Divas francesas: Michèle Morgan, por Walnice Nogueira Galvão

Divas francesas: Michèle Morgan

por Walnice Nogueira Galvão

As divas do cinema francês anterior à Nouvelle Vague, que impôs novos paradigmas estéticos e as destronou, tinham uma relação profunda com o corpo social, que sabia quem elas eram e delas se orgulhava. As divas recebiam a Legião de Honra por serviços prestados ao país, seus nomes batizavam ruas e praças.

Agora perdemos Michèle Morgan, que se foi aos 96 anos. A beldade do cinema francês entre os anos 30 e 50, célebre por seus imensos olhos azuis que iluminavam as telas, foi uma atriz séria, que não fazia papeis caricatos ou baratos.

Nesses tempos, na França, três ou quatro grandes damas do cinema protagonizavam os melhores filmes dos melhores diretores: Arletty, Edwige Feuillère,  Danielle Darrieux. Inconfundíveis a silhueta de ampulheta, olhos franjados de cílios abundantes e batom que sobrepujava o contorno da boca. Encarnavam uma espécie de ideal de mulher madura, dona de sua arte e de seus recursos, inteligente e culta, sofisticada, elegante e de belos gestos.

Os principais diretores as disputavam. É só buscarmos os filmes que marcaram época e se tornaram clássicos:  uma delas é sempre a protagonista. Arletty encabeçou o elenco dos dois principais filmes de Marcel Carné, Les enfants du paradis e Les visiteurs du soir. Edwige Feuillère fez Le blé en herbe, de Autant-Lara , e L´aigle à deux têtes, de Cocteau.  Danielle Darrieux, que recentemente chegou aos 100 anos, estrelou O vermelho e o negro e Occupe-toi d´Amélie, a famosa farsa de Feydeau, ambos dirigidos por Autant-Lara;  e também La ronde, de Max Ophüls.

Quanto a Michèle Morgan, no início da carreira ganhou, com Cais das brumas, de Marcel Carné, o prêmio de interpretação no primeiro festival de Cannes, em 1946. Daí em diante os sucessos se enfileiraram, como na Sinfonia pastoral, de Jean Delanoy, e em As grandes manobras, de René Clair.

Todos filmes de Cinemateca. Aqui em São Paulo eram exibidos no Museu de Arte Moderna na rua Sete de Abril, que abrigou uma Filmoteca por alguns anos, embrião da notável instituição que viria a ser a Cinemateca de São Paulo. Mas podemos vê-los na TV5 Monde da França, país em que continuam a ser mostrados, seja na televisão, seja nas pequenas salas especializadas em ciclos de reprises.

Já os filmes de Cocteau (pouco mais de meia dúzia) compuseram um capítulo à parte. Sim, porque eram surrealistas e destoavam do tom realista próprio ao cinema. Foram concebidos como moldura para a beleza de Jean Marais, por quem Cocteau era apaixonado. Nada demais, porque muitas das divas eram também egérias ou musas dos diretores.  Em tempos mais machistas, tudo que as mulheres realizavam era atribuído a seus padrinhos ou protetores. Como corolário, também levavam todo o dinheiro que elas ganhavam, e era muito  – e é o que conta, entre tantas outras, Michèle Morgan na autobiografia.

De uma altitude estética incomparável, não se sabia qual dos filmes de Cocteau mais admirar, se A bela e a fera, se Orfeu, se O eterno retorno. Ele não era apenas diretor de cinema, era um grande artista que vinha do dadaísmo e do surrealismo, realizando uma respeitável obra para teatro, sobressaindo na literatura, na pintura, no balé, nas artes em geral.

O encontro decisivo entre Michèle Morgan e Cocteau se daria décadas mais tarde, sob as luzes da ribalta.  Escasseando a oferta de bons papeis no cinema devido à idade, a diva encetou uma carreira teatral, na qual igualmente se notabilizou. Sua última aparição,  em 1993, quando já ia adiantada na casa dos 70, foi um extraordinário sucesso: Os monstros sagrados, peça de Cocteau frequentemente reencenada, cujo título alude a um casal de atores de teatro, com todos os seus embates de estrelismo e narcisismo. O marido era encarnado por Jean Marais, o favorito de Cocteau. Quem os viu nessa ocasião no Buffes-Parisiens,  jamais deixará de lembrar o que é ver no palco, em pessoa, dois protagonistas daquela envergadura, em que um é maior que o outro e vice-versa: a classe, o charme, o alcance e as modulações da voz, a linguagem corporal, os jogos de cena. Inesquecível.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFCLH – USP

 
Walnice Nogueira Galvão

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