Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

Em “Rebirth” a liquefação das seitas no marketing e nas empresas, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

A produção Netflix “Rebirth” (2016) é mais uma dentro da recente onda de filmes sobre seitas ou cultos. Ao  fazer constantes alusões a clássicos como “Vidas Jogo”, “Clube da Luta” e à série “Black Mirror”, o filme em alguns momentos torna-se previsível. Mas a grande virtude de “Rebirth” é mostrar como na atualidade as seitas estão se “liquefazendo” – deixam de serem exclusivas a grupos sectários místicos ou religiosos para se tornarem ferramentas motivacionais nas empresas, marketing e estratégia de vendas. Técnicas de manipulação como “breaking sessions”, “temor e intimidação”, “controle do tempo”, “love bombing” etc. integram-se ao cotidiano de empresas e marketing de rede. Enquanto assistimos na TV notícias sobre líderes malucos que levam grupos ao suicídio, sem sabermos podemos estar trabalhando agora mesmo em uma seita.  

Sempre quando falamos sobre seitas vem à mente a imagem de um bando de malucos liderado por alguém ainda mais insano cujas lembranças remetem a figuras como Reverendo Moon, Jim Jones ou maníacos assassinos como Charles Manson. Muitas vezes com um script que prevê um suicídio coletivo final, como na seita Porta do Paraíso em 1997, nos EUA, cuja promessa era de que as almas dos iniciados embarcariam em uma nave espacial próxima ao cometa Hale-Bop que passava nas cercanias da Terra.

Mas hoje esse conceito de seita está cada vez mais, por assim dizer, “líquido”,  numa era de modernidade líquida, como denominava o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Parece que as seitas estão deixando os seus nichos místicos e religiosos para se espalharem no mundo secular corporativo e das empresas de marketing de nível e de rede.

O que dizer então de corporações nas quais são afixados nas paredes quadros com “Objetivos, Valores, Princípios e Missão” da empresa – noções tão escorregadias e motivacionais que servem para qualquer interpretação pelo CEO da vez. Ou ainda de reuniões motivacionais com direito a roda, mãos dadas e todo mundo gritando e repetindo juntos: “Herbalife!”.

Em postagem anterior o Cinegnose detalhou os dez sinais de que você pode estar, sem saber, participando de uma seita ou culto – clique aqui. Cada um desses sinais pode ser confirmado na produção Netflix Rebirth (2016), dirigido e escrito por Karl Mueller. Um thriller psicológico que parece continuar a tendência de filmes recentes sobre o tema como Martha Marcy May Marlene (2011), Sound of My Voice (2011), O Mestre (2012), The Invitation (2015), entre outros.

 

Mas Rebirth faz também competentes alusões e releituras de sequência de Vidas em Jogo (The Game, 1997), cenas abusivas em sala de aula como em Whiplash (de onde emula a insistente trilha de bateria que acompanham as cenas tensas) e o mergulho no interior de uma seita terrorista antissistema de Clube da Luta, permeado com muitos momentos em que entramos numa atmosfera similar à série de Charlie Brooker, Black Mirror.

A liquidez da ideia de seita

O foco de Mueller é idêntico ao de Vidas em Jogo: um protagonista, bem-sucedido e vivendo uma típica vida de subúrbio de classe média alta, é convidado a participar de uma espécie de um “seminário motivacional” (pelo menos ele acredita nisso) no qual aos poucos os limites entre um jogo de autoconhecimento e transformação pessoal conhecido como “Rebirth” começa a se confundir com a realidade, tornando-se ameaçador e abusivo. Ou não? Ou se tudo não passa de resistência de um psiquismo reacionário de alguém ainda apegado ao materialismo e ao emprego que tanto odeia?

O interessante em Rebirth é essa “liquefação” da ideia de seita nos tempos atuais: de alguma coisa sectária, estranha, para coisas na atualidade aparentemente amigáveis, com um discurso a primeira vista humanista de crítica à sociedade, prometendo ao egresso crescimento, autoconhecimento. Mas, por outro lado, dinheiro e conquistas materiais, como qualquer iniciativa do mundo materialista que tanto criticam.

Uma linguagem que lembra em muitos aspectos a orwelliana “novilíngua” baseada em verdadeiros oxímoros: você é livre para sair da seita, mas… jamais sairá; você se libertará da prisão do materialismo… mas poderá ganhar dinheiro com isso, e assim por diante.

