Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Estranhas portas que jamais foram fechadas em “Mandy”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Um filme que parece ter saído de alguma capa de disco heavy metal dos anos 1980, começando pelo pôster promocional. E que exige do espectador uma entrega ativa, ao invés de passivamente analisa-lo. Por isso, a maioria da crítica considera “Mandy” (2018), do diretor canadense Pano Cosmatos, um filme absolutamente insano, estranho e difícil de ser resenhado. Na verdade, nem seria um “filme”, mas uma “experiência” non-sense e surrealista com um mix alucinado de referencias a comerciais, animações, HQs, rock metal e mais da cultura pop dos anos 1980. Tirando as camadas de exercício de estilo, Cosmatos dá continuidade à reflexão iniciada no filme anterior “Beyond The Black Rainbow” (2010): as consequências do “despertar místico” do esoterismo e ocultismo na cultura pop em torno das viagens alucinógenas psicodélicas do LSD. De como toda uma geração tentou buscar um atalho para a iluminação espiritual, mas acabou encontrando uma “bad trip”: o Demiurgo existente em cada um de nós.

“Ela abriu estranhas portas que nunca mais se fecharam”

David Bowie, “Scary Monsters”, 1980)

 

“Essa coisa de ocultismo veio provavelmente da geração dos anos 60. Os ‘baby boomers’ tentaram encontrar espiritualidade em ocultas e sombrias regiões. Seus ideais acabaram sendo corrompidos”, disse em entrevista o diretor Panos Cosmatos quando do lançamento do seu filme de estreia, Beyond The Black Raimbow, em 2010.

Oito anos depois, em seu segundo filme, Cosmatos ainda parece não ter esgotado o acerto de contas com toda uma geração que tentou mudar o mundo procurando dentro de si algum tipo de revolução espiritual. Como dizia o gnóstico pop David Bowie (ele próprio, um dos arautos dessa “Nova Era”), “estranhas portas foram abertas e jamais foram fechadas”.

Mandy (2018) é muito mais do que um exercício de estilo – com uma atmosfera e fotografia que parece ter saído dos vídeos VHS dos anos 1980, com inúmeras referencias a filmes e comerciais de TV daquela década e um Nicolas Cage fazendo metalinguagem de si mesmo com alusões ao filme Motoqueiro Fantasma.

Mandy é um filme no qual o espectador tem que relaxar e aceitar os pressupostos do mundo mitológico-pop que Cosmatos cria: é deliberadamente lento, perturbador e muitas vezes sem sentido. Mas é principalmente uma experiência imersiva, sinestésica, como um pesadelo lisérgico de mais de duas horas. Como uma jornada espiritual pode se tornar uma bad trip de violência, sangue e vingança. Como em Beyond The Black Rainbow.

 

Mas se no filme anterior, Cosmatos mergulhou em um sci-fi “futuro do passado” de clássicos futuristas como 2001, THX 1138 e nos enigmas metafísicos do russo Tarkovsky (Solaris e Stalker), em Mandy temos uma imersão no ocultismo pop de HQs, capas de discos de bandas heavy metal, pulp fictions de horror e animações “tokienescas” pastiches de imageries medievais com sci-fi. Como aquelas capas dos anos 1970 da banda de rock progressivo Yes.  

Embora ambientado nos anos 80, Mandy trata das consequências ainda atuais do chamado “despertar místico” dos anos 1960 caracterizado por uma espécie de autodivinização de buscar dentro de cada um de nós um luz espiritual que nos faria conectarmos com o Todo. Utopias tribais, primitivas embaladas por ácido e psicodelismo cujo impulso transcendentalista era turbinado pelas viagens alucinógenas e estados alterados de consciência. 

Mas toda essa busca pela autodivinização acabou não encontrando Deus dentro de nós mesmos. Mas o pior do nosso psiquismo, personificado na figura de um Demiurgo – líderes espirituais, charlatões, cultos e seitas que parecem reproduzir em escala microcósmica o drama cósmico da próprio Criação. Passamos a emular deuses tiranos que exigem rituais de sangue e violência.

