Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “Almas à Venda” a chave do sucesso é a perda da alma, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Com ironia e com humor negro, “Almas à Venda” (Cold Souls, 2009), tematiza criticamente como o mundo dos negócios (management + tecnologias do espírito) invade nossa última morada que ainda tenta resistir: a alma. No mundo atual dominado pelo paradigma da financeirização na qual qualquer coisa (ações, títulos, carros, pessoas, sentimentos e até a alma) tem que ser submetida aos princípios da liquidez e mercantilização totais, um homem descobre a chave do sucesso: o “Armazém de Almas” – clínica especializada em estocar a sua alma para substituir por outra de um doador anônimo, mais bem sucedido. Mas o protagonista descobre algo mais: quando estamos vazios e sem alma conseguimos ser mais bem sucedidos profissionalmente.

A “alma do tempo” e o “tempo da alma”. É nesse jogo de palavras que Alessandra Ageda (no seu texto “Tio Vânia de Anton Tchekov, com direção de Celso Frateschi” no site Cineminha) sintetiza as reflexões da peça teatral Tio Vânia de Anton Tchekov: o que fazer com o tempo que nos resta? A questão sobre o que fazer com nossas vidas, nossos desejos, não se restringe apenas a um assunto de foro íntimo. 

Nossas questões do íntimo da alma são atravessadas pela alma do tempo, trazendo imanência (concretude, história etc) a uma entidade metafísica que aspira transcendência: a alma.

O filme Almas à Venda (Could Souls, 2009) é uma comédia dramática instigante e com uma ácida ironia apresentando como “alma do tempo” atravessa a forma como lidamos com os problemas da alma. 

E qual é a alma do nosso tempo? A hegemonia das ideias do management, com conceitos vindos do mundo dos negócios. O cálculo das relações custo-benefício como forma de pensar generalizada que vai do mundo corporativo até nossos amores e amizades, trazendo a necessidade do ajuste fino das nossas almas a esse paradigma de performance e desempenho. 

A fim de nos adaptarmos ao management, entra em ação toda a agenda científica tecnognóstica das tecnologias do espírito (neurociências) que, como vimos em postagens anterioras (veja links abaixo), procuram fazer uma verdadeira cartografia e topografia da mente, na esperança de localizar a fonte última das nossas motivações, sentimentos, emoções e impressões. E o cinema, de Vanilla Sky” até A Origem vem refletindo essa agenda, ou a “alma do nosso tempo”.

Almas à Venda não apenas reflete essa agenda atual como faz uma reflexão crítica com muita ironia e non sense. O filme faz lembrar produções como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, mas vai além na crítica. 

Enquanto os filmes anteriores são verdadeiras fábulas (narrativas com características genéricas e ahistóricas), em Almas à Venda o contexto histórico, econômico e político é bem delineado: o mundo globalizado e o neo-liberalismo dominado pelo paradigma da financeirização onde qualquer coisa (ações, títulos, carros, pessoas, sentimentos e até a alma) tem que ser submetida aos princípios da liquidez e mercantilização totais.

O Filme

O filme começa com uma epígrafe impactante, que sintetiza bem a alma do nosso tempo: “A Alma localiza-se em uma pequena glândula no centro do nosso cérebro”, Rene Descartes, The Passion of Souls, 1649. 

Em seguida, vemos Paul Giamatti fazendo o papel do ator … Paul Giamatti nas cenas iniciais, tentando interpretar o personagem Tio Vânia em um ensaio da peça homônima de Tchekov. A peça está prestes a entrar em cartaz e ele enfrenta dificuldades com o papel: progressivamente sua vida pessoal confunde-se com a do personagem e, por isso, está atormentado e amargurado com a vida.

Seu agente indica um artigo na revista New Yorker sobre um serviço que seria a solução dos seus problemas: o “Armazém de Almas”, uma clínica na qual seus pacientes podem retirar sua alma e estocá-la e, até, substituir por outra alma de um doador anônimo. Sem a alma, Paul se descobre um homem mais leve, assertivo e sem angústia.

 

Mas se achava que tinha encontrado a solução para suas angústias e tormentos, Paul encontra mais problemas: sem a alma não consegue interpretar Tio Vânia ou fazer sexo com sua esposa. 

Consternado, retorna à clínica e decide experimentar a alma de um poeta russo. Mas logo percebe que essa alma é nobre e complexa demais para ocupar seu corpo e não consegue dar conta de toda a sua complexidade. Decide, então, reaver sua própria alma, estocada no depósito.

Desesperado, descobre que ela foi roubada e levada para a Rússia em um empreendimento sem escrúpulos e cruel: um empresário com ares de mafioso mantém um negócio em São Petersburgo de aliciamento cruel de doadores e tráfico de almas que são enviadas para os Estados Unidos no interior do corpo da “mula” Nina.

Paul vai com ela à Russia para recuperar sua alma. No final do filme, Paul retorna à clínica onde descobre que a instituição foi vendida para um fundo de investimento.

Sensibilizado pelo drama pessoal da “mula” Nina (um corpo sem alma que carrega almas alheias no esquema do tráfico internacional) tenta reaver a alma dela no depósito. Descobre ser impossível porque os acionistas do fundo estão avaliando os “ativos” e definindo novas políticas de preço com base no risco associado ao investimento realizado.

Non sense total! O que torna a atmosfera surreal do filme é a absoluta naturalidade como os personagens lidam com a questão do “Armazém de Almas”: sem espanto, tudo verossímel, natural e rotineiro, como mais um exemplo de criatividade e empreendedorismo no mundo dos negócios.

 

Onde está a alma?

A epígrafe que abre o filme com a citação de Descartes é a chave para entender a “alma do tempo” e toda a crítica corrosiva do filme. É inacreditável perceber que a agenda tecnognóstica atual procura materializar por meio das tecnologias contemporâneas (neurológicas, fisiológicas, digitais e computacionais) um anseio secular do imaginário científico racionalista expresso na frase de Descartes no século XVII.

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Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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