtos e especiarias (artesãos e comerciantes eram profissões menores, dentro da sociedade da época).

    3. Há uma mudança muito importante neste remake – na versão dos anos 60, Ben Hur une-se a um beduíno árabe, dono da biga e dos cavalos brancos (de evidente raça árabe, portanto superiores) para fazer frente ao conquistador romano; isso era uma metáfora da consolidação da recente nação de Israel, que (intuía-se) necessitava da simpatia e de alianças com as nações árabes circunvizinhas para se consolidar. Ao substituir-se o arabe pelo africano (MOrgan Freeman, um negro) nessa nova refilmagem, fica claro que a geopolítica de hoje prescinde desses laços entre judeus.

    4. Mais – coloca na disputa de bigas três corredores como adversários “hostis”, sendo um sírio, um egípcio e outro árabe, de nacionalidade não determinada (mas, definitivamente, a’rab). É esse detalhe um espelho fiel das relações entre as nações no Oriente Médio de hoje em dia – e, talvez, uma mensagem subliminar da consolidação do atual estado israelense, estabelecido mesmo sem alianças ou reconhecimento (de árabes), muito menos de concessões (estas, especificamente aos palestinos).

    5. Mas a maior falha histórica estaria mesmo em localizar uma estrutura tão “romana”e “gentia” como um hipódromo en sau sagrada Jerusalém (pois esta é a denominação mais acurada de tal estrutura, concebida a partir de seu original tardio e verdadeiro, sediado em Constantinopla). Os judeus jamais permitiriam a edificação de tal estrutura (considerada “herética”) em sua cidade santa – por muito menos (a colocação de meros bustos do imperador Tibério nas proximidades do templo) os judeus de então se sublevaram contra Pôncio Pilatos quando da sua investidura no governo provincial, forçando este a retroagir em sua postura e recolhê-los para dentro da fortaleza Antônia (a única construção romana feita dentro das muralhas, concebida para servir de base das legiões e residência temporária de Pilatos – já que ele comandava de Cesaréia, na grande maioria do tempo).

    Está tudo lá, é só observar. Abs. 

  6. Sobre a fala de Pilatos

    Concordo que o filme deixou a desejar, mas discordo sobre o comentário da fala de Pilatos e dos argumentos sobre os judeus serem sanguinários.

    1º Porque os contextos são diferentes: na época de Pilatos os judeus estavam subjugados. E nos argumentos utilizados dos registros de Flávio Josefo, os judeus estão em missão de conquista de território. Muito comum aos povos antigos.

    2º Porque Roma com certeza se sentia muito superior aos povos conquistados.

     

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