Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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De Hitler aos Hippies: a Kombi no cinema em dez filmes

A Volkswagen anunciou o encerramento da produção da Kombi no Brasil, o último país que ainda produzia esse veículo. Junto com o fusca, a Kombi transformou-se em um arquétipo moderno e o significante cultural de uma constelação de conceitos que vão da esfera política às noções espirituais de jornada e liberdade. A presença da Kombi no cinema vai refletir esse imaginário irônico onde, apesar de nascido de um projeto nacionalista de Hitler e depois sintonizado com o lazer e o consumo individualista de pós-guerra, transformou-se em ícone da contracultura e representante de um estilo de vida antimaterialista e solidário. Abaixo, uma lista de dez filmes onde a Kombi é um personagem cinematográfico com seus múltiplos simbolismos.

Ao lado do fusca, foi o veículo que fez parte do imaginário de uma geração. A Kombi (abreviação da expressão alemã “kombinationsfahrzeug” – traduzindo, “van cargo-passageiro”), nos EUA chamada de VW Bus, acabou tornando-se mais do que um veículo de transporte: deu colorido e ressonância à cultura moderna, transformando-se em um arquétipo cultural, significante de uma constelação de conceitos que vai da esfera política (contracultura e a ética anticonsumista) à espiritual (viagem e liberdade).

O Brasil era o único país que ainda produzia esse veículo. Mas, segundo a Volkswagen, a produção será encerrada dia 31 de dezembro desse ano com a produção de uma última série limitada e comemorativa unindo todas as características de design das várias versões da Kombi nesses 63 anos.

Desde o início a Kombi esteve intimamente ligada ao campo do imaginário. O veículo foi um derivado do fusca desenhado por Ferdinand Porsche na década de 1930 e que se encaixou na política nacionalista e populista de Hitler em produzir o “carro do povo”. O “Transporter” ou “Type 2” surge em 1947, com design baseado em caminhões onde a forma e a utilidade se sobrepunham ao conforto e luxo.

Do lazer de classe média à contracultura

A Kombi entra nos EUA visto como um veículo dotado de estranho design: uma espécie de caixa arredondada (contrastando com os enormes carros potentes e luxuosos de uma América consumista e vitoriosa) e com um motor simples refrigerado a ar. Ideologicamente, a Kombi atendeu a uma atmosfera coletiva de pós-guerra onde os cidadãos afastavam-se da política e da esfera pública para se concentrar na esfera privada e individualista do consumo e do lazer.

Como veículo barato e de fácil manutenção (qualquer problema mecânico era resolvido “no tranco”) tornou-se o primeiro utilitário para a nova classe média viajar para o campo, praia ou montanha. A publicidade dos anos 1950 destacava tudo isso, mas, principalmente, a sua atitude e distinção em relação aos outros carros. Ficou famosa a foto de um imenso estacionamento de shopping repleto de carros parecidos com a Kombi destacando-se imponente entre eles – veja foto ao lado

O veículo logo chamou a atenção de jovens pertencentes a uma cultura boêmia e nômade dos anos 1950 dos círculos de Nova York e São Francisco: os beatniks – ou “geração beat” cujo símbolo máximo foi o escritor Jack Kerouac e seu livro “On The Road” que subscreve um estilo de vida antimaterialista e solidário.

Eles já haviam subvertidos dois elementos do estilo de vida da classe média: a t-shirt e a calça “rancheiro”. A primeira, de underware os jovens começam a usar como roupa social; e a segunda de roupa símbolo de status por ser usada por “rancheiros” (proprietários de casas de campo ou pequenas fazendas) passa a ser usada como símbolo de rebeldia ao ser usada sem vinco e propositalmente surrada e desbotada.

A Kombi torna-se também símbolo dessa rebeldia ironicamente subvertendo os próprios conceitos publicitários: o veículo barato, com atitude e simples. A Kombi parecia recriar o próprio conceito de propriedade, uma espécie de “do it yourself”, “faça você mesmo” que os punks e a geração X posterior retomariam mais tarde: qualquer um podia consertar um motor VW. E a procura de peças em qualquer loja reforçava esse espírito comunitário que se contrapunha à ética individualista das prestadoras de serviço das companhias de seguro e de auxílio mecânico – veja BURNETT, David. “From Hitler to Hippies: The Volkswagen Bus in America”, Thesis Master of Arts, University of Texas at Austin, 2002 – clique aqui e leia o texto.

Kombi: uma roadtrip espiritual

“On The Road” de Kerouac elegia a estrada como significante de uma busca espiritual. Nos anos 1960, músicas como “Magic Bus” do The Who e filmes como “Magical Mistery Tour” com The Beatles e “Easy Rider” com Peter Fonda e Denis Hooper ressoam na cultura pop a roadtrip como uma jornada espiritual de transformação espiritual. Seja em um ônibus (transporte solidário e coletivo) ou motocicleta (sempre em grupos), a viagem será tanto geográfica como mental por meio das drogas lisérgicas experimentadas no caminho.

E qual o companheiro mais confiável que dá um sentido de atitude e independência? A Kombi, que se transforma no ícone mais acabado da contracultura seja beatnik ou hippie.

Nessa lista de 10 filmes, percebemos três estratégias da indústria do entretenimento para estereotipar, neutralizar ou simplesmente expiar esse arquétipo de liberdade em que se transformou esse fascinante veículo: como um clichê nostálgico de uma época que morreu, como veículo de vilões estrangeiros hollywoodianos ou como insincera e oportunista estratégia de marketing corporativo da Volkswagen em, por exemplo, reeditar os velhos designs como o New Beetle ou o Microbus.

A Kombi no cinema em dez filmes:

 

1. Kombi Nation (2003)

Filme neozelandês independente em estilo reality show onde três jovens saem em uma viagem em uma Kombi através da Europa com uma equipe de TV, como uma espécie de rito de passagem. Ecos distantes da mística conexão do passado entre a Kombi e a viagem como jornada espiritual. Aqui, reduzida a um “American Pie” motorizado.

2. The Bus Movie (2012)

Um precioso documentário de Damon Ristau sobre a história do “VW Bus” e a sua ressonância na cultura pop, Publicidade, rock e literatura. Ristau explora a história do VW, a partir de volta ao seu local de nascimento no pós-Segunda Guerra Mundial na Alemanha, levando o espectador a um passeio ao coração de Woodstock e do movimento contracultural. Vai à estrada e entrevista os proprietários do VW Bus de todo o mundo. Ristau pinta uma imagem mais clara de por que a “hippie van” tornou-se o símbolo internacional de liberdade, amor, aventura e amizade.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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