O Filme

Nicolas Cage é um lenhador chamado Red Miller com uma indefectível camisa xadrez flanelada, vivendo em uma casa na floresta com a sua esposa Mandy (Andrea Risenborough). Além disso, é 1983 e com inúmeras referencias pop do momento – para começar, o próprio pôster promocional do filme, lembrando capas de discos do grupo metal Iron Maiden.

 

A primeira parte da narrativa parece criar uma dualidade entre Red (um lenhador bruto, de poucas palavras, como se representasse o peso da realidade cotidiana) e Mandy – etérea, diáfana, lendo literatura fantástica e trajando camisetas pretas com pentagramas  ou de outra banda de metal, o Black Sabbath.

Os momentos felizes de intimidade do casal não esconde uma atmosfera de tensão, como se preparasse o espectador para o pior – a floresta ao redor da casa parece sempre misteriosa e escura, enquanto a figura levemente andrógina de Mandy, com uma cicatriz abaixo de um olho, completa uma composição misteriosa.

Um dia, caminhado por uma trilha, Mandy é vista por um aspirante a messias e líder espiritual chamado Jeremiah Sand, sempre cercado por um séquito de mulheres e homens sociopatas. Torna-se obcecado por ela e exige que seus seguidores a localizem e a sequestrem, para se tornar a mais nova integrante da seita. Nesse momento, percebemos o modus operandi clássico de toda seita: uma liderança espiritual baseada na humilhação, abusos e intimidação.

Através de uma “pedra de abraxás”,  amuleto gnóstico que representa o “Grande Arconte” (“Arcontes”, seres subordinados ao Demiurgo e que controlam os “365 céus”, segundo Basilides), invocam uma gangue de motoqueiros, aparentemente espectros demoníacos. Juntos, localizarão e sequestrarão Mandy, enquanto o marido Red é quase crucificado com arame farpado.

 E quem é Jeremiah? Um tipo que olha para si mesmo diante do espelho e que recebe uma suposta mensagem divina: “confie em você mesmo”. Por isso, Jeremiah acredita que tem um direito divino de pegar do mundo o que quiser – seus desejos, suas necessidades, tudo existe no mundo para servir aos seus interesses. “Fui abençoado com o conforto de ter muitas mulheres”, regogiza-se, tentando convencer Mandy a embarcar na seita. Antes de ser morta cruelmente despois de ridicularizar o líder que acredita ser recompensado: despois de ser um aspirante fracassado a estrela do rock, acredita que Deus lhe deu uma compensação com a iluminação espiritual.

Depois de se libertar dos arames farpados, Red descerá aos infernos numa jornada de sangue e vingança, totalmente surreal e non sense, na qual delírio e realidade se confundem com metalinguagens de animações “tokienescas”. Procurarará líder que ocasionalmente ordena seus seguidores a convocar uma gangue de motoqueiros para raptar mulheres como propriedade e também sacrificar crianças só porque são obesas.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

1 Comentário

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  1. Sobre o texto anterior. Muito bom, prof. Wilson Ferreira!

    Bolsonaro X Haddad no segundo turno? Guerra híbrida continua vencendo, por Wilson Ferreira

    E a resposta, melhor ainda!

    Avatarwvferreira Mod  Clinica Odontologica Roger Bar • um dia atrás

    Sem dúvida a ida do PT ao segundo turno é uma resposta contra todo o lawfare e contra o consórcio judiciário-grande mídia. O texto trata de algo mais profundo e insidioso das estratégias da guerra híbrida: despolitização e polarização. O custo de um possível retorno do PT ao poder será alto e dentro dos objetivos da guerra híbrida dos EUA: ingovernabilidade devido ao envenenamento psíquico que impede qualquer debate racional na esfera pública. Por isso, em chegando ao poder, cabe a um possível governo de esquerda re-politizar o debate e imediatamente lutar por uma nova Leio dos Meios. E mandar às favas a noção de “mídia técnica” que fez chocar o ovo da serpente. Abs!

     

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