Mas a grande virtude de Rebirth é mostrar com o fenômeno atual da liquefação das seitas é o outro lado da moeda do tédio e insatisfação com as nossas vidas familiares e profissionais. Basta uma escapadela da rotina (assim como a infidelidade no casamento) em um final da semana, para encontrar uma seita que dirá exatamente aquilo que você sempre sentiu… até aqueles dez sinais te envolverem a tal ponto que ficção e realidade, dentro e fora, verdade e mentira se misturarem a tal ponto que as diferenças se tornam irrelevantes.

 

O Filme

 Kyle (Fran Kranz) é um típico personagem de classe média alta vivendo em uma grande casa de subúrbio com sua esposa e filha. Trabalha como um analista de redes sociais para um banco. O filme abre mostrando a monótona e previsível vida de Kyle – confortável, afluente, porém entediada.

Mas logo tudo é interrompido com a inesperada visita de um antigo amigo de faculdade chamado Zack (Adam Goldberg). Zack pede para Kyle cancelar todos os compromissos de final de semana para participar com ele em algo chamado “Rebirth” (“Renascer”), que ele só descreve como “uma experiência”. Depois de sucumbir a sentimentos nostálgicos dos tempos universitários (sem falar na atração por um evento inesperado na sua vida monótona) Kyle aceita o convite do amigo.

Logo as coisas ficam estranhas: Kyle descobre que o hotel em que se hospeda está cheio de pistas que o conduz a um ônibus lotado no qual todos devem entregar seus celulares e usar vendas nos olhos até chegarem ao destino – um grande sobrado aparentemente abandonado.

Kyle e os outros passageiros são levados a um porão onde um homem (Steve Agee) faz um discurso anti-establishment (todos estão alí para deixarem de ser “zumbis” nas suas vidas) sobre a filosofia “Rebirth”. São explicadas as regras, lembrando muito a sequência de Tyler Durden em O Clube da Luta. Porém, sem luta e violência.

 

Aliás, as únicas ameaças que Kyle confrontará serão as manipulações psicológicas e uma tensa atmosfera sexual e de imprevisibilidade – uma linda mulher que o atrai à “sala dos desejos”, para depois entrar em uma sala na qual um grupo de apoio é atormentado psicologicamente por um outro líder. 

Todos repetem para Kyle uma das regras de Rebirth: “você poderá sair quando quiser”. Mas ele se perde em salas e corredores escuros e labirínticos. E ninguém parece disposto a informar onde é a saída de volta para o ônibus que trouxe todos para lá.

O que parecia mais um seminário motivacional que ocuparia um final de semana, torna-se para Kyle um jogo perigoso no qual a cada pergunta que faça, todos os líderes do Rebirth respondem com outras perguntas. O jogo é claro: torna-lo tão paranoico que não consiga distinguir realidade da fantasia, até quebrar todas as resistências. Principalmente porque falsas pistas parecem ser espalhadas para que Kyle entre sempre em novas salas com situações cada vez mais bizarras.

Uma sociologia das seitas

Seitas e cultos passaram a ser objetos de estudos sociológicos a partir dos estudos de Howard Becker na década de 1930. Usualmente eram identificados três tipos de comportamentos religiosos: na igreja, em grupos sectários e cultos místicos. Mas Becker encontrou um quarto tipo que surgia naquele momento: “sectos” que cultivavam crenças de natureza pessoal ou privada.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Fui ver
     

    Fui ver o seu filme assim como eu fui ver certa feita, há muito, uma “palestra motivacional” da Amway a convite de  um amigo, que deixou seu cargo no Banco do Brasil para ser membro da seita Amway.

    Um conselho que eu me dou e a quem interessar possa é que se o que quer que lhe prometam mostrar ou dar, se você tiver que vendar os olhos antes, não aceite.

    No mais, se eu tivesse um amigo invasivo como esse, do protagonista do filme, eu punha ele na cadeia, não sem antes lhe dar  bom um corretivo.

    Só de imaginar me dá úlceras.

     

  2. Vai ver é por isso que os

    Vai ver é por isso que os orientais dizem que um mestre pode dar pistas mas ninguém pode iluminar a outro nem ser por outro iluminado, que cada um tem que encontrar sua própria iluminação.

    O oriente vive dizendo que o ocidente é carente de si mesmo. Também pudera: com o bombardeamento publicitário comercial-ideológico incessante de dogmas que pregam a alienação de si mesmo, queria o que? Quem aguenta?

    Esse negócio de “capitalismo” causa tremendas fissuras. Fissuras que, por mais que as pessoas que operam o capitalismo prometam, não podem ser preenchidas por nada que seja vendável / comprável. O alento é que potencialmente todo mundo tem em si mesmo o necessário para fechar essas fissuras. Mas isso é altamento subversivo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador